• Nenhum resultado encontrado

Teoria da situação jurídica

No documento ÉRICA DE OLIVEIRA HARTMANN PROCESSO (páginas 172-178)

CAPÍTULO IV – O PROCESSO PENAL

4.2. A natureza jurídica do processo penal

4.3.2. Teoria da situação jurídica

A teoria de GOLDSCHMIDT padece também de certo caráter utópico, pois atribui, ao que parece, todo o resultado do processo ao cumprimento do ônus da prova pela parte. Isso não ocorre nem no processo civil, nem no processo penal. Em que pese a grande contribuição do autor alemão, fato é que o resultado do processo, ou seja, a sentença, depende exclusivamente do juiz, apesar do que houve durante o desenvolvimento do processo, como bem assevera ALEXANDRE MORAIS DA ROSA, ao defender a sentença como um bricolage de significantes.602

FRANCO CORDERO admite que a teoria de GOLDSCHMIDT deu mesmo aos estudos sobre a natureza do processo uma direção inusitada. Apontou com propriedade as falhas da teoria de BÜLOW quanto aos pressupostos processuais e trouxe elementos sociológicos para o exame do processo. No mais, porém, utilizou-se de uma desconfortável mistura de argumentos e petições de princípio, com considerável viés crítico, para destruir a teoria da relação jurídica, mas, afinal, não revelada como propriamente uma investigação científica do processo. Suas categorias, por outro lado, encontrariam adequação na teoria do procedimento.603

GIOVANNI LEONE, na esteira de CORDERO, não admite a concepção do processo como situação jurídica, primeiro porque nega as relações que se instauram entre os sujeitos processuais, segundo porque nega a relação unitária entre tais sujeitos, principal momento do processo.604 Entende que o conceito proposto de situação jurídica não é idôneo para substituir o antigo e útil conceito de relação jurídica, desde o ponto de vista científico e sistemático:

601 GOLDSCHMIDT, James. Problemas jurídicos y políticos del proceso penal. In: Princípios generales del proceso. Mexico: Editorial Jurídica Universitária, 2001, p. 93-94. (destaques no original) (tradução livre)

602 ROSA, Alexandre Morais da. Decisão penal: a bricolage de significantes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

603 CORDERO, Franco. Le situazioni soggettive nel processo penale. Torino: G. Giappichelli, 1956, p. 15; 26-27.

604 LEONE, Giovanni. Trattato di diritto processuale penale. v. I: dottrine generali. Napoli: Jovene, 1961, p. 225.

uma categoria conceitual que se substancia na relação entre um sujeito e a descrição de uma conduta sob um certo aspecto constitui o objeto de uma consideração antiga e óbvia (ou seja, o juízo de conformidade ou de desconformidade com relação ao modelo de uma conduta) e, de qualquer forma, não consegue delinear, ao menos como está posto, uma peculiaridade capaz de lhe dar a função substancial a ponto de acertar a sistemática jurídica.605

HÉLIO TORNAGHI também tece críticas a GOLDSCHMIDT, como segue:

a meu ver, Goldschmidt encara o processo como ele é, de facto, por força da imperfeição humana e não como deve ser, de iure. Realmente o processo pode levar a uma solução aparentemente injusta do litígio se as partes não se valem devidamente de seus ‗direitos processuais‘. Mas isso apenas acontece nos de tipo dispositivo. Ora, se as partes não exercem tais ‗direitos‘ é sinal que deles dipõem e abrem mão do direito substantivo que poderiam ver protegido, se quisessem. [...]

No artigo que escreveu em memória de Goldschmidt, Calamandrei sustentou que a teoria do processo como situação jurídica se funda num princípio moral [...] o que em linguagem jurídica se traduz por princípio da auto-responsabilidade das partes. Não contesto a reta intenção de Goldschmidt, que não está em jogo, mas creio que sua afirmação não colhe quando a lei, por motivos de ordem pública, limita, ou até exclui, o poder dispositivo das partes e dá ao juiz função inquisitiva.

