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século XXI impactaram na política externa francesa para a África durante os governos de

Capítulo 1 “ A formação da Quinta República e a construção da política africana

1.4. A descolonização e a política africana do início da Quinta República

1.4.2. O pilar monetário

Sem sombra de dúvidas um dos pontos mais peculiares nas relações entre a França e suas antigas colônias são as moedas comuns franco-CFAs e franco comorense. Imposta no contexto da dominação colonial, o franco - moeda oficial francesa à época da colonização- passou a ser utilizada em detrimento de moedas e meios de troca tradicionais e particulares dos povos africanos subjugados. A utilização da moeda da metrópole por suas colônias não foi exclusividade francesa. Esta foi uma estratégia utilizada por todas as potências coloniais europeias para comercializar e ter acesso às riquezas de seu espaço colonial, incluindo estas forças sociais locais ao sistema capitalista colonial.

Um dos principais objetivos do empreendimento colonial dos europeus na África, durante o século XIX, foi a apropriação de uma grande parte das riquezas do continente por meio da instauração de regimes comerciais favoráveis as metrópoles. Para tanto, os governo coloniais deveriam controlar os circuitos de produção e troca. E este controle passa necessariamente pela moeda. A fim de diminuir as resistências locais e fazer aceitarem suas moedas, os colonizadores utilizaram todos os meios de pressão disponíveis e não hesitaram a recorrer alternadamente ao direito colonial e à violência (PIGEAUD e SYLLA, 2018, p.15, tradução nossa ) 51.

A criação da zona do franco aconteceu no entre guerras, em 1939, dentro de um contexto de reorganização do império colonial francês abrangendo suas possessões coloniais na Ásia, África, Pacífico, Antilhas e Américas. Esta organização monetária colonial respeitava

51No original: “ l’un des objectifs principaux de l’entreprise coloniale des Européens en Afrique, au XIX siècle,

est l’appropriation d’une grande partie des richesses du continent à travers l’instauration de régime commerciaux à l’avantage des métropoles. Dans ce but, le pouvoirs coloniaux devaient contrôler les circuits de production et d’échange. Et ce contrôle passe forcément par celui de la monnaie. Afin de briser les résistances locales et de faire accepter leurs monnaies, les colonisateurs utilisèrent tous les moyens de pression à leur disposition et n’hésitèrent pas à recourir alternativement au droit colonial et à la violence.”

a lógica do livre comércio entre a colônia e a metrópole e do protecionismo, possibilitado a metrópole controlar moeda e o comércio exterior da zona.

Durante o período colonial esta estrutura institucional foi fundamental para a drenagem das riquezas das colônias para a metrópole. Devido a livre convertibilidade do franco cfa em franco por taxa fixa e a liberdade de transferência, as empresas metropolitanas podiam investir e desinvestir livremente no espaço colonial e transferir livremente seus lucros para a metrópole.[...] Além do mais, o fato do franco CFA estar atrelado a uma taxa fixa ao franco francês, reduzia enormemente os custos de transação das administrações coloniais e das empresas metropolitanas. Se cada colônia tivesse a sua moeda e esta estivesse submetida a um regime de câmbio flutuante, estas trocas seriam muito mais custosas e complexas (PIGEAUD e SYLLA, 2018, p.51-52, tradução nossa ). 52

De acordo com Pigeaud e Sylla (2018, p. 35, tradução nossa ), “ com a criação da 53 zona do franco em 1939, a França buscou fazer de seu império colonial um escudo comercial e monetário para proteger sua economia de um contexto de crise monetária, econômica e política internacional”. Em 1945 ocorre a diferenciação do franco colonial com a criação do franco CFP (Colonies française du Pacifique) e do franco CFA (Colonies françaises d’Afrique). A peculiaridade envolvendo o franco CFA é que, ao contrário de outras moedas coloniais, esta continuou a ser utilizada pelas antigas colônias francesas na África e com uma lógica de funcionamento muito semelhante à do período de dominação colonial. Sendo assim, a França é a única ex-potência colonial a manter sua zona monetária após as independências (PIGEAUD e SYLLA, 2018).

