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O fim da política externa ideologicamente orientada dos EUA

século XXI impactaram na política externa francesa para a África durante os governos de

Capítulo 2 “Os desafios do século XXI”

2.1. Fatores sistêmicos

2.1.2. O fim da política externa ideologicamente orientada dos EUA

O ambiente internacional do fim da Guerra Fria impôs à França, além dos desafios relacionados à globalização, dois desafios fundamentais a sua política africana. O primeiro foi o fim da política externa norte-americana ideologicamente orientada para a contenção da URSS e assim da chancela para atuação francesa no espaço francófono como representante dos interesses capitalistas ocidentais e da relativa exclusividade de atuação francesa na região. O segundo, a crescente presença de outros atores internacionais na zona de influência francesa no continente. Além da crescente presença de democracias industrializadas do norte, houve o crescimento significativo da presença de potências emergentes no espaço africano, em especial após o início do século XXI.

Durante trinta anos a França conseguiu manter sua zona francófona africana relativamente livre da influência das duas superpotências da Guerra Fria, e também relativamente livre da presença de outras grandes potências e potências intermediárias. Por meio da chancela norte-americana para lidar com questões envolvendo seu espaço de influência africano, a França conseguiu se manter como o principal potência em sua zona de influência africana. Mesmo com seu discurso anticolonial, os Estados Unidos assistiram com apreensão o fim do jugo colonial europeu no continente africano, em especial devido a questões estratégicas envolvendo a balança de poder internacional que vigorava na ocasião. Como aponta Chazan et al. (1999), a África foi historicamente um espaço de pouca prioridade para os Estados Unidos e especialmente no momento da descolonização, os Estados Unidos, assim como a União Soviética, sabiam pouco sobre o espaço africano.

A contenção da influência soviética e o controle da proliferação de regimes radicais

no continente africano foram a espinha dorsal da atuação norte-americana no espaço africano durante a Guerra Fria. A pouca experiência norte-americana em lidar com questões relacionadas ao espaço africano foi um fator preponderante para a permanência dos estreitos laços entre França e suas ex-colônias, uma vez que esta atuou como um aliado ocidental na África, tendo assim ampla liberdade para lidar com questões que envolviam sua zona de influência. Como aponta Schraeder (2000),

Enquanto os Estados Unidos e a França perseguiam interesses de política externa fundamentalmente diferentes, porém complementares – ideológicos pelos EUA e culturais e econômicos pela França- a África francófona permaneceu como o beneficiária de um regime complementar da Guerra Fria em que as relações

EUA-França tendiam a ser balanceadas, cooperativas e previsíveis. Independentemente da França ser governada pelos partidários conservadores de Charles de Gaulle ou pelo socialista François Mitterrand, os tomadores de decisão franceses previsivelmente reivindicavam que os laços históricos e a proximidade geográfica justificavam a localização da África francófona na esfera de influência francesa. A premissa implícita que se refere a versão francesa da Doutrina Monroe em que a África francófona constitui o chasse gardée (campo de caça privado) francês e 67 por isso permaneceu fora do alcance de outras grande potências, independentemente

do fato de serem “amigos”, como os Estados Unidos e outras democracias

industrializadas do Norte, ou inimigos, como a antiga União Soviética e outras potências “radicais” (SCHRAEDER, 2000, p. 398-399, tradução nossa ). 68

No entanto, o fim da Guerra Fria representou também o fim da atuação ideologicamente orientada para a contenção da influência da URSS no espaço africano adotada pelos EUA e a perda da importância estratégica do continente. Sem a necessidade de conter a expansão do bloco soviético ou regimes radicais no continente africano, o fiel da balança do conflito bipolar, este espaço perdeu parte considerável da sua importância estratégica que foi redirecionada a outras regiões, em especial a porção leste e central do continente europeu, devido os preparativos para a admissão dos países integrantes do antigo bloco comunista na União Europeia (CHAFER, 2008) e aos intensos conflitos nos balcãs. Esta perda de importância estratégica do continente africano se estende durante grande parte da década de 1990 e o continente permaneceu na periferia dos interesses estratégicos das grande potências ocidentais durante a maior parte dos anos 1990, rompendo esta indiferença apenas por questões securitárias ou humanitárias decorrente das graves crises políticas, conflitos internos, genocídios e epidemias que demandavam posicionamentos de organizações multilaterais internacionais.

67 A expressão “ Chasse gardée” é comumente encontrada na literatura sobre relações franco-africanas e pode se

referir tanto ao espaço geoestratégico da zona francófona africana, quanto à questão institucional da competência quase exclusiva do Presidente da República e do seu Conselheiro para Assuntos Africanos na definição da política externa francesa para a África. Cabe ressaltar que esta expressão não é exclusivamente utilizada para tratar sobre as relações Franco-Africanas. Não raramente esta expressão é encontrada na literatura para se referir a algum outro espaço geográfico dominado ou sob forte influência de outro ator, por exemplo, a América Latina como um chasse gardée dos Estados Unidos da América.

