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O HOMEM, O TRABALHO E AS RELAÇÕES SOCIAIS

2.2 INCLUSÃO SOCIAL E TRABALHO

2.2.1 O HOMEM, O TRABALHO E AS RELAÇÕES SOCIAIS

O trabalho constitui um existencial do homem, um aspecto definidor do seu ser, tal como a técnica, porque não se pode conceber o indivíduo humano senão em sua qualidade de trabalhador. (PINTO, 2005, p.414)

A busca pela sobrevivência levou os hominídeos a procurarem raízes, plantas e outros animais para consumirem. Sem grandes recursos físicos, a busca de ferramentas – como pedaços de paus e pedras, arcos/flechas, materiais pontudos como machados e facas – levou a criações elaboradas pelo homem no sentido de cada vez mais otimizar suas ações. Para Pinto, “o homem sempre progride na luta contra a natureza, porque tal é o modo de ser em que consiste sua diferenciação biológica. A forma específica da vitória continuamente conquistada é a técnica.” (PINTO, 2005, p.161). Partindo das necessidades naturais, o homem construiu ferramentas que lhe transformaram de um animal que dependia da natureza para seu consumo a um ser que extrai da natureza o que necessita para sobreviver, tornando-se um consumidor social com suas demandas, fruto de uma relação social, de um processo de troca, de estímulos e de percepções realizadas no tempo e no espaço cultural (PINTO, 2005).

Tomasello, ao analisar esse incrível “conjunto de habilidades cognitivas e de produtos manifestado pelos homens modernos” (TOMASELLO, 2003, p.5), credita a um processo de

transmissão cultural que “permite que cada organismo poupe muito tempo e esforço” (Ibid., 2003, p.4) no entendimento do conhecimento já constituído, sendo esse conjunto de habilidades cognitivas exclusivamente humanas o fruto de um processo histórico, herdado biologicamente e compartilhado socialmente, via canais de comunicações.

Nesse sentido, o homem construiu, no desafio às condições naturais, um espaço social a partir do fruto do trabalho coletivo. Para que pudesse ser compartilhado e incrementado, foi construída uma forma de comunicação, com seus símbolos e signos, transmitindo as técnicas e ferramentas, definindo e classificando o próprio ser humano e suas especificidades. Em cada época, um novo homem social foi moldando-se com suas características reatualizadas, disputando as noções simbólicas, porque foram configuradas culturalmente, de poder, de pertencimento, de preconceito e de discriminação, confrontando e desafiando enquanto seres sociais, objetivando-se no mundo do trabalho e corporificando-se nas relações sociais, ao nível da palavra, constituindo os conceitos e definindo suas práticas. Para Marx,

O objetivo do trabalho, portanto, é a objetificação da vida-espécie do homem, pois ele não mais se reproduz a si mesmo apenas intelectualmente, como na consciência, mas ativamente e em sentido real, e vê seu próprio reflexo em um mundo por ele construído. (MARX, 1975, p. 96-97)

Portanto, essas relações são permeadas de signos, em que são definidas as possibilidades, as competências e os anseios de cada indivíduo, bem como seu espaço e poder diante do resultado social da produção, fruto do trabalho coletivo. Nesse contexto, o valor do trabalho, para o ser humano, não está restrito à necessidade de sobrevivência, mas, também, no seu aspecto mais subjetivo, de pertencimento a um grupo, sua posição e contribuição social e realização pessoal, caracterizando-se por esse lado humanizador (CRUZ et al., 2015). Logo, a incorporação de parcelas excluídas da população no mercado de trabalho, como é o caso das pessoas com deficiência, relaciona-se com exigências humanas e, aliado a isso, fruto de conquistas sociais e políticas que levaram à mudança de paradigma, ressignificando os conceitos de produtividade e de competitividade12.

Tal mudança criou condições estruturais para que pessoas com deficiência incluíssem- se laboralmente. Isso significou um contingente significativo economicamente, otimizando a produção de bens necessários socialmente, alicerçada em uma nova visão de competência e

12 O Guia para Empresas sobre os direitos das Pessoas com Deficiência (2017, p.6) elencou algumas vantagens competitivas que podem ser auferidas por empresas que respeitem e apoiem os direitos das pessoas com deficiência, propiciando vagas e ambientes inclusivos: 1. ampliação de seu mercado de consumidores, incorporando um contingente de pessoas, e seus familiares, muito em função das possibilidades de ofertas de produtos e da reputação da empresa voltada aos valores humanos; 2. diversidade de idéias e inovações propiciadas pelos diferentes olhares de pessoas e condições; 3. ampliação de seu banco de talentos, contando com o contingente de pessoas com deficiência.

produtividade, que reconhece o impacto social do trabalho como elemento construtor de identidade social, bem como o “seu caráter organizador da rotina, das relações sociais e dos projetos de vida.” (COELHO, 2014, p.218).