Em particular, a concepção de Goldschmidt não corresponde ao processo penal. E não parece tenha ele sido feliz mesmo na apreciação da realidade. Que dentro do processo haja situações jurídicas é coisa que não se pode negar e muitos são os autores que, modernamente, as estudam. Mas que o processo seja apenas uma seqüência de situações jurídicas é o que se deve absolutamente repelir. Que laço invisível, que harmonia pré-estabelecida ligaria essas situações? Donde viria a unidade do processo, essa unidade, essa identidade firme, incontestável, que se sente mais do que se prova e que faz dele um todo com sentido próprio, diferente de cada um dos atos ou das situações processuais? Que são as situações em si mesmas? Que significam? Que valem? Nada! É verdade que Goldschmidt lhes aponta um ligame teleológico, assinando-lhes a todas uma direção, pondo-as em relação com a sentença favorável. Mas isto explica um laço externo entre cada uma e a sentença, não um vínculo entre elas.606

No entanto, apesar de preciss as observações de TORNAGHI, fato é que mesmo no processo civil, fundado no princípio dispositivo, a teoria de GOLDSCHMIDT padece dos mesmos problemas, porque inclusive lá (ao menos na sistemática brasileira) o juiz pode ter certa participação na produção probatória e, ainda, há muitos casos de parte hipossuficiente, incapaz de exercer adequadamente seus direitos processuais.

Para AROLDO PLÍNIO GONÇALVES, a teoria da situação jurídica teve um

605 LEONE, Giovanni. Trattato di diritto processuale penale. v. I: dottrine generali. Napoli: Jovene, 1961, p. 226. (tradução livre)

606 TORNAGHI, Helio. Instituições de processo penal. v. 1. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1977, p. 393-394. (destaques no original) O autor ainda continua as críticas nas páginas seguintes, com maiores detalhes.

papel muito importante: negar a teoria da relação jurídica, ou seja, demonstrar a impossibilidade de se dizer existentes vínculos imperativos entre os sujeitos processuais. De fato, o processo comporta situações jurídicas, mas elas não são capazes de definir o processo em si, ―porque, como instrumento do exercício da jurisdição, ele é uma estrutura normativa que as comporta.‖607

ROSEMIRO PEREIRA LEAL critica GOLDSCHMIDT de maneira mais incisiva. Reconhece que ele se liberta da visão privatística do processo, mas, por outro lado, entende GOLDSCHMIDT ser o processo o meio de realização da jurisdição, cujo provimento final apenas definiria a existência de um duelo entre as partes, como se fosse um jogo em que se busca uma vitória espetacular.

Ademais,

não precisava a sentença apontar os fundamentos jurídicos para sua elaboração e conclusão, porque, segundo Goldschmidt, a sentença é uma resolução do conflito que não guardava uma ‗relação causal‘ com o processo, não passando os ‗direitos processuais‘ de meros prognósticos que poderiam ou não ser aproveitados pela sentença em prol de qualquer dos contendores. Deduz-se que, em Goldschmidt, o direito subjetivo, que ele tanto combateu, migrou, em sua teoria, para a atividade jurisdicional do juiz que, conforme doutrinou, poderia emitir sentença sem nexo jurídico de causalidade imperativa com as situações criadas pelas partes no curso do processo. [...] Por fim, para Goldschmidt, o processo era uma forma alegórica de canteiro judicial onde as partes lançavam suas alegações que poderiam ou não germinar pelo adubo íntimo do entendimento do julgador.608

Outras duas ponderações podem ser feitas ainda sobre a teoria de GOLDSCHMIDT. A primeira delas se refere à afirmação do autor de que o descumprimento de uma expectativa processual, por parte do juiz, não gera antijuridicidade ou lesão de direito, e as conseqüências do ato equivocado só podem ser a declaração da nulidade ou a recorribilidade da decisão. Tal posição, quer parecer, pode entrar em conflito com a idéia do próprio autor quanto às obrigações do juiz, já que afirma, em certo momento, que o dever do juiz de administrar a justiça decorre da própria função jurisdicional e que as infrações a essas obrigações não geram conseqüências processuais, apenas, se for o caso, civis e/ou penais. Então, no final, duas dúvidas restam: (a) o juiz pratica ou não atos ilícitos? e (b) quais são as conseqüências desses atos?

