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O individualismo cultural

Os cidadãos de um país comungam crenças e valores que integram a sua cultura nacional e constituem uma parte importante do seu patrimó- nio simbólico. Poderemos entender a cultura nacional como uma con- cepção simbólica da sociedade e do lugar nela ocupado pelo indivíduo, incluindo o conjunto de princípios organizadores das suas relações tanto com a sociedade, em geral, como com grupos sociais mais específicos (Landau et al. 2004). Uma dimensão organizadora e distintiva das culturas nacionais que tem sido largamente estudada nas últimas décadas é a do

individualismo/colectivismo. Hofstede (1980) definiu o individualismo como

a preocupação consigo próprio e com a família imediata, o enfoque na autonomia pessoal e na auto-realização e a fundamentação da identidade nas próprias realizações individuais. Pelo contrário, o colectivismo corres- ponderia à preocupação com as relações sociais e à preponderância do grupo sobre o indivíduo. Neste último caso, o indivíduo define-se pri- mariamente como membro do grupo e não como entidade isolada. O grupo, com os seus objectivos comuns e valores partilhados, é central para os indivíduos e funciona como regulador do seu comportamento público e privado.

Existem, no entanto, alguns problemas associados ao construto do in- dividualismo cultural. Em primeiro lugar, embora profusa, a evidência empírica nem sempre é consistente (Oyserman, Coon e Kemmelmeier 2002). Em segundo lugar, essa evidência enferma de problemas metodo- lógicos nomeadamente relativos a problemas amostrais – a maioria dos

1No presente texto adoptamos a concepção unidimensional segundo a qual o colecti-

vismo representa o pólo oposto ao individualismo numa mesma dimensão cultural. Por isso, usamos o termo «individualismo» como forma reduzida de «individualismo/colec- tivismo». Contudo, devemos referir que esta concepção não é única. Para alguns autores (Rhee, Uleman e Lee 1996; Oyserman, Coon e Kemmelmeier 2002; Triandis 1989), co- lectivismo e individualismo podem ser dimensões independentes.

inquéritos tem sido aplicada a estudantes e concentra-se num número restrito de países (como os EUA, representando o individualismo, e o Japão ou Hong-Kong, representando o colectivismo). Todavia, segundo Oyserman, Coon e Kemmelmeier (2002), alguns resultados empíricos têm-se mostrado estáveis e fidedignos. Destes, descrevemos já de seguida alguns exemplos de forma a traçar um retrato sumário do individualismo. A nível psicológico, a investigação tem encontrado diferenças entre o individualismo e o colectivismo em aspectos como o autoconceito, a percepção social e a atribuição causal. Por exemplo, Oyserman, Coon e Kemmelmeier (2002) referem estudos que, usando testes de autodescri- ção, mostram que respondentes norte-americanos (individualistas) evo- cam mais atributos pessoais do que respondentes do Sudoeste asiático (colectivistas) ou que estes últimos usam mais identidades sociais para se autodescreverem do que os primeiros (Triandis 1989). Por outro lado, ve- rificou-se nas culturas colectivistas uma distinção importante entre mem- bros do endogrupo (família, casta, ou outro grupo definido pela tradição, etc.) e do exogrupo e uma variação drástica do comportamento em fun- ção dessa categorização (Triandis 1989). De facto, a evidência indica que, nos países colectivistas, o comportamento é caloroso na interacção com membros do endogrupo e desconfiado e distante no caso do exogrupo, enquanto, nos países individualistas, o tipo de interacção varia menos porque os outros são percebidos de forma mais «descategorizada». Aliás, segundo Oyserman, Coon e Kemmelmeier (2002), a facilidade de inte- racção com estranhos é um dos aspectos mais emblemáticos da cultura individualista, onde a maioria das pessoas é considerada digna de con- fiança.

