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O trabalho rumo às invernadas do sul

A partir deste ponto da narrativa tem início a narração dos dias de jornada. O primeiro deles foi marcado pela chuva, a qual inundou parte do caminho. Tendo sido uniforme, atingiu também o local marcado com sendo a primeira parada do grupo, para o almoço. Chegando lá, cerca de duas horas antes, Bié cogita seguir sem parar para cozinhar. No entanto, baseado na experiência que possui, sabe que os homens estão com fome. Tomaram apenas um pouco de café. A chegada de Bié ao local é narrada como uma cena:

Todo molhado, desceu do burro, armou uma tenda, e descarregou as mulas. A lenha estava molhada, mas Bié não se perturbou: apanhou troncos de árvores caídas, rachou-os com o machado, tirou a parte de dentro, sequinha. Com um pouco de querosene, acendeu o fogo. Mesmo chovendo grosso, fez questão de arrumar a cozinha com a paciente minúcia de sempre (SOARES, 1969, p. 65).

Os anos de experiência da personagem refletem-se na forma como a mesma lida com as adversidades do ambiente e da caminhada. Além de conhecer e tomar os atalhos, Bié também consegue lidar com as chuvas que inundam o pantanal. Outro aspecto desvendado pelo trecho faz referência à meticulosidade da personagem. As leis por ele impostas são seguidas, até mesmo por ele, nas mais diversas situações.

A descrição do tempo decorrido ao longo da narrativa ganha uma dimensão que se reflete na forma como o narrador descreve a cena. No exemplo anterior, considerando-se que

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Bié possui duas horas para o desenvolvimento das atividades, as ações de montar o espaço do almoço e cozinhar são narradas compassada e gradualmente. Na passagem seguinte, onde os peões seguem para o almoço, observamos uma narrativa acelerada. Vejamos:

Enquanto uma turma vigia as reses, outra vai comer depressa; chega, desarreia os burros, solta-os por ali mesmo, serve-se nas panelas, agacha-se a um canto, come às garfadas com o prato na mão, volta a apanhar outro burro, arreia-o, monta-o, corre com ele até amansá-lo e vai de novo para a boiada. É tudo muito rápido, dura no máximo meia hora (SOARES, 1969, p. 65).

O termo ‘depressa’, empregado no início da passagem, e a expressão ‘é tudo muito rápido’, colocada ao final, corroboram a forma como a narrativa é construída. A não utilização de sujeito e o emprego de vírgulas para marcar a passagem de tempo e o encadeamento das ações, traduzem para o texto a principal característica daquele momento: não há espaço para o homem descansar e nem para que ele deguste a comida. O trecho tem de ser vencido, a boiada tem de avançar. Pouco importa, em realidade, como os homens vivenciam aquela experiência.

O clima do pantanal muda constantemente. No primeiro dia, a chuva torrencial da manhã dá lugar ao sol forte e quente durante a tarde. A parada para o almoço é um marco para a mudança de clima. Ao começar a desmontar o pequeno acampamento construído para a refeição, Bié demonstra, mais uma vez, suas características que visam além do perfil físico:

Bié tornou a arrumar a bagagem nas mulas. Uma delas, indócil desde a manhã, saiu correndo de repente pelo campo, acabou virando a traia e derramou toda a bagagem no chão. Bié foi até lá, arrumou-a novamente, com a mesma calma. Clarício deu-lhe um conselho:

- O senhor precisa arranjar outra mula. Essa aí vai lhe dar trabalho. - Nada, já estou acostumado (SOARES, 1969, p. 65).

O homem, portanto, habitua-se às dificuldades encontradas com os animais. O sujeito conforma-se a entender que o animal estará certo, sendo o homem, este sim, obrigado a adequar-se ao temperamento dos bichos. Clarício, mais novo, cogita a troca da mula. Bié, mais velho, alega já estar acostumado. A personagem, considerando-se a relação que estabelece com a boiada e a fazenda, não busca mudar suas condições de trabalho. As circunstâncias fazem com que ele dispenda mais esforço nas ações, mas ele não reclama, não exige condições melhores de trabalho. Como dito anteriormente, as leis trabalhistas não

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chegaram ao Pantanal. O texto nos desvenda como as personagens são exploradas pelos donos das fazendas, os detentores do poder.

