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2 REFERENCIAL TEÓRICO

2.6 O TRABALHO MÓVEL

2.6.2 O dilema central: a gestão das fronteiras

Dentre os temas de pesquisa sobre o impacto dos DM no trabalho a gestão das fronteiras entre a vida particular e profissional ganha destaque. Trata-se do work-life balance, discussão antiga agravada pelo advento dos DM. Há mais de 30 anos são realizadas pesquisas sobre o tema para conhecer a luta do trabalhador entre os mundos da vida privada e trabalho; ainda que seja um problema maior para certos tipos de trabalho, integrar trabalho e vida pessoal é problemático aos trabalhadores em geral. (REINDL; KAISER; STOLZ, 2011, p. 3). O DM dificulta a preservação das fronteiras entre vida pessoal e trabalho. (LAL; DWIVEDI, 2010, p. 771).

O balanço bem-sucedido entre trabalho e vida pessoal depende de muitos fatores, benefícios pessoais e organizacionais, tangíveis e intangíveis. (REINDL; KAISER; STOLZ, 2011, p. 11). Profissionais e empresas podem fomentar esse equilíbrio nas dimensões organizacional e individual; o trabalhador deve expor suas necessidades e utilizar estratégias de gestão das fronteiras; a empresa deve capacitá-los a gerir as fronteiras, acompanhar iniciativas, atentar às soluções individuais, fomentar a integração dos mundos (privado e profissional) de forma amigável (na cultura organizacional) envolvendo todos os colaboradores. (REINDL; KAISER; STOLZ, 2011, p. 18).

As tecnologias da informação foram as grandes degeneradoras dessas fronteiras. A fronteira entre trabalho e não trabalho desapareceu pela ampliação do poder de comunicação e informação dos trabalhadores, poder de processamento de informação expansor dos limites espaço-temporais que afetam todos os trabalhadores, especialmente gerentes e técnicos. (WHITTINGTON; MAELLARO; GALPIN, 2011, p. 65). A degeneração das fronteiras torna difícil balancear trabalho e não trabalho, levando trabalhadores há dispensar muito tempo e energia (física e psicológica) ao trabalho e deixando ‘migalhas’ à vida pessoal, aos familiares e à vida em sociedade – e isso impacta não apenas nos trabalhadores, mas familiares e empregadores. (WHITTINGTON; MAELLARO; GALPIN, 2011, p. 65).

Seria possível aos usuários de DM balancear vida pessoal e trabalho? Whittington, Maellaro e Galpin (2011, p. 66) apresentam abordagem denominada “Whole-Life Model” para ajudar na gestão da vida em suas muitas dimensões (Figura 24). Para os autores trata-se de alcançar o bem-estar. É preciso que os trabalhadores lancem mão de artifícios, como novos comportamentos, explorem os espaços físicos, a

comunicação e o tempo, para assim, conseguirem balancear todas as dimensões envolvidas. (WHITTINGTON; MAELLARO; GALPIN, 2011, p. 71).

Figura 24: A whole-life model of success.

Fonte: Adaptação de Whittington, Maellaro e Galpin (2011, p. 66). Imagem elaborada pelo autor.

Estudos mostram algumas percepções dos trabalhadores sobre o uso de DM. Executivos de uma empresa de médio porte da indústria farmacêutica foi objeto de estudo de Borges e Joia (2013, p. 586) que verificaram a relação entre trabalhadores e DM como “ambígua e paradoxal”. Emergem sentimentos positivos sobre liberdade, mas trata- se de liberdade que atua sobre a vida privada; também emergem sentimentos de escravidão, dependência, improviso, prejuízos físicos e intelectuais; os executivos reconhecem os comportamentos obsessivos – advindos da obrigação de manter o aparelho ligado 24/7. (BORGES; JOIA, 2013, p. 599). De fato existem muitos paradoxos na relação entre trabalhadores e tecnologia.

O primeiro [...] está relacionado à ideia de que o smartphone contribui para que os empregados estejam continuamente conectados, mantendo um amplo fluxo de informação. Entretanto, esta continuidade pode ser controlada pelo usuário à medida que ele decide quando e como vai

responder à mensagem. Desse modo, a ideia de fluidez de informação [...] pode [...] não ser tão contínua assim. O segundo paradoxo [...] é autonomia vs. vício. Esse paradoxo sustenta que, apesar de muitos usuários [...] afirmarem que o uso [...] aumenta a autonomia e a flexibilidade [...] muitos se sentem obrigados a manter seus aparelhos ligados. (BORGES; JOIA, 2013, p. 599).

