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As transformações resultantes do consumo, como ressaltam McKendrick et al (1982, apud McCRACKEN 2003, p.21), s~o de tal ordem que rivalizam apenas com “a revoluç~o neolítica no que toca { profundidade com que ambas mudaram a sociedade”. O fato de a sociedade atual ser a única caracterizada como uma “Sociedade de Consumo” (BARBOSA, 2008, p.14) é, possivelmente, o maior indicativo da influência e centralidade que o consumo exerce na contemporaneidade.

Sociedade de Consumo, segundo Barbosa (2008, p.07), “é um dos inúmeros rótulos utilizados por intelectuais, acadêmicos, jornalistas e profissionais de marketing para se referir { sociedade contempor}nea”. Uma Sociedade de Consumo apresenta características próprias que a distingue das demais como: tendência para o consumo exagerado e ininterrupto (PORTILHO, 2005; LATOUCHE, 2009), vinculação da figura do cidadão à do

consumidor (CANCLINI, 1999; SANTOS, 2005) e a naturalidade com a qual os padrões perdulários são aceitos (PORTILHO, 2005; BAUDRILLARD, 2005; CAMPBELL, 2001; LAYRARGUES, 1998).

A ideia de uma Sociedade de Consumo, como observa Portilho (2005, p.74), “vai além da ideia trivial de que todos os membros dessa sociedade consomem, uma vez que todos os seres humanos e todas as criaturas vivas consomem e sempre consumiram”. O que caracteriza uma Sociedade de Consumo é o modo particular como seus membros se entregam ao consumo do supérfluo. Se por uma lado é verdade que a insaciabilidade não é uma exclusividade da sociedade moderna ocidental (CAMPBELL, 2001, p.58), por outro lado, também é verdade que nenhuma sociedade antes da moderna “amarrou seu destino a uma organizaç~o baseada na acumulaç~o ilimitada” (LATOUCHE, 2009, p.17).

Por isso mesmo, a Sociedade de Consumo vai se notabilizar, fundamentalmente, por apresentar um consumidor que…

(…) se caracteriza por uma insaciabilidade que se eleva de uma b|sica inexauribilidade das próprias carências, que se levantam sempre, como uma fênix, das cinzas de suas antecessoras. Consequentemente, mal uma se satisfez e outra já se acha à espera preparada, reclamando a satisfação; quando esta é atendida, uma terceira aparece, então subsequentemente uma quarta, e assim por diante, aparentemente sem fim. O processo é incessante e ininterrupto (CAMPBELL, 2001, p.59).

A Sociedade de Consumo, segundo Bauman (2008, p.44),…

(…) associa a felicidade n~o tanto { satisfaç~o de necessidades (como suas “versões oficiais” tendem a deixar implícito), mas a um volume e uma intensidade de desejos sempre crescentes, o que por sua vez implica o uso imediato e a rápida substituição dos objetos destinados a satisfazê-la.

Tal postura de insaciabilidade em relação à aquisição de bens é o que se denomina consumismo. Consumo difere de consumismo porque enquanto o primeiro é “um pré- requisito para a reprodução física e social de qualquer sociedade humana” (BARBOSA; CAMPBELL, 2006, p.21), o segundo envolve “um conjunto de valores hedonistas que estimula o indivíduo, ou a sociedade, a buscar satisfação e felicidade através da aquisição e exibição pública de uma grande quantidade de bens e serviços” (PORTILHO, 2005, p.25). Para usar as palavras de Bauman (2011, p.83):

(…) o consumo – cuja aç~o é definida pelos dicion|rios como sinônimo de “usar”, “comer”, “ingerir (líquido ou comida)” e, por extens~o, “gastar”, “dilapidar”, “exaurir” – é uma necessidade. Mas o “consumismo”, a tendência a situar a preocupação com o consumo no centro de todos os demais focos de interesse e quase sempre como aquilo que distingue o foco último desses interesses não é. O consumismo é um produto social e não o veredicto inegociável da evolução

biológica. Não basta consumir para continuar vivo se você quer viver e agir de acordo com as regras do consumismo. Ele é mais, muito mais que o mero consumo (…). Acima de tudo, o consumismo tem o significado de transformar seres humanos em consumidores e rebaixar todos os outros aspectos a um plano inferior, secundário, derivado.