Apesar de utilizarem a mesma sigla, existem duas comunidades de franco CFA distintas. O franco CFA ( franc de la Communauté financière en Afrique ) é utilizado nos estados da África Ocidental (Benin, Burkina Faso, Costa do Marfim, Guiné- Bissau, Mali, Níger, Senegal e Togo), sendo gerenciado pelo Banco Central dos Estados da África Ocidental -BCEAO. Já o franco CFA ( franc de la coopération financière en Afrique Centrale ) é utilizado em Camarões, Congo, Gabão, Guiné- Equatorial, RCA e Chade. Este franco CFA

52No original: “Pendant la période coloniale, cette architecture institutionnelle a permis de faciliter le drainage

des ressources des pays africains vers la métropole. Grâce à la libre convertibilité du franc CFA à taux fixe et à la liberté des transferts, les entreprises métropolitaines investissaient e désinvestissaient librement, et transféraient librement leurs profits vers la métropole. [...] Le fait que l’AOF et l’AEF aient eu une monnaie unique arrimée au franc métropolitain permettait de diminuer considérablement les coûts de transaction des administrations coloniales et des entreprises métropolitaines. Si les différents territoires sous administration française avaient eu chacun sa propre monnaie à parité fluctuante, le règlement des opérations commerciales aurait été plus compliqué et onéreux.”

53 No original: “Lorsqu’elle crée la zone franc, en 1939, la France cherche à faire de son empire colonial un

bouclier commercial et monétaire protégeant son économie dans un contexte de crise monétaire, économique et politique internationales”

também é gerenciado por um banco central específico, o Banco Central dos Estados da África Central- BEAC. A ilha de Comores possui uma moeda específica, o franco comorense, administrado pelo Banco Central de Comores -BCC.

Apesar de serem administrados por bancos centrais diferentes, os franco CFAs e comorense funcionam seguindo quatro princípios fundamentais: taxa fixa de paridade em relação ao franco francês; liberdade de transferência; conversibilidade ilimitada e centralização das reservas de troca.

A taxa fixa de paridade, os franco CFAs e comorense são fixados (ancorados) à moeda francesa, chamada de “moeda de ancoragem”, de maneira fixa: o valor da moeda francesa não varia de acordo com a conjuntura econômica. Ela não pode ser modificada sem que as autoridades políticas da zona do franco assim decidam (PIGEAUD e SYLLA, 2018, p.38, tradução nossa ). 54

A livre transferência significa que as transações correntes (regulamentos de importações e de exportações, repatriamento de lucros e dividendos, envio de fundos de trabalhadores expatriados, etc) e as movimentações de capitais (como compras de títulos ou investimentos financeiros) são livres dentro da zona do franco, isto é, entre os países africanos e entre estes e a França (PIGEAUD e SYLLA, 2018, p.38, tradução nossa ). 55

A conversibilidade ilimitada , [...] significa que se pode trocar os franco CFAs e

comorense em moeda francesa sem restrição. Esta convertibilidade ilimitada é assegurada pelo Tesouro Francês: através de acordos monetários que mantém com as autoridades africanas, comprometeu-se a emprestar tanto dinheiro quando necessário aos bancos centrais da zona do franco caso seus recursos no exterior estiverem esgotados. O objetivo: garantir que seus bancos centrais nunca tenham falta de divisas estrangeiras e possam liquidar pagamentos externos ou transações cambiais diariamente, mas também assegurar que a liberdade de transferência nunca seja restrita dentro da zona do franco. Essa conversibilidade tem a particularidade de ser concretizada apenas sob a supervisão do Tesouro francês. Fora deste quadro, o franco CFA não é convertível: ao contrário das notas de dólar ou euro que podem ser trocadas praticamente em qualquer parte do mundo, as notas do franco CFA só podem ser trocadas dentro da sua zona de emissão (PIGEAUD e SYLLA, 2018, p.38-39, tradução nossa . 56

54 No original: Fixité des parités, les francs CFA et comorien sont rattachés (ancrés) à la monnaie française,

appelée ‘monnaie d’ancrage’, de manière fixe: leur valeur en monnaie française ne varie pas selon la conjoncture économique. Elle ne peut être modifiée que si les autorités politiques de la zone franc le décident.”

55No original: “le libre transfert. Cela signifie que les transactions courantes (règlements des importations et des

exportations, rapatriement des profits et des dividendes, envois de fonds des travailleurs expatriés, etc) et les mouvements de capitaux (comme les achats de titres ou les placements financiers) sont libres au sein de la zone franc, c’est-à-dire entre les pays africaines et entre ces derniers et la France”

56No original: “La convertibilité illimitée[...] signifie que l’on peut échange les franc CFA et comorien contre de

la monnaie française (franc puis euro) sans restriction. Cette convertibilité illimité est assurée par le Trésor français: à travers les accords monétaires qu'il a passés avec les autorités africaines, il s'est engagé à prêter autant d'argent qu'il le faut aux banques centrales de la zone franc dans le cas où leurs avoirs extérieurs seraient épuisés. L'objectif: faire en sorte que les banques centrales ne manquent jamais de devises et puissent régler les paiements extérieurs ou les opérations de change au quotidien, mais aussi faire en sorte que la liberté de transfert ne soit jamais restreinte au sein de la zone franc. Cette convertibilité présente la particularité de se concrétiser uniquement sous la supervision du Trésor français. En dehors de ce cadre, le franc CFA n'est pas convertible:

