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O direito de defesa, o contrato social e a dignidade humana

No documento ÉRICA DE OLIVEIRA HARTMANN PROCESSO (páginas 127-131)

CAPÍTULO III – A AMPLA DEFESA

3.1. A origem contratual do direito de defesa: Hobbes, Locke e Rousseau

3.1.2. O direito de defesa, o contrato social e a dignidade humana

De uma maneira geral, os ordenamentos jurídicos modernos reconhecem o direito de defesa como um direito fundamental dos homens. Segundo MARIO VALIANTE, em verdade,

o direito de defesa deriva da lei natural, que induz o indivíduo à luta pela existência e à rejeição de qualquer intrusão em sua esfera de interesses. Como tal, sempre foi reconhecido, por todos os povos e por todos os ordenamentos. A civilidade jurídica depois o disciplinou com regras uniformes e objetivas, fazendo-o perder o caráter de uma mera autotutela e o transformando-o em instituto jurídico.437

A defesa é, assim, nada mais do que manifestação do instinto de conservação. E isso, sobretudo, no processo penal. É, neste contexto, a contraposição à acusação e é necessária para o equilíbrio do processo, sob pena de se encontrar o acusado em situação de inferioridade. Esta concepção da defesa com a amplitude da acusação é, para VALIANTE, ―a grande conquista da civilidade jurídica‖.438 É, ainda, ―a outra face da liberdade‖.439

Neste passo, é possível buscar fundamento para o direito de defesa no contrato social.

Viu-se que, seja para HOBBES, seja para LOCKE, seja para ROUSSEAU, ainda que em graus distintos, na formação do pacto social, o indivíduo não abdica de todos os seus direitos em favor do Estado. Em todos, permanece um conteúdo mínimo a ser preservado, ainda que de maneira latente. Ao se indagar sobre esse

435 ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social. Trad. Antonio de Pádua Danesi. São Paulo:

Martins Fontes, 1999, p. 103-106.

436 ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social. Trad. Antonio de Pádua Danesi. São Paulo:

Martins Fontes, 1999, p. 125-127.

437 VALIANTE, Mario. Il nuovo processo penale: principi fondamentali. Milano: Giuffrè, 1975, p. 239.

(tradução livre)

438 VALIANTE, Mario. Il nuovo processo penale: principi fondamentali. Milano: Giuffrè, 1975, p. 240.

(tradução livre)

439 VALIANTE, Mario. Il nuovo processo penale: principi fondamentali. Milano: Giuffrè, 1975, p. 240.

(tradução livre)

conteúdo mínimo, encontram-se distintas manifestações dos próprios autores brevemente trabalhados. Mas, ao que parece, é possível afirmar que o direito à vida faz parte desse conteúdo mínimo.

E, ao se falar em Direito Penal e em processo penal, é inevitável que se faça referência à vida: ao menos à vida daquele que está sendo processado, o acusado.

Em última análise, como se bem sabe, especialmente no processo penal, o juiz tem – e exerce – um poder de vida e de morte, embora não aplique formalmente uma pena de morte, só excepcionalmente aceita no Brasil (art. 5º, XLVII, a, CR/88), mas materialmente o cumprimento de uma pena de prisão – ou mesmo de uma medida de segurança – significa justamente morrer aos poucos, não só o espírito, mas o corpo, ante a degradante condição dos estabelecimentos prisionais.

Assim, o Estado, no exercício material do poder punitivo, é capaz de invadir, de uma forma não autorizada, talvez indireta, o direito à vida.

Ocorre que é justamente a proteção dos direitos dos indivíduos pelo Estado que dá ao pacto legitimidade. Como ressalta SALO DE CARVALHO,

aliás, entendemos que este resguardo dos direitos do indivíduo representa o fundamento de uma teoria heteropoiética da legitimidade, ou seja, uma legitimidade que advém de fora, externa às entranhas estatais e direcionada à satisfação máxima da cidadania. Uma legitimidade de baixo, que pertence ontologicamente ao indivíduo em sociedade. Há, portanto, uma justificativa na titularidade do poder encontrada nos indivíduos, configurando uma teoria democrática do governo.440

Entendida a legitimidade dessa forma, é possível defender, com LOCKE, um verdadeiro direito de resistência a qualquer abuso de poder por parte do Estado441. Mas quando se pensa num direito de defesa processual, este não pode ser invocado apenas excepcionalmente, senão que deve sempre ser garantido e exercido em todos os processos criminais, mesmo que não se tenha propriamente configurada uma situação de abuso de poder (já que o processo é necessário).