Conforme colocado acima, as noções simbólicas foram constituintes dessa rede social em que o ser humano está inserido. Portanto, pensando na inclusão laboral das pessoas com deficiência, foi mister discutir o que é deficiência, as limitações e barreiras, as relações sociais e suas configurações, enquanto concepção de ser humano e de possibilidades de inserção, em um mundo social, composto por conceitos e signos, que moldaram a “normalidade” do homem a um determinado modo de produção e espaço cultural. Para Goffman (1988), “a noção de ‘ser humano normal’ pode ter sua origem na abordagem médica da humanidade, ou nas tendências das organizações burocráticas em grande escala, como a Nação-Estado, de tratar todos os seus membros como iguais em alguns aspectos.” (GOFFMANN, p.9).

Vygotsky (1983) já discutia essa perspectiva, ao analisar o que considerava deficiência, pois para o autor: “o que decide o destino da pessoa, em última análise, não é o defeito em si, mas suas conseqüências sociais, sua realização psicossocial.” (VYGOTSKY, p.19). Segundo ele, a percepção da deficiência não é sentida diretamente, mas nas dificuldades originadas a partir dela, o que apontava, já em 1929, para uma relação muito mais social do que de caráter médico. A deficiência em si, em tal perspectiva, é o ponto de partida para um processo de compensação, sendo possível estimular outros organismos, propiciando que a pessoa venha a apropriar-se do mundo, com uma vida social plena (PASSERINO et al., 2018).

Essa compensação é ilimitada? Sempre ocorrerá? Esse é o desafio colocado na pedagogia, no trabalho ou, mais amplamente, no espaço social. O que se apresenta, nessa questão, é o que se espera de cada indivíduo e o quanto a sociedade propõe-se enquanto possibilidade de pertencimento ao modo de produção vigente. Para Vygotsky, tal compensação poderia gerar resultados satisfatórios, quando uma habilidade é estimulada para a superação de uma deficiência detectada, mas que “a utilização de instrumentos psicológicos é realmente o mais essencial no comportamento cultural do homem.” (VYGOTSKY, 1983, p.32, tradução do autor deste trabalho).

Em muitos casos, a sociedade não aceita essa compensação. O peso cultural, proveniente de uma carga simbólica, não carrega, em si, a possibilidade de compensação, pois não admite possibilidades diferentes do que as já instituídas culturalmente e, muito especificamente no trabalho, que permanece intocável, tendo que a pessoa com deficiência

adaptar-se a ele (COELHO, 2014). Tal peso cultural não só inibe uma compensação, mas reforça algo que será carregado como um fardo, além da deficiência verificada, que é o sentimento de inferioridade, decorrente do simbolismo apresentado socialmente.

Goffman (1988) definiu essa carga simbólica como um estigma, sendo “uma ideologia para explicar a sua inferioridade e dar conta do perigo que ela representa” (GOFFMAN, 1988, p.8), colocando que ele estará sendo referenciado a um atributo depreciativo, que se confirmará na linguagem de relações. O autor, ao fazer um contraponto ao “ser humano normal”, colocou que a pessoa estigmatizada é vista como fora da normalidade, ou seja, não é alguém completamente humano e poderá reagir de diferentes formas - da aceitação do que se define como respostas aos seus atributos à autodepreciação, ao isolamento social, à vitimização ou, até mesmo, à possibilidade de ganhos secundários usando como referência os seus atributos e as desculpas pelo seu fracasso. Vygotsky colocará que,

No processo bimembro ‘compensação - defeito’ é introduzido um terceiro membro, intermediário: ‘defeito - sensação de inferioridade - compensação’. O defeito não causa compensação direta, mas indiretamente, através do sentimento de inferioridade que cria. É fácil explicar com exemplos que o sentimento de inferioridade é a avaliação psicológica da posição social. (VIGOTSKY, 1983, p.18, tradução nossa)

Ou seja, as possibilidades de compensações não estão relacionadas ao aspecto orgânico, mas sim, aos aspectos psicossociais, podendo ser potencializadas com recursos construídos pelo homem, como as tecnologias assistivas, os recursos pedagógicos e atitudinais. Essa possibilidade de compensação torna-se mais latente quando se discute e, novamente, retorna-se ao produto do trabalho e da comunicação, que se avançou enquanto humano no que tange às técnicas, ao conhecimento, à tecnologia, mas, em especial, nas possibilidades de entendimento do ser humano enquanto um ser individualizado e diferenciado. O organismo social, assim como o organismo físico, possui uma importância enorme no processo de compensação. Segundo Goffman,

“Embora essas filosofias de vida propostas, essas receitas de ser, sejam apresentadas como resultantes do ponto de vista pessoal do indivíduo estigmatizado, a análise mostra que algo mais as informa. Esse algo mais são os grupos, no sentido amplo de pessoas situadas numa posição semelhante, e isso é a única coisa que se pode esperar, já que o que um indivíduo é, ou poderia ser, deriva do lugar que ocupam os seus iguais na estrutura social.” (GOFFMANN, 1988, p.96)

Tais relações sociais colocadas entre a pessoa estigmatizada e seu espaço social levam a pensar que, ao se tratar de acessibilidade, não se estará tratando apenas do acesso formal no sentido de produtos e serviços às pessoas com deficiência, estará se tratando, especialmente,

da sua característica social e cultural (CRUZ et al., 2015) que, no caso de uma organização social, influenciará nos processos e nas ações que possibilitam o estabelecimento de uma cultura que tenha as relações inclusivas como fundamento.