Leonard (2011, p.173-174) considera que as estratégias que motivaram as pessoas a comprar sem parar foram, entre outras:

 Passar lojas locais para shopping centers, criar redes de varejo;

 Permitir que os consumidores paguem mais tarde (com juros), através de cartões de crédito;

 Sistematizar e normatizar os conceitos de obsolescência planejada e percebida;

 Fundir intencionalmente a noção de identidade, status e consumo (ou seja: “você é o que compra”);

 Desenvolver a indústria da publicidade.

Já Latouche (2009, p.17) identifica como principais indutores do excesso de consumo: a publicidade, que cria o desejo de consumir; o crédito, que fornece os meios; e a obsolescência, que renova a necessidade deles.

A publicidade, nas palavras de Latouche (2009, p.18), “nos faz desejar o que n~o temos e desprezar aquilo de que j| desfrutamos”. De sua funç~o inicial de divulgar as características de um produto, passou à criadora de pseudonecessidades (BAUDRILLARD, 2002, p.174; GALBRAITH, 1974, p.158). Interessante notar que em uma Sociedade de Consumo, conforme destaca Bauman (2008, p.73), “todo mundo precisa ser, deve ser e tem que ser um consumidor por vocaç~o (…), a sociedade de consumidores n~o reconhece diferenças de idade ou gênero (…). T~o logo aprendem a ler, ou talvez bem antes, a ‘dependência das compras’ se estabelece nas crianças”. Assim, a Sociedade de Consumo se particulariza na medida em que é a primeira a direcionar o estímulo do consumo para as crianças13.

Contudo, a publicidade pouco efeito teria se os consumidores não dispusessem dos meios financeiros necessários. Neste sentido, o crédito tem um papel decisivo. Comprar a crédito, como observa Baudrillard (2002, p.170), “equivale { apropriaç~o total de um objeto por uma fraç~o do seu valor real”. Tal facilidade tornou possível o consumo por parte daqueles cujos rendimentos não seriam suficientes para pagar pelo preço total do bem de consumo

13 Como nota Barber (2009, p.41), “os gastos com propaganda para crianças aumentaram de menos de US$ 100 mil, em 1990, para mais de 2 bilhões, em 2000”.

(LATOUCHE, 2009, p.19); em outras palavras: tornou acessível o que antes não o era (McCRACKEN, 2003, p.48). Assim, a Sociedade de Consumo se diferencia de suas antecessoras também por facilitar os meios financeiros necessários à aquisição de novos produtos.

J| a obsolescência, entendida enquanto a “diminuiç~o da vida útil e do valor de um bem, devido não a desgaste causado pelo uso, mas ao progresso técnico ou ao surgimento de produtos novos” (Dicion|rio Houaiss), torna o consumo ininterrupto necess|rio. Como observa Latouche (2009, p.21):

Em prazos cada vez mais curtos, os aparelhos e equipamentos, das lâmpadas elétricas aos pares de óculos, entram em pane devido à falha intencional de um elemento. Impossível encontrar uma peça de reposição ou alguém que conserte. Se conseguíssemos por a mão na ave rara, custaria mais caro consertá-la do que comprar uma nova (sendo esta hoje fabricada a preço de banana pelo trabalho escravo do sudeste asiático).

Publicidade, crédito e obsolescência são, portanto, elementos que viabilizaram a constituiç~o de uma sociedade na qual “80% dos bens postos no mercado s~o utilizados uma única vez, antes de irem direto para a lata de lixo” (HULOT, apud LATOUCHE, 2009, p.49).