Em determinadas passagens do texto, verificamos que a escolha de palavras efetuada pelo narrador converge para uma comparação entre os homens e os animais. Ao tratar do acesso à água constatamos que ambos as personagens dependem do ambiente, buscam nele formas de saciar as carências físicas. A seguir, transcrevemos a passagem da qual tratamos:

Sob a soleira, os peões soavam litros. Mas a água é que não faltava. Nem para os bois nem para eles. Os peões nem puseram as mãos em concha para beber a água morna das lagoas deixadas pela chuva: deitaram-se à beira das poças, mergulharam o rosto, na ânsia de matar a sede. Alguns usaram um lenço na boca para coar a água barrenta (SOARES, 1969, p. 66).

Os homens deitam-se ao chão, transmutam-se em animais, deixam escapar o aspecto animalesco que neles habita. Os bois e os peões realizam o mesmo movimento, frente à sede. No entanto, apenas no último período do trecho temos a oportunidade de construir uma imagem mental mais completa acerca do ambiente: a água está barrenta, não recomendável para o consumo. Mesmo assim, apenas alguns dos peões utilizam o recurso ao lenço. Homem e animal tomam as mesmas atitudes.

Os homens não nutrem relações de sociabilidade. De acordo com o terceiro título de página (Figura 7), eles “Vivem juntos muitos dias, mas pouco se conhecem”. Cada uma das personagens segue o papel que lhe foi dado pelo capataz da boiada, obedece maquinalmente aos desejos do dono da fazenda. O ato de se manterem distantes contribui para a construção de um sujeito que é calado, que não reage às adversidades do labor: se não dialogam, não criam laços, continuam sendo personagens isolados em meio ao Pantanal.

Mesmo os poucos movimentos que direcionam a narrativa para um momento de paz, uma suposta harmonia entre as personagens, é quebrado pelas comparações estabelecidas entre o que seria aquela ação em outros ambientes e no que ali se transforma: “Os bois vão caminhando e pastando, há tempo de os peões pararem um pouco para conversar. Nessa hora, a comitiva parece fazer um piquenique em constante movimento” (SOARES, 1969, p. 66). Um momento de compartilhamento de experiências, o piquenique daqueles homens tem de ser realizado sobre os burros, caminhando, enquanto estão atentos aos bois.

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Figura 7 - Devagar com o boi, Revista Realidade, nº 37, abr. 1969, p. 66-67

Fonte: Acervo do Grupo de Pesquisa Estudos Fotográficos (CNPq/UFCA)

Nos espaços no qual é permitida a conversa, algumas das personagens se sentem instigados a falar. Este é o caso de Miguel. O rapaz descreve para os companheiros como se deu a sua aproximação para com a futura mulher, tratando especialmente da relação estabelecida junto ao futuro sogro. Nesta passagem podemos ver um reflexo da insegurança que existe nas relações afetivas. Existe uma mudança de atitude do homem: se estiver tratando com o peão, temos uma reação; no ciclo familiar, outra:

- Pedi a moça em casamento. Tinha ouvido falar que o pai dela não me topava, mas ele até que me tratou bem. Só na hora. Depois que eu sai de casa, foi uma desgraça. O velho ficou uma fera, disse pra todo mundo que ia

me matar. Cheguei a ficar com medo, mas acho que vai dar tudo certo. Outro

dia, passei por ele, só nós dois sozinhos. Pensei: é agora. Aí, eu falei: “Boa tarde”. O velho respondeu: “Boa tarde”. É, pessoal, acho que quando eu voltar vou dar uma de casado. Aqui no Pantanal não tem mulher, o jeito é

casar logo (SOARES, 1969, p. 66).

Mesmo sabendo da insegurança da situação, o homem busca a mulher. A esposa, conforme destacamos anteriormente, é entendida como uma forma de amenizar despesas. Há

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um duplo interesse do homem em arranjar uma jovem. Existe uma significativa mudança na cotidianidade do peão a partir do momento em que encontra uma possibilidade de casamento. Observando-se a forma como a figura da mulher é tratada, ela é um sujeito objetivado, atribuída de um valor específico.

Daniel, Peri e Bié são casados. Daniel casou poucos dias antes de sair com aquela boiada. Os outros dois, no entanto, vivem uma forma específica de relação familiar, característica do ambiente do Pantanal: passam cerca de seis meses distantes dos familiares, os quais residem em outras cidades, distantes das fazendas. Um diálogo entre Bié e Peri resume a situação:

- Minha vida coincide muito com a do senhor [...] Também sou de perto de Bela Vista, passo mais de seis meses sem ver minha família, tenho filhos trabalhando em boiadas.

