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Uma síntese do peso relativo de indicadores da identidade nacional

Perante estes resultados, procurámos, para melhor entender o caso por- tuguês, ampliar a sua análise, situando-o em perspectiva face aos outros países abrangidos no inquérito; ao mesmo tempo iríamos avaliar a pre- sença relativa da dicotomia de Kohn nos dados globais deste. Para esse efeito, começámos por recorrer a uma análise factorial em componentes principais – cujos resultados são apresentados abaixo – às oito questões relativas aos factores considerados importantes para a identidade nacio- nal. Identificaram-se dois factores.11O seu exame mostra que as dimen- sões étnicas e cívicas do nacionalismo não são categorias segregadas na mente dos inquiridos, ou seja, que elas não se excluem. Este dado con- verge com as observações de muitos investigadores do nacionalismo, como os que citámos de início, que insistem no facto de os nacionalis- mos combinarem habitualmente, de modo variável, dimensões classifi- cadas como «cívicas» e «étnicas», com excepção naturalmente de casos

11Estes dois factores são responsáveis por 60% da variância das respostas dadas pelos

38 073 indivíduos que responderam a todas estas questões. Todos os indicadores estão bem representados nesta estrutura, uma vez que a comunalidade é sempre superior a 0,43. O primeiro factor é claramente mais relevante (variância explicada de 44%) do que o segundo factor (que apenas explica 14%). A rotação Varimax, que convergiu em 3 ite- rações, permite identificar os itens correspondentes a cada factor.

mais radicais, como o foi a Alemanha nazi, um Estado racista. Assim, o primeiro factor inclui dimensões étnicas da identidade nacional (como o item central referente aos antepassados ou o que respeita à religião), mas agrega-lhe alguns que não estão necessariamente associados à etni- cidade, como o ter nascido no país (a condição dos filhos de imigrantes) ou ter nele vivido durante a maior parte da sua vida. O segundo factor insere dimensões cívicas da mesma identidade, juntando indicadores que se prendem com o respeito pelas leis e instituições do país, com outros, como falar a língua, elemento frequentemente ligado à existência do na- cionalismo étnico (embora a língua possa ser aprendida por quem não tem ascendentes que sejam falantes ou tenha uma outra língua ma- terna).12O único indicador com peso factorial idêntico nos dois factores é o indicador «ter a nacionalidade do país».13

Em virtude de a análise factorial não distinguir com clareza a dimensão cívica da dimensão étnica no primeiro factor, abandonámos estes resul- tados e recorremos a indicadores que representam nitidamente o peso das duas dimensões na representação nacional. Assim, como indicador da dimensão étnica escolhemos «ter antepassados nacionais» e como in-

Quadro 3.1 – Ser-se verdadeiramente um nacional

(AFCP – rotação Varimax)

Factor 1 Factor 2

Ter nascido no país 0,81 0,16

Ter antepassados do país 0,81 0,12

Ter vivido no país a maior parte da sua vida 0,69 0,36

Ser [religião] 0,65 0,07

Ter a nacionalidade do país 0,56 0,49

Respeitar as instituições políticas e as leis do país 0,07 0,82

Falar a língua do país 0,25 0,65

Sentir-se do país 0,35 0,64

% variância explicada 44 14

12Assinale-se, no entanto, que esta estrutura factorial – em que em cada factor já se

incluem dimensões identificadas como «cívicas» e «étnicas» – não emerge em todos os países. Em Portugal – e mais nove países (República Checa, Polónia, Rússia, Filipinas, Japão, Espanha, Eslováquia, Venezuela, Coreia do Sul) – a análise factorial identifica ape- nas um factor, o que apoia os argumentos de quem sublinha a coexistência de dimensões classificadas como «cívicas» e como «étnicas» na forma como as identidades nacionais são representadas.

13Terá havido confusão entre os conteúdos de «cidadania» e de «nacionalidade», pos-

dicadores da dimensão cívica seleccionámos os indicadores «respeitar as instituições políticas e as leis do país» e «ter nascido no país».

Representámos nas figuras 3.6 e 3.7 de modo mais sintético e articu- lado do que nos gráficos unidimensionais a distribuição dos diversos paí- ses abrangidos pelo inquérito no que se reporta ao peso relativo de indi- cadores étnicos e cívicos na caracterização da identidade nacional – o «ser verdadeiramente...» –, procurando discernir o lugar de Portugal na mesma.

Contrapusemos, em primeiro lugar, os indicadores «ter antepassados» e «respeitar as leis e as instituições». Verificámos que ambos são muito im- portantes. Observámos, no entanto, que Portugal se insere no conjunto dos que dão simultaneamente muita importância aos factores cívicos e étnicos (entre os quais se encontram alguns países do Leste europeu e al- guns antigos países comunistas, onde o fim desses regimes foi acompa- nhado pelo ressurgir do nacionalismo). Os países da Escandinávia, os paí-

Figura 3.6 – Comparação do posicionamento dos países em termos de um indicador de nacionalismo cívico

(respeitar as leis e as instituições) e étnico (ter antepassados)

(médias) 4,0 3,5 3,0 2,5 2,0 2,0 2,5 3,0 3,5 4,0

Ter antepassados nacionais

R

espeitar as leis e as instituições

Suécia CanadáFrança EUA Noruega Dinamarca Israel-A Taiwan N. Zelândia Austrália Grã-Bretanha Suíça Finlândia Alemanha Oc. Áustria Eslovénia Rep. Checa

