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O direito fundamental a uma boa administração na CDFUE

No documento Dimensões dos Direitos Humanos (páginas 178-182)

KEY WORDS:

2. O direito fundamental a uma boa administração na CDFUE

A densificação do conceito de «boa administração», no domínio do direito da União Europeia (UE), resulta da reunião de quatro segmentos: da jurisprudência do Tribunal de Justiça da EU (TJUE), do conceito de «boa governação», do conceito de «administração europeia aberta, eficaz e independente» e ainda do conceito de «má administração».

Com efeito, foi através da jurisprudência do TJUE que a boa administração, inicialmente concebida como uma simples obrigação da Administração, foi erigida a princípio subjacente à atuação administrativa. Desde os anos 90 do século XX que é

Andreia Isabel Dias Barbosa

possível encontrar na jurisprudência do TJUE referências ao princípio da boa administração, ali assumido como instrumento de controlo da atuação das instituições2. Por outro lado, a boa administração constitui um elemento essencial da boa governação e implica, em suma, que a Administração respeite os direitos dos particulares e que, simultaneamente, providencie serviços públicos eficientes, recorrendo a adequados métodos de gestão3. Já o conceito de «administração europeia aberta, eficaz e independente», consignado no artigo 298.º, do Tratado de Funcionamento da UE (TFUE), configura-se como uma exigência necessária à cabal prossecução das atribuições cometidas às instituições, órgãos e organismos da UE. Por fim, o Código Europeu de Boa Conduta Administrativa (CEBCA), que explicita o «direito a uma boa administração», reúne os princípios de boa administração que devem guiar a conduta dos agentes públicos nas suas relações com as pessoas, afirmando os valores inerentes ao serviço público e salvaguardando os direitos de todos os que se relacionam com a Administração. Aliás, o CEBCA surgiu, precisamente, pela necessidade de delimitar o conceito de «má administração», enquanto pressuposto do direito fundamental de queixa ao Provedor de Justiça, por força do disposto no artigo 228.º, do TFUE, e previsto no artigo 43.º, da CDFUE, e enquanto reverso do conceito de «boa administração». Foi em 1995 que surgiu a primeira definição de «má administração», no Relatório do Provedor de Justiça Europeu, nos termos do qual «estamos perante um caso de má administração sempre que um organismo público comunitário não atua em conformidade com as regras ou princípios vinculativos». Em termos práticos, verificar-se-á má administração quando, por exemplo, existam irregularidades administrativas, injustiça, discriminação, abuso de poder, ausência de resposta, recusa de informação e atrasos desnecessários. 2 Um dos mais emblemáticos acórdãos proferidos sobre a matéria em análise é o acórdão Technishe

Universität München, de 21 de Novembro de 1991 (caso C-269/90), no qual o tribunal do Luxemburgo

realçou a importância de serem observadas as garantias procedimentais, como «a obrigação para a instituição competente de examinar, com cuidado e imparcialidade, todos os elementos relevantes do caso em apreço, o direito do interessado a dar a conhecer o seu ponto de vista, bem como o direito a uma fundamentação suficiente da decisão»

(acórdão disponível em

http://curia.europa.eu/juris/showPdf.jsf;jsessionid=9ea7d2dc30d59fb156c5b82c4517a7d0f0cb874ef74 8.e34KaxiLc3qMb40Rch0SaxuQbNv0?text=&docid=97440&pageIndex=0&doclang=PT&mode=lst&dir =&occ=first&part=1&cid=627521 [acesso a 19-09-2016]).

3 De acordo com a definição constante no Livro Branco da Comissão Europeia, a governança «designa

o conjunto de regras, processos e práticas que dizem respeito à qualidade do exercício do poder a nível europeu, essencialmente no que se refere à responsabilidade, transparência, coerência, eficiência e eficácia» - cf. Comunicação da Comissão Europeia, «Governança Europeia – Um Livro Branco, COM (2001) 428 final, Bruxelas, 25-06-2011, disponível em http://eur-lex.europa.eu/legal- content/PT/TXT/?uri=celex:52001DC0428 [acesso a 16-09-2016].