A lucratividade das organizações é maior com o fenômeno móvel. A relação entre DM e contexto social de uso por trabalhadores foi objeto de estudo de Cousins e Robey (2014, p. 34) que constatam o crescimento da “força de trabalho móvel” pela pervasividade ou ubiquidade dos DM. A tecnologia esmaece limites anteriores entre trabalho e vida privada ao acabar com as restrições espaço-temporais e a produção aumenta (afinal, os DM permitem trabalhar em qualquer lugar) em conjunto com o lucro das empresas, advinda do aumento da produção individual e do poder de contatar os trabalhadores a qualquer hora e lugar. (COUSINS; ROBEY, 2014, p. 34-35).

De fato ocorre a ampliação dos ganhos das organizações com o uso de DM pelos trabalhadores. Além de ampliar os níveis de produção e o número de clientes, receitas e reduzir os custos de operação, os DM facilitam a comunicação entre empregados, clientes e fornecedores pela eficiência e pelo acesso à informação, também permitem mudanças na forma como as organizações gerenciam os negócios; existe forte associação entre o uso de DM e impactos positivos nos resultados das organizações, mas isso depende da forma como a tecnologia é adotada, da utilidade percebida e do ambiente organizacional. (LUNARDI; DOLCI; WENDENDLAND, 2013, p. 698).

A temática sobre gestão das fronteiras entre trabalho e vida privada é antiga. É anterior a emergência dos DM e tornou-se extremamente atual; destacam-se as abordagens que fomentam o balanço entre os aspectos negativos e positivos do uso de DM. (COUSINS; ROBEY, 2014, p. 35-36). Para Cousins e Robey (2014, p. 61-62) a tecnologia é central na gestão das fronteiras e as “affordances” ou qualidades percebidas dos DM (pelas características intrínsecas do aparelho) podem contribuir com essa tarefa, ao produzir “affordances” que podem ser assimiladas ao trabalho; são “affordances” geradas pelo uso do aparelho e que podem colaborar na gestão das fronteiras físicas, temporais e psicológicas. As principais "affordances da tecnologia

móvel" são apontadas pelos autores como sendo a “conectividade”, “personalização”, “identificação” e “interoperabilidade”. Os trabalhadores podem usar as ferramentas dispostas nos DM e aplicativos para evitar a fadiga e realizar a gestão das fronteiras.

Porém, é preciso cautela e discernimento em relação às affordances para conhecer com precisão quais devem ser apoiadas ou combatidas, porque avaliar os objetos pela qualidade percebida pelo cliente mostra como são usados: por exemplo, uma cadeira possui qualidade/affordance para sentar, mas pode ser utilizada para machucar alguém; em outras palavras, as qualidades mudam conforme o usuário, fatores e necessidades; as tecnologias possibilitam muitas affordances, são passíveis de muitos usos, justamente por isso que é mister avaliar os aspectos éticos desses usos possíveis. (MOROVOZ, 2011, p. 296-297).

Os trabalhadores podem atuar de muitas formas para gerir as fronteiras, mas a questão passa necessariamente pelo perfil do usuário. Ações simples como silenciar ou desligar o aparelho em momentos oportunos pode ajudar na gestão das fronteiras, e os DM também segundo Hislop e Axtel (2011, p. 42), mas é preciso compreender a natureza do trabalho realizado. De fato, alguns aspectos negativos são atenuados pelo uso do DM, afinal, o aparelho é também utilizado para fins pessoais durante o trabalho, uso salutar porque as interações virtuais minimizam a ausência de relações face-a-face.

Trabalhadores de um banco internacional foram investigados para identificar como lidam com o DM no trabalho e como gerenciam trabalho e lazer. (DERY, KOLB; MACORNICK, 2014, p. 568). Verifica-se que as organizações fomentam o trabalho remoto e os trabalhadores são impelidos a decidir pela desconexão, tempo livre e descanso; essa decisão (sobre trabalhar ou não) ocorre sempre em momentos de não trabalho, ou seja, evidencia-se que os DM são usados para manter os trabalhadores conectados ao trabalho (já não se pode desligá-los), pois é no DM que se decide trabalhar ou não. (DERY, KOLB; MACORNICK, 2014, p. 558-559).

