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O dia seguinte: o valor associado ao caranguejo e ao futuro

Retornando a narrativa ao HOMEM, o vemos novamente na venda de Dona Nevinha, local no qual se reuniram pela manhã, antes de pegarem as canoas e partirem para o mangue. Ali combinam a viagem para João Pessoa, capital do estado, onde está localizada a melhor feira da região para vender o caranguejo e comprar o que for necessário. O narrador aproveita para explicar como é a rotina dos moradores daquela localidade:

A vida deles e dos outros pescadores de caranguejo de Livramento é assim: segunda e terça-feira passam enfiados na lama, juntando caranguejo que levarão para o mercado de João Pessoa na quarta-feira; quinta e sexta-feira são dias de apanhar caranguejos novamente para serem vendidos no sábado (DANTAS, 1970, p. 110).

Assim, a vida do homem está amarrada à do caranguejo de segunda-feira a sábado. Unidos na lama, no barco e na feira, em espaços distintos, mas sempre juntos. A cultura daquela comunidade, sua existência e subsistência dependem da lama e do animal. A luta com a natureza faz parte do cotidiano. Sem ela, não seria possível aos moradores ali viverem. Ou, teriam de estabelecer outra dinâmica de extrativismo, uma vez que aquela comunidade é estritamente rural.

Na capital, eles vão vender os caranguejos para pobres mais pobres do que eles. Viram feirantes. O preço da corda varia de acordo com o dia e com a oferta. Pode valer de NCr$ 0,60 até NCr$ 1,00. Ou, no final da feira, passar a valer nada. É quando os mais pobres avançam e levam o que podem. Os pescadores/feirantes não se incomodam, para não terem o trabalho de levarem o bicho de volta para casa. Com medo do prejuízo, muitas vezes recorrem aos contratantes, homens que os esperam no porto e compram os caranguejos no atacado, a preços mais baixos, mas que os impedem de pagar o imposto de chão (valor para expor produtos no mercado) ou de ter o risco de não vender (DANTAS, 1970, p. 110).

O texto dá ênfase à situação de pobreza da localidade. Expressões como ‘pobres como eles’ ou ‘pobres mais pobres que eles’ são utilizadas para descrever as pessoas que interagem como o mercado e com os feirantes, bem como os próprios feirantes, já que estes são tomados como ponto de referência para a comparação.

De volta ao tempo presente da enunciação, à venda de Dona Nevinha, os homens comentam sobre Severino, um dos pescadores que acaba de comprar um barco, Moça. Aproveitando a fala do pescador sobre a dificuldade para pagar a canoa, o narrador trata de

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outras duas problemáticas locais: o futuro dos jovens e a dependência da comunidade em relação ao caranguejo:

- Lá vem Severino, de cabeça inchada com a Moça – os homens brincam. Junto ao balcão, Severino diz que está de cabeça inchada, mas é para poder pagar a canoa. Amanhece o dia no mangue e só volta com o escurecer, isto não é vida de homem. Por isso, vai fazer tudo para arranjar uma arte para o filho maior, o Roberto. “Nem que seja de ajudante de caminhão”, tudo menos esta vida matadeira, este viver chafurdando na lama. Sabino concorda, é dura a vida de apanhador de caranguejo. Mas, e se não tivesse caranguejo no mangue, oferecido, para matar a fome da gente? (DANTAS, 1970, p. 110, grifo do autor).

Nos termos do próprio Severino, Roberto não deverá seguir o caminho dos demais integrantes da comunidade. O homem identifica, naquela profissão, mais características negativas que positivas. As mesmas vêm sendo apresentadas ao longo do texto: dias afundados na lama em troca de pouco dinheiro, que mal dá para sustentar a família, cortes e dor no momento da furagem, a miséria na qual estão mergulhados. Aquela vida, em última análise, não seria uma ‘vida’, mas antes puro sofrimento.

Os homens concordam que a vida é dura, que o povo de Livramento depende do caranguejo, mas também acreditam que se existissem outras possibilidades, mudariam de profissão. Nas filmagens de Os Homens do Caranguejo ou A propósito de Livramento41,

filme de Ipojuca Pontes realizadas no mesmo povoado em 1968, compadre Ota foi retratado como herói daquela história. Acabou herdando a alcunha. Pensando sobre o caso, declara: “– Na vida de caranguejo só foi o que eu ganhei: esse nome de Herói” (DANTAS, 1970, p. 110).