Alemanha Or. Israel-J

Espanha

Uruguai ChileVenezuela

Portugal Rússia Hungria Polónia Coreia do Sul África do Sul Irlanda Eslováquia Japão Filipinas

ses cuja existência é o produto de migrações em larga escala – Canadá, Austrália, EUA –, países com uma forte tradição cívica e assimilacionista, como a França (Brubaker 1992), e aqueles cujo passado etno-racial é fonte de estigma – as Alemanhas – dão um pouco mais de ênfase às dimensões cívicas do que às étnicas, o mesmo sucedendo com israelitas, árabes e ju- deus. O Japão aparece destacado no que se refere à prevalência da dimen- são étnica, o que estará em sintonia com o tipo de nacionalismo etno-ra- cial historicamente dominante nesse país, apesar de alguma investigação recente assinalar sinais de mudança (Sugimoto 2006).

Confrontámos igualmente as posições dos diversos países no que res- peita aos indicadores relativos a «ter nascido» num determinado territó- rio» e «ter antepassados», enquadrando igualmente Portugal a este res- peito. Lembre-se que se relacionam com dois princípios nucleares da aquisição da nacionalidade/cidadania, o ius solis e o ius sanguinis, e com dois tópicos recorrentes nos discursos nacionalistas: a «terra» e o «sangue».

Figura 3.7 – Comparação do posicionamento dos países em indicadores de nacionalismo étnico (ter antepassados) e cívico

(nacionalidade decorrente do nascimento)

(médias) 4,0 3,5 3,0 2,5 2,0 2,0 2,5 3,0 3,5 4,0

Ter antepassados nacionais

Ter nascido no país

Suécia Canadá França EUA Noruega Dinamarca Israel-A Taiwan N. Zelândia Austrália Grã-Bretanha Suíça Finlândia Alemanha Oc. Áustria

Eslovénia Rep. Checa

Alemanha Or. Israel-J Espanha Uruguai Chile Venezuela Portugal Rússia Hungria Polónia Coreia do Sul África do Sul Irlanda Eslováquia Japão Filipinas

Há quem precisamente considere elemento nuclear do nacionalismo dito étnico e do nacionalismo cívico a ênfase colocada no descender de na- cionais para se ser membro da nação, no caso do primeiro, e o nascer no território tido como nacional, no do segundo (Grosby 2005). De um modo geral, não encontramos nestes dados uma disjunção. Na maior parte dos casos, a importância atribuída a ter antepassados nacionais tende a ser semelhante à atribuída a ter nascido no país. No grupo dos países que dão relativamente menos importância a ambos os atributos encontramos as Alemanhas, o que parece reflectir uma censura, por ra- zões históricas, a expressões públicas de nacionalismo. Os árabes de Israel destacam-se claramente na ênfase dada ao ter nascido no país, o que está em consonância com as suas reivindicações. Portugal encontra-se clara- mente no grupo dos que acham importantes ambos os factores. A legis- lação portuguesa da nacionalidade combina ambos, embora seja preva- lecente o ius sanguinis; o ius solis foi reforçado recentemente pela nova lei da nacionalidade de 2006 (Sobral 2007a).

A leitura destes gráficos mostra que, em geral, não nos encontramos perante dimensões que se excluem nas representações do que é ser-se na- cional. Na nossa perspectiva, a distribuição revela-nos a existência de um

continuum com muitos países com tendência a concentrarem-se ao centro

e um número menor de outros mais ou menos próximos de cada um dos pólos. Em Portugal, ambos os aspectos – cívicos e étnicos – são re- levantes. A nossa análise parece conferir pertinência às observações de Anthony Smith, que utilizou essa imagem do continuum: «[...] De facto, todos os nacionalismos contêm elementos étnicos e cívicos que variam em forma e grau diferentes. Umas vezes predominam os aspectos cívicos; outras, as componentes étnicas e vernaculares» (Smith 1991, 13).14Insis- tiria, como o caso da Alemanha bem ilustra, na historicidade inerente a todos estes processos: elementos exaltados num determinado contexto (antepassados/raça) podem ver a sua importância diminuir fortemente noutro momento histórico, sobretudo quando são motivo de censura.15 O Portugal da década de 40, dominado pela exaltação imperial e colo- nialista do Estado Novo, em que se assumia como algo indiscutível a su- perioridade da chamada «raça branca», se enfatizava o peso dos antepas- sados e se tinha a dominação dos povos colonizados como algo natural,

14V. igualmente Smith (2006) e Janmaat (2006).

15 Mesmo em países de imigração e prevalência do ius solis, sem uma antiga história

étnica, como os EUA (Grant 2006) e o Canadá (Buckner 2006) , tem-se assinalado a mis- tura de elementos «cívicos» e «étnicos» – e de racismo e discriminação – nos seus nacio- nalismos oficiais.

é algo bem distinto do Portugal pós-colonial, em que o nacionalismo oficial sublinha os laços de fraternidade horizontal que unirão os países de língua oficial portuguesa. É legítimo presumir que as caracterizações «populares» da identidade nacional fossem então bem diferentes das re- veladas nas respostas a este inquérito.

Orgulho e decepção, passado e presente