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2.3 Raízes do Consumismo Moderno

2.3.3 O hedonismo como explicação para o surgimento do consumismo moderno

Consumo foi o aparecimento de uma série de novos valores que surge na Inglaterra do século XVIII. Entre estes valores emergentes, o autor ressalta a esperança de obtenção de prazer depositada nos novos produtos24 como um dos mais determinantes para a

constituição de uma classe consumidora.

Campbell (2001) começa por desenvolver seu argumento distinguindo prazer de satisfação. Enquanto a satisfação representa o ato de restabelecer o equilíbrio por meio da superação de um estado de perturbação; o prazer é um termo empregado para identificar uma reação favorável a certos padrões de sensação. Consequentemente, enquanto a satisfação é um atributo intrínseco das coisas reais; o prazer, por outro lado, não é uma propriedade intrínseca de qualquer objeto, mas um tipo de reação que se tem ao receber certos estímulos. Procurar satisfaç~o é, portanto, “envolver-se com objetos reais, com o fim de descobrir o grau e a espécie de sua utilidade, enquanto procurar prazer é expor-se a certos estímulos, na esperança de que estes detonarão uma resposta desejada dentro de si mesmo” (CAMPBELL, 2001, p.92). Tal fato n~o significa outra coisa senão que apenas a realidade é capaz de proporcionar a satisfação, ao passo que tanto ilusões como enganos podem dar prazer.

Consoante este entendimento, Campbell (2001) vai defender que o comportamento humano é guiado pelo prazer, por isso mesmo, o que move o consumo não é a perspectiva de usufruto dos produtos, e sim a expectativa de gozo do prazer que os objetos podem proporcionar. O hedonismo25 seria, por isso mesmo, a mola propulsora do consumo. Até o

século XVIII essa expectativa de obtenção de prazer nos objetos estava, segundo Campbell (2001), condicionada à experiência prévia do indivíduo com relação ao prazer, constituindo o que o autor chama de hedonismo tradicional. Nesta fase da história do consumidor…

24 “A inexauribilidade das necessidades que caracterizam o comportamento dos consumidores modernos deve ser compreendida como proveniente de seus hábitos sempre desejosos, algo que provém, por sua vez, do inevitável hiato entre os perfeitos prazeres do sonho e as imperfeitas alegrias da realidade” (CAMPBELL, 2001, p.139).

25 Hedonismo, conforme o Dicionário Houaiss, é a teoria que entende que o comportamento humano é guiado pelo desejo de obter prazer e, por conseguinte, de evitar o desprazer. Trata-se de, verdadeiramente, ter o prazer como estilo de vida.

(…) a natureza do prazer antecipado é conhecida a partir da experiência passada. A expectativa do prazer detona o desejo, mas o que a pessoa “espera” desfrutar é principalmente o que “se lembra” de ter desfrutado. Os novos objetos ou atividades, assim, tendem a ser vistos com desconfiança, já que seu potencial de prazer é, até então desconhecido (CAMPBELL, 2001, p.126).

Portanto, até o século XVIII, a perspectiva de obtenção de prazer encontrava-se subordinada à experiência do indivíduo. Condicionado que estava a buscar prazer apenas naquilo que já havia previamente experimentado, o consumidor encontra-se diante de um leque restrito de opções. Por conta disso, as taxas de aquisição de bens de consumo eram relativamente modestas. Ao longo do século XVIII, entretanto, ocorre uma mudança no padrão de gratificação das pessoas. Neste momento, segundo Campbell (2001), o consumidor passou a empregar a imaginação ao invés da experiência prévia como fonte de prazer. Com isso, inaugura-se o que o autor denomina de hedonismo moderno. Neste,…

(…) embora empregando material da memória, o hedonista pode agora, imaginativamente, especular em torno de que satisfações e que desfrutes dispõe em suas reservas, ligando assim seu devaneio preferido a este verdadeiro objeto de desejo. Desse modo, prazeres imaginados se acrescentam aos já encontrados, e maior desejo é experimentado por aqueles desconhecidos do que pelos conhecidos (CAMPBELL, 2001, p.126).

Ou seja, enquanto no hedonismo tradicional a perspectiva de prazer encontra-se condicionada à memória, no hedonismo moderno esta perspectiva é governada pela imaginação. Como esclarece Barbosa (2008, p.51), o hedonismo moderno “nos permite evocar estímulos através da imaginação e na ausência de qualquer sensação gerada a partir do mundo exterior”.

A passagem do hedonismo tradicional para o hedonismo moderno foi, portanto, a força “em grande parte, respons|vel pela forma din}mica adotada pelo consumismo moderno” (CAMPBELL, 2001, p.143). Isto porque a perspectiva de experimentar na vida real os prazeres vivenciados na imaginação faz com que cada novo produto seja percebido como oferecendo uma possibilidade de realizar essa ambiç~o. Assim…

(…) a apresentaç~o de um produto como “novo” permite ao consumidor em potencial ligar a este um pouco de prazer de seu sonho, associando, consequentemente, a aquisição e o uso do objeto à compreensão do sonho. Tão logo ocorra essa identificaç~o, o produto ser| “desejado”, como algo desse intenso anseio gerado pela prática do devaneio passa a se vincular ao produto em pauta (CAMPBELL, 2001, p.131).