A boa administração: um direito a, ou um dever de?

A evolução do conceito de boa administração veio, então, culminar na sua consagração no artigo 41.º, da CDFUE, inserido no seu capítulo V, intitulado «Cidadania», e sob a epígrafe «Direito a uma boa administração». De acordo com o aludido preceito, todas as pessoas têm direito a que os seus assuntos sejam tratados pelas instituições e pelos órgãos da UE de forma imparcial, equitativa e num prazo razoável. O direito a uma boa administração decompõe-se num conjunto de vários direitos, reportando-se eles, nomeadamente, ao direito de qualquer pessoa de ser ouvida antes de a seu respeito ser tomada qualquer medida individual que a afete desfavoravelmente (enquanto expressão do princípio do contraditório aplicado ao procedimento administrativo), ao direito de qualquer pessoa a ter acesso aos processos que se lhe refiram, no respeito dos legítimos interesses da confidencialidade e do segredo profissional e comercial, e à obrigação, por parte da Administração, de fundamentar as suas decisões. O aludido preceito determina ainda que todas as pessoas têm direito à reparação, por parte da Comunidade, dos danos causados pelas suas instituições ou pelos seus agentes no exercício das respetivas funções. Ademais, todas as pessoas têm a possibilidade de se dirigir às instituições da UE numa das línguas oficiais dos Tratados, devendo obter uma resposta na mesma língua.

O artigo 41.º consagra, pois, o chamado «direito fundamental a uma boa administração», do qual resulta um conjunto de direitos e de garantias de que são titulares todos aqueles que se relacionam com a Administração, evidenciando a conceção da UE como uma comunidade de direito e o reforço da cidadania europeia. Neste sentido, considera-se que a CDFUE eleva os direitos por si reconhecidos aos administrados, no plano jurídico europeu, ao estatuto de direitos fundamentais, integrados na categoria de direitos humanos administrativos4. Por outro lado, do artigo 41.º, da CDFUE, resulta, respetivamente, um conjunto de deveres que, em termos gerais, se encontram consagrados na ordem jurídica interna dos Estados Membros, enquanto deveres jurídicos que se impõem às respetivas Administrações e que podem ser objeto de tutela judicial. A suscetibilidade de os aludidos direitos serem tutelados judicialmente permite afastar a conceção de que os deveres de boa

4 Cf. MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Teoria Geral do Direito Administrativo: temas nucleares, Coimbra:

Andreia Isabel Dias Barbosa

administração são deveres imperfeitos5. Pelo contrário, tais deveres devem ser tidos como deveres jurídicos perfeitos, cujo cumprimento pode ser exigido perante os tribunais. Nestes termos, o direito à boa administração constitui, a nosso ver, um direito complexo, induzindo um conjunto de direitos e de deveres. Assim sendo, a referência ao «direito fundamental à boa administração» deverá ser, a nosso ver, interpretada em consonância com a sua elevada amplitude, no sentido de ser tida como uma expressão do variado conjunto de direitos e de deveres que dela decorrem. Note-se, no entanto, que de acordo com conceção adotada pelo legislador europeu, a boa administração, enquanto valor jurídico, não exige que as decisões da Administração, do ponto de vista substancial, sejam, em si mesmas, boas. Para que haja boa administração bastará que, para além das regras que lhe impõem vinculações estritas, a Administração persiga os princípios jurídicos aptos a criar as condições necessárias para que administre bem. Assim, a boa administração resulta de uma conceção jurídica, que substitui uma conceção extrajurídica, de cariz economicista, determinando que a decisão da Administração seja tomada no respeito pelos princípios jurídicos que potenciam a tomada de boas decisões6,7.