A segunda se refere à noção de pretensão processual. Segundo as palavras

607 GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 2001, p. 101.

608 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 7. ed. Rio de Janeiro:

Forense, 2008, p. 80-81.

do próprio GOLDSCHMIDT, a pretensão é afirmação do nascimento de um direito (para o Estado) de penalizar alguém, como visto acima. No entanto, parece claro que não só não existe um direito de penalizar por parte do Estado, e sim um poder, mas também que esse poder punitivo só pode ser exercido, de fato, sobre o condenado por sentença transitada em julgado. Assim, ligar a atuação estatal a uma provocação de um terceiro, informada por essa noção de pretensão, é bastante perigoso. Eis a importância da discussão da ação penal.

De todo modo, há vários pontos a serem considerados nos escritos de GOLDSCHMIDT. Como sua teoria foi formulada tendo em conta o processo civil, ainda que ele mesmo tenha reconhecido a possibilidade de aplicá-la ao processo penal, trabalha eminentemente com um processo dispositivo, em que as partes têm possibilidades quanto à disposição de seu conteúdo, o que, na atual estrutura do processo penal, mesmo em tempos de composição civil e transação penal, ainda não pode ser visto dessa forma. Em outras palavras, na atual estrutura ainda se trabalha com o monopólio da violência por parte do Estado e com a indisponibilidade do conteúdo do processo (caso penal) por parte do Ministério Público, por isso o grande problema causado pelos dois mencionados institutos previstos na Lei dos Juizados Especiais.

Outra conseqüência inevitável da teoria é considerar que não só o processo é um processo de partes, mas que ambas têm efetivo poder de exercer seus papéis no processo. Como bem ressalta PIERO CALAMANDREI, GOLDSCHMIDT retomou a idéia de auto-responsabilidade das partes no processo, de maneira que o conteúdo da sentença não será senão o resultado da atividade desenvolvida pelas partes.609 Mas não enfrenta GOLDSCHMIDT como ficaria essa atividade das partes dentro de um processo penal de feição inquisitória (como eram, de regra, os processos penais de origem continental, ainda que em maior ou menor grau) em que, de regra, há uma parte vulnerável, desprovida de possibilidades. Aliás, CALAMANDREI faz essa ressalva dizendo exatamente que a concepção liberal de processo de GOLDSCHMIDT perde muito de seu valor quando diante de um processo do tipo inquisitório.610 Ademais, mesmo dentro de estruturas processuais do tipo acusatório o problema aparece, pois está ligado, afinal, à igualdade das

609 CALAMANDREI, Piero. Un maestro di liberalismo processuale. Rivista di diritto processuale, Padova, Cedam, v. VI, n. 1, 1951, p. 4-5.

610 CALAMANDREI, Piero. Un maestro di liberalismo processuale. Rivista di diritto processuale, Padova, Cedam, v. VI, n. 1, 1951, p. 6.

partes, e sabe-se bem o quanto de partes hipossuficientes existem.

É salutar, ainda, a proposta de GOLDSCHMIDT quanto à dinamicidade e incerteza do processo. De fato o processo é um ambiente inseguro, incerto, no sentido de que não se tem como saber como se desenvolverá e muito menos como terminará. Esta previsão é importante para preparar as partes para tal condição, liberando-as da confortável ilusão da segurança jurídica.

Como pondera CALAMANDREI, a princípio a teoria da situação jurídica poderia ser reduzida a uma espécie de maquiavelismo processual, onde o direito estaria desprovido de qualquer autoridade e qualquer certeza. Mas não se trata disso, trata-se apenas do preço a se pagar pela liberdade de todos (malo periculosam libertatem, como já havia dito GOLDSCHMIDT).611

Porém, essa insegurança existe, ao que parece, quanto à matéria de fundo, mas não deve existir quanto ao desenvolvimento regular do processo. Essa é a primordial tarefa do procedimento. O rito, previsto na lei, deve ser seguido, sob pena de nulidade absoluta do processo, já que, conforme afirma ANTÔNIO ACIR BREDA, o procedimento adequado é pressuposto processual de validade.612 Por isso tem razão AURY LOPES JR., embora o faça corroborando o pensamento de GOLDSCHMIDT, ao afirmar que ―a única segurança que se postula é a da estrita observância das regras do jogo‖, em alusão à CALAMANDREI, ―– a forma como garantia – e, mais, anterior a ela, no conteúdo axiológico da própria regra.‖613