Ademais, o direito de defesa é afeto à própria dignidade humana, e esta é justamente uma ―qualidade intrínseca da pessoa humana, irrenunciável e inalienável, constituindo elemento que qualifica o ser humano como tal e dele não

440 CARVALHO, Salo de. Pena e garantias: uma leitura do garantismo de Luigi Ferrajoli no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 46.

441 CARVALHO, Salo de. Pena e garantias: uma leitura do garantismo de Luigi Ferrajoli no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 50-53.

pode ser destacado‖442 e reconhece a todos os homens a titularidade de direitos que devem ser reconhecidos e respeitados pelo Estado e pelos demais semelhantes.

Aliás, quando se fala de dignidade humana, pressupõe-se justamente o reconhecimento do homem como sujeito com consciência e vontade e que tem, certamente, direito de se defender toda vez que sua condição humana é ameaçada.

Desse modo, na esteira dos ensinamentos de GÜNTER DÜRIG, se a dignidade humana é violada, ofendida, toda vez que o homem é rebaixado a objeto, por certo um meio dessa ofensa ocorrer é não reconhecer aos acusados o direito de se defender.443

O que se percebe, em última análise, é que onde não houver respeito pela vida e pela integridade física e moral do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde não houver limitação do poder, enfim, onde a liberdade e a autonomia, a igualdade (em direitos e dignidade) e os direitos fundamentais não forem reconhecidos e minimamente assegurados, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana e esta (a pessoa), por sua vez, poderá não passar de mero objeto de arbítrio e injustiças.

Tudo, portanto, converge no sentido de que também para a ordem jurídico-constitucional a concepção do homem-objeto (ou homem-instrumento), com todas as conseqüências que daí podem e devem ser extraídas, constitui justamente a antítese da noção de dignidade da pessoa [...].444

É bem verdade que no atual estado das coisas, pensando na função real da pena e do processo penal, como visto, o processamento dos casos tem sido quase sempre um ato atentatório ao indivíduo, como esclarece ALESSANDRO BARATTA, ao falar do eficientismo penal445, o que justificaria, então, o direito de defesa como

442 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 40. Nesta passagem, o autor faz menção aos ensinamentos de Günter Dürig (Der Grundsatz der Menschenwürde. Entwurf eines praktikablen Wertsystems der Grundrechte aus Art. 1 Abs. I in Verbindung mit Art. 19 Abs. Ii des Grundgesetzes, in: Archiv des Öffentlichen Rechts (AÖR) nº 81 (1956), p. 9 e ss.)

443 A fórmula do homem-objeto, de GÜNTER DÜRIG (Der Grundsatz der Menschenwürde. Entwurf eines praktikablen Wertsystems der Grundrechte aus Art. 1 Abs. I in Verbindung mit Art. 19 Abs. Ii des Grundgesetzes, in: Archiv des Öffentlichen Rechts (AÖR) nº 81 (1956), p. 127) é citada por INGO WOLFGANG SARLET: SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 58.

444 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 59-60.

445 BARATTA, Alessandro. La politica criminale e il diritto penale della costituzione. Nuove riflessioni sul modello integrato delle scienze penali. Dei delitti e delle pene, Napoli, Edizioni Scientifiche Italiane, a. V, n.3, settembre-dicembre 1998, p. 18: ―Il patto sociale próprio della modernità, il diritto moderno e le sue costituzioni, sono legati al tentativo di porre un argine alla guerra, di civilizzare e di sottoporre a regole istituzionali i confliti politici e sociali. All‘interno di questo processo, la sicurezza dei cittadini costituisce ‗la promessa centrale dello Stato‘ [...] La condizione di validità e di efficacia del patto è l‘eliminazione della violenza grazie al monopolio legittimo dell‘uso della forza da parte dell‘apparato di uno Stato imparziale. Sappiamo invece che il risultato storico – da allora alla radice della crisi della modernità, assai spesso descritta nei discorsi che si autoqualificano ‗postmoderni‘ – è

um direito de resistência. Mas não se quer que essa situação se perpetue; almeja-se uma sociedade mais democrática e mais humana, em que inevitavelmente indivíduos serão processados, pois crimes sempre serão cometidos, sem que isso signifique necessariamente abuso de poder por parte do Estado. E, para que isso seja possível, é preciso reformular o pacto moderno, numa aliança das vítimas da modernidade, garantindo a inclusão dos excluídos, com efetiva garantia dos direitos fundamentais, como aduz BARATTA446. É preciso investir e buscar um Direito Penal e – de consequência, do Direito Processual Penal – que respeite as garantias individuais e princípios de limitação do poder punitivo estatal447. E um dos pontos a ser considerado, sem dúvida, é o direito de defesa.

