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CAPÍTULO I. PRESSUPOSTOS ONTOLÓGICOS E EPISTÊMICOS QUE

1.4 O lugar como cenário de disputa pelo sentido

Depois das reflexões sobre o lugar, pode-se considerar a sua importância não só pelo questionamento que se faz à concepção do espaço construída pela modernidade europeia, mas também pelas possibilidades de visibilizar outras formas de vida que impliquem outros relacionamentos sociais com a natureza.

Devido à separação entre natureza e o humano, onde o ser humano foi sujeito de conhecimento e a natureza objeto para ser controlado e manipulado, o espaço e o tempo foram concebidos pela modernidade europeia como abstrações que subjaziam aos objetos e suas relações, de forma que permitiu compreender as coisas matematicamente como se elas só fossem movimento e extensão. Essa quantificação e homogeneização tanto do tempo quanto do espaço foram muito úteis para que a ciência moderna desligasse o acontecimento de qualquer particularidade onde se implicassem ritmos vitais.

Assim, o detrimento da experiência de viver num lugar em favor da quantificação e da abstração do existente foi útil para reduzir a diversidade do vivente apenas a recurso ou força,

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o que facilitou sua incorporação no processo econômico capitalista. Impusesse a ideia da natureza como recurso infinito e a atividade humana passou a ser assumida como valor só se fosse tempo invertido socialmente na produção de coisas.

Isolado dos contextos sociais e culturais, e na procura de impor sob a pretensão de universalidade seu saber e suas práticas culturais, a modernidade europeia negou, quando não aniquilou, outras maneiras de viver socialmente e em relação à natureza. O espaço e o tempo diluíram os lugares numa homogeneização epistêmica que invisibilizou os habitares onde se relacionavam e davam sentido a sua existência povos e comunidades

Porém, não pensamos que os lugares sejam apenas diferença cultural criada a partir de relações de poder (Gupta y Ferguson, 2008); negando assim, qualquer relação interna entre os habitantes e seus habitares ao momento de compreender os lugares. Mais do que isso, o lugar é disputável, precisamente porque nele as discursividades hegemônicas da modernidade capitalista devem ser agenciadas pelas elites locais para se fazer efetivas enquanto que outras práticas, outros saberes e outras formas de vida nos lugares tentam resistir ou quebrar essa mesma hegemonia, às vezes, negociando na mesma linguagem que o hegemônico propõe. Gupta e Ferguson dizem, com base na premissa de que as culturas dos povos estão interconectadas desde sempre hierarquicamente num espaço continuo e não discreto, que a diferença cultural não é o resultado da articulação e da conexão de povos primitivamente isolados e identificados com um território, senão um processo de produção traspassado por relações de poder num espaço desde sempre interconectado. Assim, a comunidade e a localidade como categorias primordiais para definir a cultura se constroem como uma maneira de gerar hierarquias em um sistema global de dominação, onde o lugar construído fala da relevância dos povos.

A ideia ortodoxa que a cultura naturaliza o espaço como lugar imaginado, dizem Gupta e Ferguson, não permite compreender que a diferenciação cultural seja uma construção produzida em meio de relações de poder por uma economia global. O que tem como consequência que as comunidades sejam uma formação externa a elas mesmas, pois a cultura sempre é produto de relações de diferenciação acontecida num espaço continuo. O mais que admitem Gupta e Ferguson para os territórios é que eles podem ser lugares imaginados como uma maneira de viver as identidades e resistir à perda da cultura como sendo autónoma e própria dos povos.

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Em sua tentativa por “desnaturalizar” as divisões culturais e espaciais que permitam tornar visíveis as relações de poder, Gupta e Ferguson terminam por negar qualquer possibilidade às maneiras particulares em que um povo, mediado pela natureza, produz seus modos de vida; pois, para eles, sempre toda territorialidade é produzida externamente aos povos mesmos. Concordamos com que os povos e sua cultura não são isolados nem totalmente autônomos, senão que eles estão interconectados, como dizem Gupta e Ferguson, só que não acreditamos nem que o espaço seja um contínuo desde sempre, nem que a diferencia cultural seja uma construção somente determinada de maneira externa às comunidades. Seguindo a Wolf (1994: 467), pensamos que os povos estão interconectados historicamente segundo interesses económicos e políticos que implicam relações de poder, mas também se constituem de maneira interna, ainda que instavelmente e sem limites fixos.

Pensamos que, embora a hegemonia do Ocidente com sua episteme e seus processos de globalização tenham modificado os lugares para serem assumidos dependentes e rentáveis economicamente, também é verdade que existem outras maneiras dentro dos mesmos lugares de assumir a relação com o habitar, as quais, sendo invisibilizadas ou muitas vezes subordinadas, recusam desaparecer.

Deste modo, o lugar apresenta uma ambiguidade, pois é tanto a possibilidade do reconhecimento quanto a possibilidade de sua expropriação. Ante a intenção de ampliar as possibilidades da acumulação e superar suas crises, o capitalismo nomeia aquilo que pode entrar a ser parte de seus ativos e base de direitos da propriedade. Daí que os lugares se fazem importantes na procura de inserir novos elementos na lógica de produção capitalista.

Seguindo a Wolf (1994), um modo de produção implica não só a maneira como uma sociedade se relaciona com a natureza, senão também a maneira em que essa sociedade organiza os laços sociais para fazer essa relação (1994: 97-98). Nessa perspectiva, o capitalismo como modo de produção, diz Wolf, não só tenta ampliar e vender os excedentes de bens que produz, mas também procura conseguir matérias-primas e mão-de-obra barata, criando processos de domínio sobre outros modos de produção não capitalistas (199: 366). Por isso, quando o modo de produção capitalista entra numa comunidade, mais que buscar comerciar os produtos de consumo, busca apropriar-se da terra e tornar as pessoas em assalariados. O capitalismo, na perspectiva de Wolf, ao procurar modificar os modos de produção (isto é, as maneiras em que as comunidades relacionam-se com a terra, mas também

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a maneira em que estas se organizam para se relacionar com ela), causa o detrimento da cultura dos povos.

Porém, nesses mesmos lugares onde o capitalismo tenta impor sua lógica na procura de sua acumulação, existem outras maneiras de habitar, isto é, práticas, saberes e modos de vida que dão outro sentido aos territórios, na busca por defender outros relacionamentos com a natureza que não façam dela apenas um recurso material dentro da produção de mercadorias, para ganhar ou perder valor monetário segundo os interesses particulares do mercado global. Nas palavras de Arturo Escobar: “Los lugares son el sitio de culturas, economías y ambientes dinámicos en vez de sólo nodos en un sistema capitalista global” (2010: 79).