O individualismo cultural influi noutros aspectos da elaboração da realidade social. De facto, embora exista uma tendência geral para explicar os comportamentos mais como resultado de características da persona- lidade do que de factores contextuais (Gilbert e Malone 1995; Ross 1977), essa tendência é mais forte nas culturas individualistas do que nas colec- tivistas (Choi e Nisbett 1998). Este facto é compatível com o princípio individualista, segundo o qual o indivíduo é o principal agente das suas cognições, emoções e comportamentos (Markus e Kitayama 1991).

Do ponto de vista sociológico, o individualismo está associado ao de- senvolvimento histórico da classe média e da doutrina da «meritocracia» (Delumeau 1984) e à maior mobilidade social que lhe está associada (Hofs- tede 2001). Este estado de coisas é consistente com a cultura legal-racional individualista, em que as relações entre os indivíduos são reguladas pela lei formal, que se sobrepõe a normas específicas ou locais. Pelo contrário,

a cultura colectivista basear-se-ia no poder tradicional, em que a gestão dos conflitos é da responsabilidade dos próprios grupos e feita em função das normas específicas desses grupos (Bierbrauer 1994). Assim, enquanto o par-

ticularismo próprio da cultura colectivista propicia a reprodução de formas

tradicionais de desigualdade, o universalismo da cultura individualista (a mesma lei para todos) favorece a mobilidade social, o que teria como con- sequência um nivelamento social (Hofstede 2001).2Consistente com estes dados, a análise realizada por Hofstede (2001) ao nível das empresas revelou que o individualismo está negativamente associado com o corporativismo, a centralização organizacional e a concentração da propriedade accionista, sugerindo uma maior distribuição das influências e da riqueza nas culturas individualistas. Como afirma Hofstede, «o individualismo está histórica e geograficamente ligado ao capitalismo de mercado, à competição e à de- mocracia política» (2001, 245).3

Em finais dos anos 1960, Hofstede encetou um estudo multinacional que estabeleceu um índice de individualismo para 56 países (Hofstede 1980). Esse índice é baseado no peso relativo atribuído a um conjunto de valores de trabalho, nomeadamente o peso positivo atribuído à possi- bilidade de usufruir de tempo para a vida pessoal e para a família próxima e o peso negativo atribuído à formação e condições de trabalho. O índice varia entre 0 e 100, representando os valores mais baixos as cul- turas colectivistas e os mais altos as individualistas.

O índice apresenta limitações a nível do método (redução do cons- truto à mera pontuação em alguns valores de trabalho) e da amostra (cir- cunscrito aos empregados das filiais da IBM).4Apesar disso, a sua vali- dade externa é elevada. O índice de Hofstede correlaciona-se com resultados obtidos noutros tipos de amostra e relativos a outros tipos de valores além dos do trabalho (Inglehart 1997; Schwartz 1994) e revelou- -se mais estável e fiável do que se poderia inferir do método utilizado (Oyserman, Coon e Kemmelmeier 2002).

2O GINI é o índice mais usado para medir a desigualdade social, em que 0 corres-

ponde à máxima igualdade e 100 à máxima desigualdade. Nos países inquiridos, a corre- lação do índice GINI (UNDP, 2005) com o índice de individualismo foi r (30) = –0,33, p = 0,07.

3Esta é também a opinião de sociólogos clássicos, como Marx, Durkheim, Weber e

Simmel, que viam o individualismo como uma consequência directa da competição e relações do tipo capitalista que começaram a despontar no Ocidente a partir do século

XVIIcom a queda do feudalismo e a emergência da burguesia (mas v. Turner 1988, mais

adiante).