Enquanto isso, os caranguejos esperam dentro das canoas, amontoados, nervosos. Tal estado advém de algo natural que está por chegar, a andada. Durante as três primeiras luas novas do ano – a viagem dos repórteres para a apuração da reportagem foi realizada em janeiro – há a busca pelo acasalamento, onde os caranguejos abandonam suas tocas e não é necessário ir aos pântanos para pegá-los. “A festa dura três dias, depois eles – os que escaparam – voltam aos buracos, vão engordar, viver até o dia de serem apanhados” (DANTAS, 1970, p. 110). Ou seja, o caranguejo está fadado a ser apanhado pelas mãos do homem.

41 Mais informações no site da Cinemateca Brasileira. Disponível em: <http://cinemateca.gov.br/cgi-

bin/wxis.exe/iah/?IsisScript=iah/iah.xis&base=FILMOGRAFIA&lang=P&nextAction=search&exprSearch=ID= 026699&format=detailed.pft>. Acesso em: 20 out. 2014.

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No fechamento deste fragmento da narrativa referente ao caranguejo, último que lhe cabe na reportagem, o narrador diz: “Da festa da andada não participarão os bichos que agora estão encangados à espera de serem levados para a feira. Presos, eles não têm direito ao amor. Porque já perderam o direito à vida” (DANTAS, 1970, p. 110). Sobre a última parcela, podemos traçar um paralelo entre o que está acontecendo com o caranguejo e o que acontecia com os presos políticos da ditadura militar. Muitos desapareceram e até hoje os familiares não encontraram seus corpos.

A última parte do texto, referente ao HOMEM, tem início com a lenda do Batatão. O Pai do Mangue, como também é conhecido, assombra os pescadores de caranguejo. Quando estão indo aos pântanos, os catadores não podem citar seu nome, sob pena de que todos os caranguejos sumam do mangue, como que por encanto. Nestas ocasiões, o chamam apenas por Compadre, no que o narrador nomina de uma ‘intimidade medrosa’ (DANTAS, 1970, p. 110-112).

“Ninguém vê a figura, mas a latumia dá para qualquer um ficar de cabelo arrepiado” (DANTAS, 1970, p. 112). O Batatão vigia os homens, não os deixa pronunciar seu nome e, caso seja chamado por algum desavisado ou corajoso, todos escutam seu barulho, assustam-se com sua bagunça. Aqui vislumbramos um paralelo com as ações da censura após a promulgação do AI5. Avisados por bilhetes, os jornalistas não poderiam tratar de determinados temas ou citar palavras previamente listadas. Caso o fizessem, a ‘bagunça’ seria percebida: edições cortadas ou apreendidas, jornalistas perseguidos ou presos.

Voltando aos homens no pântano, o perigo maior, na visão do narrador, estaria em cortar-se nas raízes do mangue e adoecer, ficando entrevado. A lama, a mesma que dá o alimento, a possibilidade de viver em meio à miséria, pode ser responsável pela morte do sujeito. Tamanha a quantidade de problemas que percebem em seu entorno, os moradores cultuam uma espécie de altar à modernidade, ao futuro. O mesmo está localizado na venda de Dona Nevinha. Quem lê os anúncios é a filha dela, uma das poucas pessoas alfabetizadas na região. No entanto, não consegue interpretar parte do que aparece nos jornais. Como é o caso da ‘bola de cristal’:

Na parede de tábua da venda, cheia de recortes de revistas mostrando artistas – Cauby Peixoto faz pose em robe de chambre –, há também um título de jornal que diz: O Recife é uma bola de cristal. Logo abaixo, outro recorte diz que 1970 é bom ano pra ganhar dinheiro. Severino, Ota, Sabino, Luciano, Zé Prêto e os outros ficarão por aqui, não têm mais jeito. Mas todos estão de

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acôrdo em que os moços se libertem da escravidão do caranguejo (DANTAS, 1970, p. 112).