Por isso, mesmo que teoricamente fora de um contexto abusivo, é possível defender que o direito à vida, e o seu exercício, mais especificamente o direito de defesa, e seu exercício (ou seja, meio de conservação da vida), devem ser efetivados pelo cidadão porque simplesmente nunca foram transferidos ao Estado.

Nunca saíram do indivíduo. Aliás, quando acordaram entre si, parece razoável entender que estabeleceram ainda que ao Estado caberia garantir a efetivação dos

che il diritto moderno, nel tentare di arginare la violenza, ha finito per occultarla, escludendo dal patto i soggetti deboli e rendendo, in tal modo, giuridicamente invisibili la diseguaglianza e la violenza strutturale nella società. Il caso della pena ‗pubblica‘ è sintomatico. L‘ideologia dei Lumi e la legislazione dello Stato costituzionale hanno tentato di addomesticarne la crudeltà premoderna, di amministrarla come um rimedio che, nonostante la sua amarezza, è tuttavia efficace contro la violenza. Ma il potere punitivo continua a rivelarsi come un veleno che alimenta la violenza dello Stato e della società. L‘interrelazione fra la conflittualità sociale e politica ed il processo istituzionale ed informale di criminalizzazione, tra disiguaglianza e ripressione, tra violenza strutturale e violenza penale, è una costante nella storia delle società moderne e dei loro sistemi punitivi.‖ ―O pacto social é próprio da modernidade, o direito moderno e suas constituições, são ligados à tentativa de pôr uma barreira à guerra, de civilizar e de sobrepor a regras institucionais os conflitos políticos e sociais. No interior deste processo, a segurança dos cidadãos constitui ‗a promessa central do Estado‘ [...] A condição de validade e de eficácia do pacto é a eliminação da violência graças ao monopólio legítimo do uso da força pelo aparato de um Estado imparcial. Sabemos, porém, que o resultado histórico – de agora desde a raiz da crise da modernidade, de regra descrita nos discursos que se autoqualificam como ‗pós-modernos‘ – é que o direito moderno, ao tentar conter a violência, acabou por ocultá-la, excluindo do pacto os sujeitos débeis e tornando, dessa forma, juridicamente invisíveis a desigualdade e a violência estrutural na sociedade. O caso da pena ‗pública‘ é sintomático. A ideologia dos Illuministas e a legislação do Estado constitucional tentaram domesticar a crueldade pré-moderna, administrá-la como um remédio que, não obstante seu amargor, é ainda eficaz contra a violência. Mas o poder punitivo continua a se revelar como um veneno que alimenta a violência do Estado e da sociedade. A interrelação entre a conflitualidade social e política e o processo institucional e informal de criminalização, entre desigualdade e repressão, entre violência estrutural e violência penal, é uma constante na história das sociedades modernas e dos seus sistemas punitivos.‖ (destaques no original) (tradução livre)

446 BARATTA, Alessandro. La politica criminale e il diritto penale della costituzione. Nuove riflessioni sul modello integrato delle scienze penali. Dei delitti e delle pene, Napoli, Edizioni Scientifiche Italiane, a. V, n.3, settembre-dicembre 1998, p.19-20.

447 BARATTA, Alessandro. La politica criminale e il diritto penale della costituzione. Nuove riflessioni sul modello integrato delle scienze penali. Dei delitti e delle pene, Napoli, Edizioni Scientifiche Italiane, a. V, n.3, settembre-dicembre 1998, p. 24.

seus direitos fundamentais, sob pena de não mais ter razão de ser o acordo. Neste sentido, o exercício do direito de defesa assume uma dupla vertente: é manifestação da dignidade humana e da legitimidade da intervenção do poder punitivo do Estado.448

3.2. Concepção dogmática da autodefesa nos sistemas

No documento ÉRICA DE OLIVEIRA HARTMANN PROCESSO (páginas 127-131)