4Outro dos problemas apontados por alguns autores é a redução do individualismo

A utilização do índice em numerosos estudos transculturais revela uma associação clara do individualismo com variáveis sócio-culturais, políticas e económicas (Hofstede 1980 e 2001). De particular interesse para o nosso estudo é a forte correlação encontrada entre o individualismo e o desen- volvimento económico (em 1970, a correlação era r = 0,84, p < 0,001, para um conjunto de 50 países). De facto, a forte associação com a riqueza nacional relativiza o impacto de alguns dos efeitos mais importantes do individualismo cultural, quer ao nível psicológico, quer sociológico. Por exemplo, a relação encontrada com o bem-estar e satisfação com a vida (Inglehart 1997; Markus e Kitayama 1991) torna-se não significativa quando se controla o produto nacional bruto (PNB) dos países (Oyser- man, Coon e Kemmelmeier 2002), o mesmo acontecendo relativamente à correlação positiva com o tamanho das organizações (Hofstede 2001). Com efeito, estudos longitudinais do individualismo revelam que o au- mento do índice ao longo do tempo é característico dos países que apre- sentam maior crescimento económico, o que sugere que a riqueza é a causa e o individualismo o efeito. No entanto, como refere Hofstede (2001), existe um remanescente que não pode ser completamente atri- buído à economia, mantendo os países mais individualistas (como a Grã- - Bretanha) um índice superior ao dos colectivistas (Hong-Kong) mesmo quando, com o tempo, os respectivos PNB se aproximam. Também o caso do Japão, que experimentou um rápido desenvolvimento económico no período pós-guerra, mantendo ainda assim os traços colectivistas es- senciais da sua cultura, sugere que a relação riqueza/individualismo não é absolutamente determinada pela riqueza de um país.5

A propósito da forte relação existente entre o individualismo e o de- senvolvimento económico, Triandis (1973 e 1984) desenvolveu um mo- delo que relaciona o sucesso económico das regiões com variáveis tanto

5Por exemplo, Turner (1988), apoiando-se também no exemplo do Japão, defende

que a relação entre o individualismo e o capitalismo é meramente contingencial. Para este autor, o individualismo tem raízes próprias e mais longínquas, tendo-se desenvolvido a partir, por exemplo, da ênfase judaico-cristã na pessoa como agente consciente e autó- nomo (a alma) ou da ênfase do direito romano na responsabilidade individual (a persona). A cultura do indivíduo teria recebido um novo impulso com a concepção protestante do indivíduo despido de culpa e, em tempos mais recentes, com as teorias do contrato social de Hobbes e Rousseau, baseadas na diferenciação entre o indivíduo e a sociedade. Nessa altura o individualismo e o capitalismo emergente terão estabelecido uma relação sinérgica, tendo o primeiro fornecido ao segundo a necessária ideologia legitimadora da propriedade privada. Segundo Turner, assiste-se hoje à «emergência de uma forma colec- tiva de capitalismo [que] opera com um sujeito económico [a corporação] que não é in- dividual nem simplesmente redutível a pessoas individuais» (1988, 57), indicando que o capitalismo e o individualismo não são ideologias inseparáveis.

físicas como sócio-culturais, muitas das quais enquadráveis nas culturas individualistas e colectivistas. O autor defende que o estilo educativo adoptado nas culturas individualistas, promotor da autonomia, da gestão eficaz do tempo, da cooperação, da confiança nos outros ou da orienta- ção para o trabalho, tem como antecedentes particularidades do território relacionadas com a facilidade na obtenção dos recursos e a previsibilidade do meio físico e como resultado principal o desenvolvimento de um sis- tema organizativo eficaz e gerador de riqueza. Já a educação para a inter- dependência e a existência de pequenos endogrupos poderosos, caracte- rísticos das culturas colectivistas, resultaria de um ambiente hostil em que os recursos são obtidos a custo e de forma irregular, produzindo, por sua vez, um sistema ineficaz, fragmentado, sem controlo sobre os grupos de interesse e incapaz de gerar riqueza, exceptuando em alguns sectores privilegiados.6