O narrador explicita a opinião dos pescadores acerca daquela condição de vida: não a desejam para seus filhos. Vivem-na porque não existe outra opção. Talvez não a tenham deixado na juventude justamente por não haver, à época, nas cidades de Recife ou de João Pessoa tal espectro de esperança para um futuro mais digno, menos miserável. Longe da lama.

Figura 19 - Povo Caranguejo, Revista Realidade, nº 48, mar. 1970, p. 112-113

Fonte: Acervo do Grupo de Pesquisa Estudos Fotográficos (CNPq/UFCA)

Como nos prepara o olho da página (Figura 19), os últimos três parágrafos da reportagem tratam de crianças. Para tanto, utiliza como exemplo o caso de Zé de Buga. “Meninos correm na lama: recomeça a luta do homem contra o caranguejo” (DANTAS, 1970, p. 112). O texto indica que logo na infância tem início a luta. Os meninos montam as ratoeiras e no dia seguinte, bem cedo, correm para a juntação. Os caranguejos apreendidos poderão ser utilizados para o almoço ou serem criados em chiqueirinhos, alimentados com frutas recolhidas no quintal de casa.

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Zé de Buga tem doze anos, mas já criou mais de cem caranguejos, alimentando-os com caju, manga e jaca. Foi juntamente com os homens, vendê-los em João Pessoa. Para ele, caçar, criar e vender o animal é praticamente um brinquedo. Algo naturalizado, que faz por ver os outros moradores da vila fazendo. Reproduz a cultura local, admitindo-a enquanto sua. No entanto, o encerramento do texto transparece um clima de prenúncio acerca do futuro daqueles meninos:

Agora já está começando a fazer nova criação. Quase um brinquedo. Se Zé de Buga não escapa a tempo, se ninguém der um jeito de levá-lo para o Recife – a sonhada bola de cristal – ou para João Pessoa, chegará o seu dia de pisar mais fundo na lama, de seguir o destino de quase todos os meninos de Livramento (DANTAS, 1970, p. 112).

No Quadro 2, elencamos os termos destacados graficamente ao longo do texto. São palavras próprias daquela região ou, em sua maioria, características daquele labor. Como podemos observar, todos se encontram nas parcelas referentes ao HOMEM. Apenas uma, a ‘andada’, também pode ser lida nos textos referentes ao CARANGUEJO. Associamos tal observação ao fato de o homem produzir ações, interagir com o ambiente na intenção de dominá-lo, como inimigo do caranguejo. Assim, o mesmo teve a necessidade de criar termos acerca das etapas de caça, para explicar o ambiente (mitos) ou para estabelecer as inter- relações que o envolvem em torno da lida com o caranguejo. Vejamos quais foram os termos e seus significados:

Quadro 2 - Termos em destaque em Povo Caranguejo, por ordem de entrada no texto

Termo Personagem Descrição

Ratoeira Homem Brinquedo infantil improvisado para caçar caranguejo, feito com lata de óleo vazia.

Boi de fogo Homem Lata onde são queimados pedaços de madeira com a finalidade de afastar mosquitos e acender cachimbos.

Andada Homem /

Caranguejo

Momento de acasalamento, durante o qual os caranguejos saem de suas tocas.

Cordas Homem 12 caranguejos, amarrados por embirras.

Sapateiro Homem Tipo de mangue.

Grades Homem Emaranhado de raízes do mangue sapateiro, onde está a maior quantidade de caranguejos e também os de maior tamanho.

Aratus Homem Espécie pequena de caranguejo, sem interesse comercial.

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caminho feito pelo caranguejo dentro da lama. Furagem Homem Retirada do caranguejo do buraco anteriormente

‘tapado’.

Furar Homem Ato de praticar a furagem.

Contratantes Homem Compradores que já esperam os pescadores na entrada do porto e compram o caranguejo por atacado, pagando um valor inferior.

Imposto de chão Homem Importância no valor de 50 centavos paga na feira a fim de utilizar aquele espaço.

Arte Homem Trabalho, ocupação.

A braço Homem Forma de pegar o caranguejo com as próprias mãos, por crianças, durante a andada.

Batatão / Pai do Mangue

Homem Mito do mangue. Se contrariado, faz com que todos os caranguejos desapareçam, por encanto.