Parece claro que não há como garantir a justiça das decisões, mas é possível garantir um processo realizado de tal maneira que os riscos de decisões injustas sejam diminuídos. Por certo, um processo que se desenvolve adequadamente, observadas as garantias constitucionais, é mais um instrumento contra possíveis decisões injustas e, mais do que isso, é mais um instrumento de contenção dos efeitos desiguais produzidos pelo poder punitivo, tal como adverte MASSIMO PAVARINI.614

Com efeito, tem-se a forma como garantia no processo penal e, por isso, sua efetivação é tão cara para o Estado Democrático de Direito. Tem razão, novamente,

611 CALAMANDREI, Piero. Un maestro di liberalismo processuale. Rivista di diritto processuale, Padova, Cedam, v. VI, n. 1, 1951, p. 8.

612 BREDA, Antonio Acir. Efeitos da declaração de nulidade no processo penal. Revista do Ministério Público do Paraná. Curitiba: Ministério Público, a. 9, n. 9, p. 171-189, 1980.

613 LOPES JR., Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. v. 1. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 50.

614 PAVARINI, Massimo; GUAZZALOCA, Bruno. Saggi sul governo della penalità: letture integrative al Corso di Diritto Penitenziario. Bologna: Martina, 2007, p. 40-42.

AURY LOPES JR. ao dizer que

trata-se de lutar por um sistema de garantias mínimas. Não é querer resgatar a ilusão de segurança, mas sim assumir os riscos e definir uma pauta mínima de garantias formais das quais não podemos abrir mão. (...) Trata-se, assim, de reduzir os espaços autoritários e diminuir o dano decorrente do exercício (abusivo ou não) do poder.615

No entanto, indo além do proposto por BÜLOW e GOLDSCHMIDT, não basta revelar essa dinamicidade do processo. Se a forma assume na atual conjuntura a importância que a ela quer se dar – de um sistema de garantias mínimas – evidentemente que, para ser efetiva, há que trazê-la para a natureza do processo. Não só definitivamente se deve reconhecer o processo penal como um processo verdadeiramente de partes que efetivamente atuam, mas também, e com o mesmo valor, deve-se deixar sedimentado que a forma, dada pela lei, é seguida, ou sequer se pode falar em processo.

Além disso, é preciso definitivamente livrar o processo penal das influências do direito privado e do direito processual civil, pensando-se em uma teoria jurídica capaz de servir de referencial para adequadas reflexões sobre o processo penal contemporâneo.

Neste passo, vem à baila a necessidade de uma nova teoria sobre a natureza do processo, politicamente orientada, contextualizada, já consciente das discussões anteriores, mas que proponha algo de mais democrático para a própria essência do processo, trazendo para dentro dele, necessariamente, a participação dialética de todos e a observância da lei. Como já disse CALAMANDREI, a única saída para a realização da justiça é a liberdade do contraditório.616

Ademais, tendo em conta os fins reais do processo penal atual, como consequência necessária dos fins reais da pena e do Direito Penal, conforme anteriormente trabalhado, vê-se necessária uma proposta de um processo penal capaz também de limitar o poder punitivo do Estado, capaz de efetivar garantias constitucionalmente previstas aos indivíduos.

Eis por que, então, surge o pensamento de ELIO FAZZALARI como a

615 LOPES JR., Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. v. 1. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 52-53. (destaques no original)

616 CALAMANDREI, Piero. Un maestro di liberalismo processuale. Rivista di diritto processuale, Padova, Cedam, v. VI, n. 1, 1951, p. 7.

proposta mais condizente com tais objetivos, fundada na legalidade, no contraditório e na ampla defesa e definitivamente livre das amarras do direito privado.

No documento ÉRICA DE OLIVEIRA HARTMANN PROCESSO (páginas 172-178)