- Ué, o senhor também é casado? – espantou-se o capataz.

- Pois é, sou. Faz doze anos que eu venho aqui por estes lados e ninguém sabe disso. Ninguém me perguntou, não contei (SOARES, 1969, p. 66).

Os homens são o que é classificado, por meio do intertítulo, como ‘desconhecidos íntimos’. No entanto, não nutrem o que se possa chamar de intimidade, são apenas desconhecidos. A intimidade advinda do trabalho é uma intimidade de plástico, sem uma estrutura firme. Conhecem-se apenas no exterior, sem informações acerca do passado, do presente ou mesmo das intenções de futuro.

O tempo e o espaço merecem um intertítulo específico dentro da narrativa. Tal relevo é dado a estas duas instâncias de medida da vida por conta da relatividade que os dois conceitos possuem para aqueles homens. Sobre o tempo, o narrador traz a seguinte informação: “Os peões não têm relógios; calculam as horas pelo sol, por espaços de tempo ou caminhadas” (SOARES, 1969, p. 66). Não há rigor para qualquer tipo de medida realizada pelos peões. O mesmo acontece com os deslocamentos. O respaldo à informação é dado pela reprodução de um diálogo, sem personagens efetivas. A narrativa trata, neste ponto, do peão como uma categoria geral de personagem:

Uma légua tem 6 quilômetros, mas no Pantanal pode ter 5, 6, 7, ou até 10. Dependendo de quem compara:

- Daqui lá tem quantas léguas? - Umas duas.

- Duas léguas boas?

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A incerteza paira sobre estes homens. Não há como confiar no que é dito pelas demais personagens do pantanal (como é o caso do sogro que ameaça de morte o futuro membro da família); não há estabilidade quanto aos empregos (podendo ser demitidos a qualquer momento); e não há confiança acerca das medidas de tempo e espaço. As personagens passam pelo Pantanal sem fixarem-se a referências, quaisquer que sejam elas.

Os comandos dados aos bois têm de ter um tom autoritário. Esta referência, no texto, ao autoritarismo, pode ser lida como um reflexo da situação na qual os brasileiros viviam: como sabemos, o AI5 havia sido promulgado há poucos meses. No momento em que o narrador chama a atenção do leitor para o autoritarismo que rege aquelas relações, está dando a ele a possibilidade de fazer comparações entre as duas instâncias: o mundo vivido e o mundo narrado. No texto, observamos a seguinte passagem: “A voz tem que ser grossa, autoritária. O boi não obedece a voz sem tom de comando: olha o peão e continua a pastar. Por isso, Miguel de vez em quando grita um palavrão, faz xingamentos e piadas [...]” (SOARES, 1969, p. 68). Sob o regime ditatorial desde 1964, alguns movimentos de cunho contestatório já vinham tomando forma, mas tiveram sua maior expressividade no ano de 1968. Desta forma, podemos comparar a ‘voz de comando’ do peão com as medidas autoritárias do governo, que dariam respaldo à censura e à tortura.

O texto possui marcações temporais que localizam o leitor em meio à narrativa que se forma. Há referências à posição ordinal dos dias da jornada, por exemplo. Vejamos:

Perto da Fazenda do Divino, onde a comitiva pousou na terceira noite, o burro em que João Preto ia montado deu um pulo de repente, derrubou-o e saiu correndo. João preto puxou o 32, deu dois tiros na direção do animal, mas, mesmo com raiva, teve o bom senso de não fazer boa pontaria. Limitou-se a resmungar entre os dentes:

- Se fosse meu, danado, eu te matava (SOARES, 1969, p. 68).

Outro aspecto que se destaca no trecho acima citado é o conflito observado entre os instintos do homem e as atitudes que são entendidas enquanto a melhor opção para ele próprio e para o grupo. Quando a personagem diz que, caso aquele burro fosse seu, o mataria por ter tido uma reação que é plenamente esperada de um animal, está deixando transparecer uma reação que é, essencialmente, sua. O narrador, inclusive, opta por transcrever a reação da personagem em termos de construção frasal. A morte como resposta está sendo colocada, na narrativa, pela segunda vez. Ameaça-se de morte quando há descontentamento. Contudo, o sujeito não realiza a ação. O momento em que João Preto pega o revólver gera a expectativa,

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no leitor e nas demais personagens, da morte iminente. Mas há bom senso na reação da personagem. Ele atende às duas reações a partir da realização de uma única opção: atira para expressar sua raiva; não acerta o burro para que o patrão não tenha um animal perdido.