Compadre Homem A forma como os pescadores se referem ao Batatão quando estão no mangue, a fim de que os caranguejos não desapareçam, numa forma de intimidade que remete ao medo.

Latumia Homem Lamentação, barulho.

Robe de chambre Homem Tipo de vestimenta, não comum na região.

Juntação Homem Ato de pegar os caranguejos que ficaram presos nas ratoeiras armadas pelas crianças.

Fonte: os autores.

Ao longo do percurso de leitura da reportagem, elencamos como palavras-chave para a redação da mesma os termos lama e miséria. Neste contexto, tais palavras transmutam-se em diversos sentidos. A lama, além do objeto em si, água e terra que compõe o mangue, também pode ser entendida como a própria miséria na qual o homem afunda, para a qual é empurrado pela condição na qual vive. O ambiente, e por conseguinte o Estado, não lhe dando outras condições de subsistência, implicam-no em uma condição cultural de lida com o caranguejo.

Ao tratar das condições de vida e trabalho daquela comunidade, os narradores traçam um retrato de uma pequena aldeia, distante e esquecida, historicamente predestinada à miséria e à humilhação diária. Em meio ao texto, os pescadores clamam por auxílio, mas que este venha às crianças, pois eles já estão acostumados àquilo e não veem a possibilidade de mudança imediata. Enquanto o Brasil cresce, aqueles brasileiros buscam na lama a sobrevivência.

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CAPÍTULO VII

NARRATIVA IV:

QUEM É O HOMEM NO FUNDO DO POÇO?

A partir da década de 1930, o estado de São Paulo foi um dos principais palcos de destino das migrações internas do país. De acordo com Baeninger (2012), até os anos de 1970 houve um deslocamento intersetorial da mão-de-obra, havendo transferência de trabalhadores das áreas rural para a industrial, o que contribuiu para o processo de industrialização nacional. Estima-se que, entre os anos de 1926 e 1960, São Paulo tenha recebido cerca de 2,5 milhões de migrantes internos (BAENINGER, 2012).

Com o crescimento do número de fábricas, houve também o desenvolvimento do movimento operário. Os movimentos dos grupos operários ligaram-se, diretamente, à situação política do país, tendo impacto, por exemplo, na promulgação do Ato Institucional Nº 5:

[...] desde o golpe de 1964, não havia ocorrência de greves no Brasil: quatro anos sem paralisações representavam uma vitória importante para a ordem estabelecida, não apenas no sistema político, mas também para o sistema produtivo e social. Assim, a eclosão das greves de Contagem (MG), de 16 a 18 de fevereiro de 1968, e da Cobrasma, em Osasco (SP), de 16 a 24 de abril de 1968, teve forte impacto no aumento das muitas tensões que levaram ao AI-5 (NORONHA; ERVOLINO, 2014, p. 94).

Tendo em vista a asfixia dos movimentos, por parte do regime, a próxima greve de operários só viria a acontecer em 1978. No entanto, a situação percebida pelo quadro daquele ano aponta para a insatisfação que os operários enfrentaram durante os dez anos que não conseguiram se organizar: foram registradas 111 greves no ano de 1978 e mais 187 paralizações no ano de 1979 (NORONHA; ERVOLINO, 2014).

A redação de Realidade dispunha de dados, em 1970, que apontavam para a miséria na qual viviam os trabalhadores que recebiam um salário mínimo no país, dando-se especial atenção para o quadro paulista. Vislumbraram neles a possibilidade de lançar luz sobre a verdade por trás da propaganda governista. Nos termos de Audálio Dantas, responsável pela

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pauta, “Esses números desmentiam os militares do Golpe de 1964, que apregoavam um ‘Brasil Grande’. Isso dava mais importância à reportagem, mesmo que, para driblar a censura, não se atribuísse culpa ao governo. Bastava mostra a verdade dos números” (DANTAS, 2012, p. 178).

Desvelando a intenção do grupo que fazia parte de Realidade, Audálio Dantas admite que, ao proporem a pauta que deu origem à reportagem sobre a qual nos debruçamos neste momento, aqueles jornalistas acreditavam que estariam contribuindo para combater a ditadura militar, mesmo que de uma forma, em partes, ingênua (DANTAS, 2012, p. 178).