Canclini (1999) vai chamar a atenção ainda para o fato de que em uma sociedade onde o consumo assumiu posição central, o consumidor é frenquentemente confundido com o cidadão. Em uma Sociedade de Consumo, como complementa Portilho (2005), apenas é considerado cidadão aquele que tem capacidade para consumir. Neste mesmo sentido, como também observa Santos (2005, p.49), o consumismo leva “ao emagrecimento moral e intelectual da pessoa, à redução da personalidade e da visão de mundo, convidando, também, a esquecer a oposição fundamental entre a figura do consumidor e a figura do cidad~o”.

T~o característico quanto as elevadas taxas de consumo, o crédito f|cil e a “confus~o” da figura do consumidor com a do cidadão, é o fato de que, em uma Sociedade de Consumo, o consumismo é tratado como algo natural, legítimo14 e inalienável (PORTILHO, 2005,

p.68; BAUDRILLARD, 2005, p.23). No seio desta lógica, a Sociedade de Consumo costuma ser vista como único modelo possível de organização societária. Conforme observa

14 Kunstler (2006, p.93), por exemplo, observa que “os americanos consideram a sua maneira de viver um direito concedido por Deus”.

Layrargues (1998, p.127), em uma Sociedade de Consumo o que se busca é impor a visão segundo a qual…

(…) as diferenças culturais existentes entre os países seriam apenas uma consequência dos retardamentos em relação à modernização, entendida como sinônimo de evolução, e não às diferentes formas de se apropriar e interagir com o ambiente.

Dessa forma, o modelo moderno, representado pela civilização ocidental industrializada de consumo (SLATER, 2002, p.17), é apresentado como sendo imanente na história (CAMPBELL, 2001, p.62). Ocorre que não é assim. Como explica Lipovetsky (2009, p.28):

(…) durante a mais longa parte da história da humanidade, as sociedades funcionaram sem conhecer os movimentados jogos da frivolidade. Assim, as formações sociais ditas selvagens ignoraram e conjuraram implacavelmente, durante sua existência multimilenar, a febre da mudança e o crescimento das fantasias individuais. A legitimidade inconteste do legado ancestral e a valorização da continuidade social impuseram em toda parte a regra de imobilidade, a repetição dos modelos herdados do passado, o conservantismo sem falha das maneiras de ser e de parecer.

Igualmente, Campbell (2001, p.59) vai observar que…

(…) a ideia de que os seres humanos, por algum motivo, têm uma inclinaç~o “natural” a exibir insaci|vel insuficiência n~o recebe qualquer apoio da história ou da antropologia. Ao contrário, se há uma coisa desse tipo, como um padrão “normal” nesses assuntos, é o do conjunto tradicional de necessidades familiares, estáveis e limitadas (CAMPBELL, 2001, p.62).

Lipovetsky (2009) vai ilustrar esta tendência para estabilidade do consumo a partir do um elemento icônico da Sociedade de Consumo: o vestuário. Segundo o autor:

Ao longo dos séculos, os mesmos gostos, as mesmas maneiras de fazer, de sentir, de vestir-se vão perpetuar-se, idênticas a si mesmas. No Egito antigo, o mesmo tipo de toga-túnica comum aos dois sexos manteve-se por quase quinze séculos com uma permanência quase absoluta; na Grécia, o peplo, traje feminino de cima, impôs-se das origens até a metade do século VI antes de nossa era; em Roma, o traje masculino – a toga e a túnica – persistiu, com variações de detalhes, dos tempos mais remotos até o final do Império. Mesma estabilidade na China, na Índia, nas civilizações orientais tradicionais, onde o vestir só excepcionalmente admitiu modificações: o quimono japonês permaneceu inalterado durante séculos; na China, o traje feminino não sofreu nenhuma verdadeira transformação entre o século XVII e o século XIX (LIPOVETSKY, 2009, p.29).

Mas, se padrões de consumo exagerados são exceção, e não regra, de onde então teria surgido a inclinação para consumir mais do que o necessário?