Portanto, segundo a perspectiva de Campbell (2001), é a idealização do prazer a ser obtido, e não o vislumbre de utilidade dos bens, o real motivo do consumo. Sob esta ótica,

a origem da insaciabilidade do consumidor moderno, não estaria na aquisição dos produtos, visto que…

(…) se os consumidores desejassem realmente a posse material dos bens, se o prazer estivesse nela contido, a tendência seria a acumulação dos objetos, e não o descarte rápido das mercadorias e a busca por algo novo que possa despertar os mesmos mecanismos associativos (BARBOSA, 2008, p.53).

A insaciabilidade, e consequentemente a origem do consumismo, originar-se-ia, isso sim, na “procura do prazer imaginativo a que a imagem do produto se empresta, sendo o consumo verdadeiro, em grande parte, um resultante desse hedonismo mentalístico” (BARBOSA, 2008, p.52-53). Decisivo para a afirmação desta busca pelo prazer imaginativo foi, segundo Campbell (2001), a emergência de uma ética romântica entre a burguesia inglesa na segunda metade do século XVIII.

O romantismo, segundo Gauderfroy-Demombynes (1966, apud CAMPBELL, 2001, p.254), é “um modo de sentir, um estado mental em que a sensibilité e a imaginação predominam sobre a razão, e tende para o novo, para o individualismo, a revolta, a fuga, a melancolia e a fantasia”. Por isso mesmo…

Os românticos eram agudamente conscientes da diferença entre os dois mundos. Um era o mundo da verdade ideal, da bondade e beleza: este era eterno, infinito e absolutamente real. O outro era o mundo das aparências reais, que para o senso comum era o único mundo, e que para os idealistas era tão obviamente cheio de inverdade, de ignorância, mal e infelicidade, a ponto de o obrigar ao desalento ou à indignação (BERNBAUM apud CAMPBELL, 2001, p.260).

Desta forma…

(…) os poemas, os romances e a música rom}nticos ser~o empregados pouco mais do que como material bruto de uma indústria de recreação e lazer, com os sonhos utilizados menos para despertar a visão de um mundo ideal imaginativamente percebido, com que se contrarie este em que vivemos, do que para superar o tédio a alienação (CAMPBELL, 2001, p.303).

Em suma, o consumo do romance ajudou a…

(…) ocasionar uma mudança crítica na atitude para com o mundo, caracterizada pela rejeição de um padrão de vida tradicional, sob o pretexto de ser demasiadamente obtuso, e á consequente procura de uma espécie de prazer que podia ser experimentado na imaginação (CAMPBELL, 2001, p.247).

É, pois, através do exercício da imaginação que o romantismo irá evocar estímulos consumistas na sociedade burguesa inglesa do século XVIII. A imaginação seria, portanto, no entendimento de Campbell (2001), a principal responsável pelo consumismo, uma vez que, nos dias de hoje, “muitos dos produtos culturais oferecidos { venda nas sociedades

modernas s~o consumidos, de fato, por servirem de apoio { elaboraç~o dos devaneios” (CAMPBELL, 2001, p.135).

Ocorre, entretanto, que a realidade é incapaz de proporcionar os prazeres perfeitos encontrados nos devaneios. Logo, cada compra leva, necessariamente, à desilusão. É por isto que o autor vai afirmar que o hedonismo moderno caracteriza-se, em última instância, por ser imaginativo e auto-ilusivo. Imaginativo porque “os indivíduos empregam seus poderes imaginativos e criativos para construir imagens mentais que eles consomem pelo intrínseco prazer que elas proporcionam” (CAMPBELL, 2001, p.114); e auto-ilusivo porque estas imagens s~o criadas pelo próprio hedonista, imagens estas que “sabemos serem ilusórias, mas que, não obstante, são tratadas como reais para se conseguir um efeito estimulante” (CAMPBELL, 2001, p.119). Como vai advertir o próprio Campbell, (2001, p.138):

O fato (…) de que as necessidades est~o continuamente sendo satisfeitas n~o deve fazer-nos deixar passar o fato de que elas também estão sendo continuamente criadas, com a consequência de que a “frustraç~o” é um estado permanente. Reconhecidamente, a compra ou o uso de um produto particularmente há muito desejado pode produzir tal deleite a ponto de, temporariamente, obscurecer esse fato, mas é seguramente verdade que um conhecimento das necessidades insatisfeitas emergirá rapidamente.

Tal como Sísifo26, o consumidor não consegue completar seu intento. O anseio de

experimentar na realidade os prazeres criados na imaginação nunca se concretiza. Desta forma, o indivíduo fica “aprisionado” no que Campbell (2001, p.132) chama de “ciclo de desejo-aquisição-desilusão-desejo renovado” e seria precisamente isto que originaria o consumo ininterrupto.

Ainda em se tratando das origens do consumismo moderno, é digna de nota a interpretação de McCracken (2003) sobre o assunto. Para este autor, o consumismo moderno seria, na verdade, produto dos desdobramentos de três episódios ocorridos em três momentos distintos na história do Ocidente: um no século XVI, outro no século XVIII e o último no século XIX. Cada um deles teria contribuído para o desenvolvimento e afirmação do consumismo.

26 Personagem da mitologia grega que por haver enganado Zeus, foi condenado a rolar, por toda a eternidade, uma grande pedra de mármore com suas mãos até o cume de uma montanha, sendo que toda vez que ele estava quase alcançando o topo, a pedra rolava novamente montanha abaixo até o ponto de partida.

2.3.4 Três momentos na história como explicação para o surgimento do