Em termos práticos, a característica da convertibilidade ilimitada garante que qualquer troca comercial em moeda estrangeira ou mesmo a troca do franco CFA ou comorense por outra moeda ou franco CFA emitido por um outro Banco Central, tenha necessariamente que passar pelo Tesouro Francês. Em uma situação ilustrativa, um turista brasileiro, em viagem à Dakar, Senegal, e depois Yaoundé, no Camarões, não poderá converter diretamente o Real em franco CFA-BCEAO ou Real em franco CFA-BEAC, tampouco o franco CFA-BCEAO em franco CFA-BEAC. O turista teria que trocar seus reais por euros e depois seus euros por francos CFA-BCEAO quando chegasse em Dakar, trocar seus francos CFA-BCEAO restantes por euros antes de deixar Dakar e, quando chegar a Yaoundé trocar novamente seus euros, desta vez por francos CFA-BEAC.

O quarto princípio que rege a zona do franco é a centralização das reservas de troca , de acordo com Pigeaud e Sylla (2018, p.40, tradução nossa ), 57

O BEAC, o BCEAO e o BCC devem depositar uma parte de suas reservas estrangeiras na França, no Tesouro Francês. [...] Esta centralização de reservas representa uma contrapartida à garantia de conversibilidade ilimitada do Tesouro Francês. A centralização e a garantia francesa estabelecem assim uma dupla solidariedade. A primeira, vertical, entre a França e os países africanos para a garantia da conversibilidade. A outra, horizontal, se estabelece entre os países africanos: aqueles que têm mais recursos e, portanto, a maior parte da moeda permitem, por pooling , que aqueles que têm menos tirem proveito de sua reserva monetária. 58 Pigeaud e Sylla (2018) apontam que para que estes quatro princípios possam ser operacionalizados, existe um sistema próprio da zona do franco, as contas de operação. Segundo os autores, cada Banco Central possui a sua conta especial de operação por meio da qual o Tesouro Francês faz as trocas de moedas, atuando como o escritório de trocas oficial dos países da zona do franco. São nas contas especiais que são depositadas as reservas de cada Banco Central para garantir a livre conversibilidade das moedas. Quando um país da zona do franco faz comércio com um outro país que não usa euro, China ou Brasil, por exemplo, o seu Banco Central deve informar o Tesouro Francês que irá, por meio da conta de operação do

contrairement aux billets de dollars ou d'euros qui peuvent être échangés presque partout dans le monde, les billets de francs CFA ne peuvent l'être que dans leur zone d'émission.”

57No original: “la BEAC, la BCEAO et la BCC doivent déposer une partie de leurs avoirs extérieurs en France,

auprès du Trésor français. [...] Cette centralisation des réserves constitue la contrapartie de la garantie de convertibilité illimitée du Trésor français. La centralisation et la garantie française instaurent ainsi une double solidarité. La première, verticale, relie la France aux pays africains par la garantie de convertibilité. L’autre, horizontale, s’établit entre les pays africains: ceux qui ont le plus de ressources et donc le plus de devises permettent, par la mise en commun, à ceux qui en ont moins de profiter de leur matelas de devises.”

referido banco, converter o franco CFA em euro e depois trocar o euro pela moeda de destino. O mesmo acontece quando ocorre a operação inversa. A moeda estrangeira é convertida em euro e depois creditada em franco CFA na conta de operação específica.

Este processo é realizado por conta da não possibilidade de conversão direta dos franco CFAs e comorense em qualquer outra moeda que não seja o euro. Vale destacar ainda que esta conversão é feita no mercado de troca de Paris, gerando uma demanda suplementar para o euro, que se torna um intermediário privilegiado nas trocas entre países africanos. Mesmo que as trocas sejam entre países africanos, a França, e consequentemente o euro, acabam envolvidos indiretamente nestas trocas.

Do ponto de vista institucional, Pigeaud e Sylla (2018) apontam a centralidade de cinco atores, o governo francês, o Banco da França, os três Bancos Centrais (BEAC, BCEAO e BCC), os bancos comerciais e os governos africanos.