Para além das variáveis do modelo de Triandis (1973 e 1984) já men- cionadas, duas outras com particular interesse para a nossa análise são a clareza normativa e a fraca diversidade cultural. Segundo Triandis, a pre- visibilidade do meio, necessária ao desenvolvimento económico, é in- compatível com a existência de numerosas excepções à regra relacionadas com distintos grupos sociais, etnias, etc. Existiria assim nas sociedades economicamente desenvolvidas uma pressão social intensa para a ho- mogeneidade normativa, de forma a imperarem regras únicas aplicáveis a todos os indivíduos, independentemente das suas pertenças étnicas, preferências religiosas, políticas, etc. (aliás, congruente com o atrás men- cionado universalismo individualista). Trata-se, de certo modo, de uma perspectiva de assimilação cultural, no sentido apontado por Berry (1984a), cujas implicações psicológicas passam pela motivação dos indivíduos para se recategorizarem enquanto membros de uma cultura mais geral, em detrimento de uma representação da sociedade enquanto entidade

6A propósito das prioridades educativas nas diversas culturas, é de recordar os resul-

tados encontrados por Almeida (2003) na comparação do conceito de família em diversos países no âmbito do European Values Study. A autora verificou que os portugueses valori- zavam mais a obediência ou o altruísmo do que a independência ou a imaginação como qualidades a ensinar às crianças. Esta hierarquia de valores educacionais opõe-se aos pa- drões médios da União Europeia, nomeadamente à Suécia, onde a hierarquia de valores é exactamente a contrária. Estes resultados confirmam a cultura marcadamente colecti- vista dos portugueses, que privilegia o grupo e a obediência às suas normas. Cf. também os resultados da meta-análise de Bond e Smith (1996), que encontraram uma associação negativa entre os níveis de conformidade no laboratório e os índices de individualismo dos países onde os estudos foram conduzidos.

seccionada em identidades conflituais (Dovidio et al. 2004). Em apoio deste aspecto do modelo, no Eurobarómetro de 1997, a correlação entre o individualismo e a tolerância à diversidade cultural é de r (15) = 0,48,

p < 0,05. Por exemplo, mais de 80% dos respondentes dos países euro-

peus individualistas (Dinamarca, Suécia, Holanda) são adeptos da assi- milação e de que as minorias devem abdicar dos seus costumes, especial- mente daqueles que são contrários à lei do país hospedeiro. Pelo contrário, menos de 40% dos respondentes dos países menos individua- listas (Espanha, Itália) defendem essa opinião. Nesta sondagem, Portugal situa-se mais próximo destes últimos países, com 56% de respondentes a discordarem de que as minorias devem manter as suas tradições.

Em suma, o individualismo cultural parece constituir uma dimensão relevante para a análise comparativa das identidades nacionais. Partindo do princípio de que a cultura afecta a predominância da identidade pes- soal sobre a identidade colectiva, ou vice-versa, e de que a identidade na- cional é, por natureza, uma identidade colectiva, poderia esperar-se uma maior importância da identidade nacional nas culturas colectivistas do que nas culturas individualistas. Contudo, a nacionalidade reporta-se a um endogrupo amplo e, por isso, provavelmente irrelevante para as ne- cessidades de interacção no seio das culturas colectivistas. Assim, para os membros dessas culturas, a identidade nacional poderá ser menos rele- vante do que outras identidades sociais que se tornam psicologicamente mais salientes por serem mais frequentemente mobilizadas na vida quo- tidiana. Além disso, estando o individualismo associado a aspectos como a riqueza e administrações bem sucedidas, que contribuem para uma identidade nacional positiva, poder-se-á esperar, aparentemente em con- traste com a predição anterior, que os membros de culturas individualis- tas sintam mais orgulho na sua identidade nacional do que os membros de culturas colectivistas. Para além destas questões, parece-nos também clara a necessidade de ter em conta o desenvolvimento económico como variável relevante na análise das relações entre o individualismo cultural e a identidade nacional. É o que faremos na análise empírica reportada a seguir.