Os indivíduos podem escolher quando e quanto de conexão [...] as escolhas de conexão afetam a vida social e pessoal. [...] Enquanto os usuários de smartphones não podem escapar das suas decisões de conexão, as formas como eles negociam com a conexão móvel vem mudando muito em pouco tempo [...]. Os usuários interagem com seus smartphones e não usam a tecnologia apenas para

apoiar as suas demandas de trabalho, eles também remodelam o trabalho em torno do que a tecnologia pode fazer. (DERY; KOLB; MACORNICK, 2014, p. 559).

Os trabalhadores precisam lidar com essa nova realidade. Executivos lutam para desligar o DM, mas são conectados demais para isso, reconhecem a importância do aparelho, dependência e vício advindos; assim, procuram formas de evitar os excessos; mas o mundo caminha rapidamente para a ubiquidade/conexão permanente que degenera as fronteiras entre vida profissional e pessoal (mundos coexistentes num mesmo aparelho); controlar esses universos como apenas um torna-se uma busca constante dos trabalhadores. (DERY, KOLB; MACORNICK, 2014, p. 568-569).

O problema da gestão das fronteiras poder ser agravado pelo trabalho em casa. Estudo com homeworkers mostra o tempo atuando sempre em detrimento da vida pessoal dos trabalhadores, que permanecem conectados ao longo da jornada de trabalho, fora dela e muitos exercem a ubiquidade 24/7. (LAL; DWIVEDI, 2010, p. 766). Trabalhadores permanecem disponíveis além do expediente ou integralmente (mas embora seja possível ser ubíquo, a realidade se mostra diferente) e isso afeta a noção de tempo-espaço dedicado ao trabalho e torna mais difícil controlar as fronteiras; o trabalhador também deve gerir pessoas e contatos, decidir quando, onde e quem pode fazer contato, ou seja, espaço, tempo e pessoas devem ser controlados pelos trabalhadores. (LAL; DWIVEDI, 2010, p. 771).

As organizações precisam criar estratégias para lidar com a mobilidade dos trabalhadores e clientes. Precisam conhecer como os DM são interpretados e colocados em prática e tanto empresas quanto trabalhadores devem observar a origem da pressão da ubiquidade (ou de estar constantemente acessível) e assim, criar soluções para reduzir as desvantagens do uso desse tipo de tecnologia. (MATUSIK; MICKEL, 2011, p. 1002). A ubiquidade de fato é um problema que deve ser enfrentado por empregados e empregadores.

A ubiquidade também deve ser enfrentada pelos profissionais da educação. As instituições de ensino precisam reconhecer que os estudantes não se desconectam dos DM e assim, praticar o ensino de novas maneiras com o auxílio de DM, com web sites e sistemas adaptados ao acesso via DM. Makinson et al. (2012) sustentam que “os investimentos em recursos on-line pode ser a melhor maneira de atrair os melhores alunos do futuro”.

Assim, verificaram-se na presente seção alguns aspectos do trabalho sob a influência dos DM, consequências e dilemas do trabalhador (móvel ou não) e a gestão das fronteiras por meio de uma tecnologia que reúne em si trabalho, ensino, vida pessoal, entretenimento e relações sociais. O trabalho acontece concomitante à interação familiar e social e o trabalhador acessa trabalho no tempo livre, seja pela simples leitura de mensagens de texto ou checagem à caixa de correio eletrônico. Trata-se de novo paradigma das relações de trabalho.

Os estudantes de pós-graduação também lidam com o trabalho, vida social e ensino no mesmo dispositivo e gerenciam os limites entre esses universos por meio de estratégias particulares, assim, as instituições de ensino precisam lidar com o novo fenômeno do estudante móvel. Associar a tecnologia avançada dos DM às práticas de ensino representa um dos grandes desafios às instituições de ensino na atualidade. Muitas pesquisas realizadas sobre usuários de DM envolvem estudantes universitários, estudos que oferecem algumas pistas sobre como lidar com esse novo usuário da informação.