O governo francês intervém por meio do Tesouro Francês, que está ligado ao Ministério das Finanças francês. Ele garante a conversibilidade e gerencia as “contas de operação” dos Bancos Centrais, que estão de fato sob a sua tutela. O Banco da França é o banqueiro do Tesouro francês. Ela lida com o gerenciamento de suas contas, incluindo as contas das operações. Ela também é correspondente do BCEAO, BEAC e BCC. Isso significa que eles têm contas -diferentes das contas de operação - que funcionam como contas bancárias comuns. Se o BEAC quer fazer, por exemplo, uma transferência em euros à um operador na França, ele dá a ordem ao seu correspondente no local, o Banco da França, efetuar a transação. Este, através do sistema de correspondentes que os Bancos Centrais gerenciam suas relações financeiras com o exterior (PIGEAUD e SYLLA, 2018, p. 45-46, tradução nossa ) 59

Por sua vez, os Bancos Centrais africanos são responsáveis pela emissão de moeda para a sua respectiva região, a fiscalização da atividade bancária local e a garantia da estabilidade monetária e financeira de sua zona. No entanto, cabe ressaltar que os Bancos Centrais africanos não possuem poder de decisão no estabelecimento de políticas financeiras e monetárias em suas regiões. Os representantes franceses participam do conselho de

59No original: “ Le gouvernement français intervient à travers le Trésor français, qui dépend du ministère français

des Finances.II apporte sa garantie de convertibilité et gère les ‘comptes d'opérations’ des banques centrales qui sont, de fait, placées sous sa tutelle.La Banque de France, elle, est le banquier du Trésor français.Elle s'occupe de la gestion de ses comptes, dont les comptes d'opérations.Elle est également l'une des correspondantes de la BCEAO, de la BEAC et de la BCC.Cela signifie que ces dernières disposent auprès d'elle de comptes différents des comptes d'opérations - qui fonctionnent comme des comptes bancaires ordinaires. Si la BEAC veut adresser, par exemple, un virement en euros à un opérateur en France, elle donne l’ordre à sa correspondante sur place, la Banque de France, d’effectuer cette transaction. C’est à travers le système des correspondants que les banques centrales gèrent leurs relations financières extérieures.”

administração e do órgão responsável pela elaboração da política monetária, o Conselho de Política Monetária (PIGEAUD e SYLLA, 2018). Durante os anos 1970 houve um movimento de africanização das instituições do franco cfa, no entanto, a França continua com sua influência intacta sobre as estruturas institucionais da zona do franco.

A França continua dentro dos três Bancos Centrais de Dakar, Yaoundé e Moroni. Participa dos conselhos de administração das três instituições e possui o mesmo número de representantes e voz que qualquer Estado membro dos respectivos espaços monetários.[...] Isto significa de que França possui poder de veto implícito sobre questões essenciais. Paris também está representada nos outros órgão do BCEAO e BEAC: no Collège des censeurs, que controla a execução de seu orçamento, na Comissão Bancária, que fiscaliza a atividade bancária em seu respectivo espaço, dentre outras (PIGEAUD e SYLLA, 2018, p.97-98, tradução nossa ). 60

Além do mais, o Tesouro Francês e Banco da França são os responsáveis pelo controle e análise de informações da zona do franco, bem como por formular recomendações para a zona e supervisionar as reuniões de Ministros de Finanças da zona do franco. O controle e a participação francesa sobre toda a política monetária e financeira da zona do franco é sem dúvida alguma uma importante ferramenta de dominação francesa sobre sua zona de influência africana e uma marca incontestável de seu relacionamento privilegiado com suas ex-colônias.

Por meio do estabelecimento de uma moeda comum – o Franco CFA- adotado por praticamente todos os países da zona francófona africana, a França consegue manter sua influência, bem como garantir o acesso as matérias primas estratégicas africanas, facilitar o escoamento de bens manufaturados franceses e espaço para investimento de capitais excedentes (KROSLAK, 2004). Além do mais, por meio do sistema monetário do Franco CFA a França mantém o controle sobre a moeda e política financeira das suas antigas colônias (SIRADAG, 2014), e de acordo com Verschave (1998, 2016), por meio do Franco CFA é possível o desvio de recursos da ajuda para o desenvolvimento, o que movimenta uma extensa rede de corrupção envolvendo líderes franceses e africanos.

60No original: “ La France siège toujour au sein des instances des trois banques centrales de Dakar, Yaoundé et

Moroni. Au sein des conseils d’administration de ces trois institutions, elle dispose du même nombre de représentants et de voix que chaque État membre des espaces monétaires concernés. [...] Cela signifie que la France a un droit de veto implicite sur les questions essentielles. Paris est aussi représenté dans d’autres organes de la BCEAO et BEAC: le Collège des censeurs, qui contrôle l’exécution de leur budget, la Commission bancaire, qui surveille l’activité bancaire dans leur espace respectif, etc.”