Pois bem, à luz do artigo 51.º, da CDFUE, os direitos fundamentais da CDFUE são aplicáveis aos Estados Membros quando estes apliquem, quer de forma exclusiva, quer em cooperação com as instituições, órgãos e organismos da UE, o direito da União. Por conseguinte, apesar de o ordenamento jurídico português não consagrar especificamente o direito fundamental a uma boa administração, encontram-se consagrados na CRP, nos artigos 268.º, 267.º, n.º 5, e 22.º, os direitos

5 Cf. VIANA, Cláudia, «Comentário ao artigo 41.º», in Carta dos Direitos Fundamentais da União

Europeia Comentada, (coord. ALESSANDRA SILVEIRA e MARIANA CANOTILHO), Coimbra:

Almedina, 2013, p. 487.

6 A opção do legislador europeu justificar-se-á pela dificuldade em se chegar a um consenso, a nível

supranacional, que extravase o domínio procedimental e que abranja os parâmetros materiais de atuação. De qualquer forma, o esforço em juridificar o conceito de boa administração, reconduzindo-o a um conjunto de regras precisas que possibilitam a tutela jurisdicional, apresenta a virtude de conferir ao conceito um sentido útil, ainda que assente na ideia (ilusória, talvez) de que a decisão será sempre boa se forem observadas as regras e os princípios procedimentais.

7 A este propósito, saliente-se que, no entanto, apesar de entre os diversos direitos reconduzidos à boa

administração se verificar uma predominância de aspetos de natureza formal ou procedimental, é possível notar entre eles referências que apelam a uma perspetiva de controlo substantivo ou material, como é o caso do direito à imparcialidade e do direito à justiça. Acresce ainda que também no âmbito do direito dos tratados se faz referência à boa gestão financeira (cf. artigo 287.º, n.º 2 e 317.º, do TFUE), e à administração eficaz (cf. artigo 298.º, n.º 1, do TFUE), e no domínio jurisprudencial chama- se a atenção para as dimensões de controlo substantivo que o TJUE tem feito valer, designadamente com a afirmação do dever de atuação diligente por parte das entidades administrativas. Neste sentido, a ideia de que o conceito de boa administração conta apenas com uma dimensão procedimental não é assim tão líquida.

A boa administração: um direito a, ou um dever de?

e as garantias dos administrados (enquanto direitos de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias), os quais são concretizados no Código do Procedimento Administrativo (CPA), na Lei n.º 67/2007, de 31-12 (que aprovou o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e das demais entidades públicas) e, ainda, no que toca à tutela jurisdicional, no Código do Processo nos Tribunais Administrativos. Assim, atendendo à circunstância de, no artigo 41.º, da CDFUE, se consagrarem como direitos fundamentais os valores da imparcialidade, da justiça e da observância de um prazo razoável, por parte da Administração, na tomada de decisões, dever-se-á considerar que, do ponto de vista do quadro constitucional português, se verifica um alargamento do catálogo dos direitos fundamentais perante a Administração Pública. A este respeito, reveste-se de particular importância o facto de, por força do artigo 41.º, n.º 2, da CDFUE, o direito à audiência prévia ser elevado a direito fundamental. Com efeito, o direito à audiência prévia, no ordenamento jurídico português, não encontra consagração constitucional, pelo que não tem vindo a ser reconhecido como um direito fundamental pela doutrina e jurisprudência portuguesas, não servindo, consequentemente, de fundamento para determinar a nulidade das decisões que são tomadas ao arrepio do mesmo. Ora, por força do teor do artigo 41.º, n.º 2, da CDFUE, poder-se-á verificar uma importante evolução desta matéria8.

A este propósito, aliás, cumpre salientar que desde a entrada em vigor do Tratado de Lisboa que a CDFUE adquiriu um valor jurídico igual ao dos Tratados Constitutivos (cf. artigos 6.º, n.º 1, do Tratado da UE). Assim, o aparecimento do direito à boa administração com força vinculativa significa um passo em frente no sentido de admitir a existência de um direito à boa administração (entendido em sentido amplo)

No documento Dimensões dos Direitos Humanos (páginas 178-182)