No dia seguinte, portanto quanto dia da jornada, os bois são contatos. Observa-se que o número não sofreu modificações, o que gera felicidade. A manutenção da quantidade de reses significa a possibilidade de prêmio para todos eles. Enquanto o número se mantém, os sonhos continuam a existir. No entanto, a felicidade é parcialmente alterada no próximo intertítulo: ‘Um desastre: falta um boi’.

Mesmo não tendo tido contato com a parcela da narrativa que explicita tal acontecimento, agora o leitor mantém-se na expectativa. Além disso, o peso dado ao fato o torna um ‘desastre’. Os homens podem perder até dois animais, mas depois que o primeiro está perdido, a possibilidade de alcançarem o prêmio reduz-se. O título de página (Figura 8), porém, alerta-nos para um fim ainda mais trágico: ‘Sumiram três bois: a jornada acaba sem alegria’. A narrativa trabalha a informação que estaria relegada ao clímax por meio de informações soltas ao longo das últimas duas páginas.

Figura 8 - Devagar com o boi, Revista Realidade, nº 37, abr. 1969, p. 68-69

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A narrativa prossegue com a descrição de um problema que acomete as reses. Alguns dos bois estão mancando, o que faz com que o capataz decida por passar a tarde descansando. Destacamos que a parada é realizada em função da saúde dos bois. A condição dos animais deve ser preservada. A parada será realizada na Fazenda Santa Rosa. Aquela jornada, o percurso realizado, conforme podemos perceber, é frequente. Os peões mais experientes já passaram por aquele local, conhecem as pessoas que ali habitam e nutrem certa expectativa quanto ao que ocorrerá. Conforme já alertado em outros extratos da narrativa, as esperanças, os sonhos dos homens, giram, entre outros focos, em torno da figura feminina:

Desde o primeiro dia, Bié e os peões que conheciam o caminho falavam da Santa Rosa:

- Lá tem duas moças bonitas, a mãe delas toca sanfona. Pessoal bom.

Na hora de dormir, os peões sempre diziam que iam sonhar com alguma mulher. Clarício chegou a sonhar mesmo [...] (SOARES, 1969, p. 68).

O narrador utiliza a passagem por aquela fazenda como gancho para tratar, no texto, das atitudes dos homens quanto às mulheres. Além de buscarem encontrar as moças disponíveis, os peões ainda depositam na possibilidade do sonho um momento de satisfação. Avisam que vão sonhar com as mulheres, posto que na solidão do pantanal não tenham a possibilidade de encontrá-las. Esta reação também pode ser tida como um reflexo de uma cultura que deposita na figura feminina a responsabilidade pela felicidade do homem, que transfere à sexualidade a possibilidade de satisfação pessoal, ou mesmo de fuga.

As brincadeiras realizadas pelos peões a fim de utilizarem a tarde, agora despendida em prol dos animais que não parecem estar bem de saúde, envolvem os elementos que ali estão. Miguel prega uma peça em Clarício, utilizando uma cachopa de marimbondos. Em um segundo momento, todos se divertem montando nos burros e realizando ações que os deixem mais bravos. As brincadeiras envolvem a emoção, a vontade de sentir medo, a expectativa de aumentar a produção de adrenalina na viagem, até então solitária e devagar. A segunda brincadeira culmina no deslocamento do ombro de Miguel.

A maior parte dos peões, especialmente aqueles que fazem parte dos quadros das fazendas há mais tempo, possui algum problema de saúde, advindo da lida com os animais. João Preto alega ter uma perna na mesma situação do braço de Miguel, ao passo que Vicente se queixa de uma dor que, na prática, não tem explicação: “- Burro bravo arrasa a vida da gente. Eu pareço sadio assim, mas vai ver me aparece umas dores esquisitas nos braços e nas pernas” (SOARES, 1969, p. 68). Ora, sendo os casos tão frequentes e todos sem solução,

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percebemos que os homens não têm acesso à saúde, aos hospitais. Adquirem os problemas e continuam a trabalhar, a esforçar-se. Não podem parar. Não possuem assistência do governo, não encontram facilmente os centros de saúde. Aprendem a lidar com os problemas.