68 No original: “As long as the United States and France were pursuing fundamentally different but

complementary foreign policy interests-ideology for the United States and culture and economics for France-francophone Africa remained the beneficiary of a complementary cold war regime in which U.S.-French relations tended to be balanced, cooperative, and predictable. Regardless of whether France was led by the conservative partisans of Charles de Gaulle or the socialists of François Mitterrand, French policy makers predictably claimed that historical links and geographical proximity justified placing francophone Africa within France's sphere of influence. The implicit assumption of what is referred to as the French version of the Monroe Doctrine is that francophone Africa constituted France's chasse gardée (private hunting ground) and therefore remained off limits to other great powers, regardless of whether they were "friends," such as the United States and the other northern industrialized democracies, or "enemies," such as the former Soviet Union and other "radical" powers.”

Ainda que muito tenha se falado sobre os emergentes e sua cooperação sul-sul com o continente africano, assunto abordado adiante, a crescente presença de aliados franceses em sua zona de influência mostra-se o verdadeiro desafio à atual política africana francesa.

Em termos comerciais, o volume de comércio entre os Estados Unidos e os países do CEMAC [Central Africa Economic and Monetary Community] em 2010 mostra que os Estados Unidos superou não apenas a China, mas também os 27 países da União Europeia (incluindo a França). E possui como importantes parceiros comerciais na região: Congo (2.544,2 milhões de euros), Gabão (1.751,8 milhões de euros), Guiné Equatorial (1.798 milhões de euros) e Chade (1.516,7 milhões de euros). Apenas Camarões (329,7 milhões de euros em 2010) e República Centro Africana (12,5 milhões de euros) são exceções. A posição dos Estados Unidos também é notória do ponto de vista da coabitação militar com a França no Djibouti, com a crescente influência na região dos Grandes Lagos, previamente dominada pelos franceses. No campo cultural, a jovem elite francófona prefere o estilo americano e são atraídos pela América do Norte. De fato, um grande número de africanos francófonos formados na França ou Bélgica estão se mudando para os Estados Unidos ou Canadá (Québec). Como Achille Mbembe coloca, “Fundamentalmente, a França está perdendo uma grande parte da influência cultural que possuía sobre a elite africana. (...) Os Estados Unidos são os principais beneficiários dessa mudança” (MBABIA, 2014, p. 31, tradução nossa ). 69

Como revela o relatório “More than humanitarianism: a strategic U.S. approach toward Africa” publicado pelo Council on Foreign Relations em 2006, no início dos anos 2000, o continente africano saiu da periferia dos interesses estratégicos dos EUA para ocupar uma posição de maior centralidade, tanto para os interesses dos Estado Unidos quanto para o resto do mundo, superando o interesse humanitário dispensado por estes em décadas anteriores. Dentre os pontos centrais da política americana para a África analisada no relatório estão o combate ao terrorismo, o combate a AIDS e a questão energética. De acordo com Sombra Saraiva,

O título da estratégia norte- americana [more than humanitarianism] fala por si, ao lançar as bases conceituais para a ação dos norte-americanos para as próximas décadas. Pragmatismo mais que humanitarismo, disputa por recursos minerais, ampliação da diversificação no campo da energia, cooperação com os governos democráticos e ocupação de espaços na luta contra o terrorismo são as linhas gerais de trabalho para os próximos 20 anos dos Estados Unidos na África. Querem disputar a

69 No original: In comercial terms, the value of trade between the United States and the countries of the CEMAC

in 2010 shows that the US topped not only China but also the 27 European Union countries (including France). And has as important commercial partners there: Congo (2 544.2 million euro), Gabon (1 751.8 million euro), Equatorial Guinea (1 798 million euro) and Chad (1 516.7 million euro). Only Cameroon (329.7 million euro in 2010) and CAR (12.5 million euro) are exceptions. The US position is also visible through a military

cohabitation with France in Djibouti, with an increased influence in the Great Lakes region previously dominated by France. In the cultural field, young Francophone elite prefer the American way and are attracted by North America. As a matter of fact, large numbers of Francophone Africans trained in France or Belgium are moving to the US or Canada (Quebec). As Achille Mbembe put it, “More fundamentally. France is losing a large part of the cultural influence it once had on African elite. (…) The United States is clearly the principal beneficiary of this defection.”.

partilha com as ex-metrópoles, particularmente Inglaterra e França, mas sobretudo querem enfrentar a potência do dragão oriental (SOMBRA SARAIVA, 2008, pg. 97).

O novo posicionamento norte-americano, cada vez mais rivalizado ao francês, é significativo para compreender a nova dinâmica de poder na região, especialmente após o fim da Guerra Fria. Esta por sua vez foi substituída pela “paz fria” em que as grandes potências lutam pela supremacia econômica no ambiente econômico altamente competitivo do início do novo milênio (SCHRAEDER, 2000). Além da competição econômica no início do século XXI, após os atentados de 11 de setembro de 2001, o espaço africano passou a ser securitizado pelos EUA dentro da lógica da guerra contra o terror da Doutrina Bush, em especial as regiões do Sahel, Golfo da Guiné e o Chifre da África.