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Grupo I / zona Oeste

NORMANDO/NORTE EUROPEU NEOCOLONIAL SIMPLIFICADO

III.4. As recriações e os sincretismos arquitetônicos : o surgimento de uma linguagem estilística paulistana

III.4.2. O “MANEIRISMO PAULISTANO”

No início dos anos 20, surgiu na cidade de São Paulo uma singular corrente arquitetônica que se difundiu durante todo o período entre-guerras. Esta corrente desenvolveu-se em São Paulo contemporaneamente ao Neocolonial luso-brasileiro e perdurou até a Segunda Guerra Mundial, quando novas condições políticas, econômicas, sociais e culturais emergiram e determinaram o seu esquecimento, propiciando o aparecimento de uma nova estética, agora vinculada ao Modernismo e ao concreto armado.

Pelo nosso estudo, constatamos que inúmeras residências de cunho popular das décadas de 1920 e 1930 utilizavam-se de um mesmo repertório morfológico ou elenco de estilemas, o que revelava o predomínio de um “gosto” comum. A constância de uma “família” arquitetônica, sempre presente num significativo número de edificações semelhantes entre si espalhadas por diversos bairros da cidade de São Paulo, denotava uma forma particular de projetar e construir.

Tal manifestação arquitetônica freqüente à classe média pode ser interpretada como uma recriação, e, em alguns casos, até mesmo, como uma apropriação e simplificação da arquitetura “tradicionalista” de Victor Dubugras. Se considerarmos que a sua notável criatividade definiu uma obra própria e inconfundível, muito apreciada na época, podemos sem receio afirmar que alguns dos estilemas criados por ele serviram de paradigma, e foram incorporados e transformados por aquele setor da coletividade paulistana na formulação de uma determinada linguagem arquitetônica, conforme pudemos comprovar na nossa pesquisa, quando distinguimos o até então chamado Neocolonial Simplificado.

A partir da constatação de que essa produção residencial revelava a singularidade expressiva de um estrato da sociedade paulistana num determinado período, ou mais precisamente, revelava uma maneira de fazer arquitetura da classe média no entre-guerras, julgamos apropriado denominar de “Maneirismo Paulistano”45 a corrente arquitetônica que a

identificava. Assim, o nome “Paulistano” foi atribuído a esta manifestação arquitetônica residencial porque ela se revelou um fenômeno típico da cidade de São Paulo, conforme pudemos observar, e também porque até o momento só temos conhecimento da ocorrência de casos esporádicos fora da capital paulista.

45 É necessário ressaltar, porém, que o emprego do termo “Maneirismo Paulistano” nesse trabalho não está relacionado com o

movimento artístico denominado Maneirismo. “/.../ Em sentido restrito, o Maneirismo designa as artes plásticas e a literatura

da época entre o renascimento tardio e o Barroco, mais ou menos de 1525 a 1620.” In: KOCH, Wilfried. Estilos de Arquitetura

Cabe salientar, no entanto, que não pretendemos caracterizar o “Maneirismo Paulistano” como um novo estilo, e aqui lembramos as palavras do arquiteto e historiador Ítalo Campofiorito que nos esclarece sobre a distinção entre estilo e o termo italiano “maniera”. Campofiorito nos diz que esta diferença “/.../ só se firmou no séc. XIX, quando

Quatremère de Quincy, /.../ a definiu em seu Dictionnaire Historique (1832).” 46 Segundo ele,

Quincy empregava o vocábulo estilo para designar “/.../ as qualidades gerais que influem sobre o gosto de cada século, de cada país, de cada escola, de cada gênero”.47 Assim, um

determinado estilo apresentaria um “/.../ sentido coletivo, designando repertórios morfológicos, famílias de obras de arte, ou edificações semelhantes”,48 enquanto que a

palavra “maniera” estaria relacionada ao talento pessoal do artista.

Quando tratamos da produção arquitetônica residencial dos anos 20 e 30, percebemos que a partir do estilo Neocolonial luso-brasileiro o arquiteto Victor Dubugras criou à sua “maniera” uma linguagem arquitetônica particularizada, que, por sua vez, serviu de fonte de inspiração para a classe média recriar também à sua “maniera” uma arquitetura singular, mais simplificada e espontânea, o “Maneirismo Paulistano”.

Pela nossa análise, com base na pesquisa arquitetônica empreendida nos projetos sorteados do Arquivo Geral da Prefeitura Municipal de São Paulo, constatamos que o “Maneirismo Paulistano” equivaleu integralmente ao que o professor Carlos A. C. Lemos chamou de Neocolonial Simplificado no seu livro Alvenaria Burguesa.

Os estilemas do Neocolonial reinventado por Victor Dubugras49 podem ser

destacados como repertório morfológico básico presente no “Maneirismo Paulistano”. Este arquiteto soube, com maestria e um senso incomum de racionalidade, distinguir a sua obra da dos seus colegas. Com muita imaginação, Victor Dubugras se apropriou de elementos do vocabulário tradicional luso-brasileiro para inventar soluções arquitetônicas originais; tanto no nível formal, criando volumes inéditos, quanto no estilístico, estabelecendo um repertório distintivo para as suas casas.

46 In : PEIXOTO, Gustavo Rocha. Reflexos das Luzes na Terra do Sol, p. 20. 47 Idem, p. 20 e 21.

48 Idem, ibidem.

49 “ E houve quem inventasse muito, quase tudo. Victor Dubugras foi um deles. /.../ mas a verdade é que o Neocolonial por ele

praticado era quase todo inventado ou reinterpretado. Criou uma série de pormenores que passaram a ser copiados pelos outros como se fossem verdades de antigamente.” LEMOS, Carlos A. C. “Ecletismo em São Paulo” In: FABRIS, Annateresa

“Victor Dubugras, com o seu talento fulgurante, aproveitou a deixa, abandonou de vez o Art nouveau e mergulhou na invenção pretextada pelo tradicionalismo. /.../ Dubugras fez escola emprestando aos outros os elementos semânticos de seu discurso, favorecendo a popularização de seu tradicionalismo – que, por sinal, foi praticado sem que se soubesse de alguma ligação com o passado.” (LEMOS, 1987, p. 95)

Nas obras neocoloniais de Dubugras eram perceptíveis os elementos inventados pelo arquiteto francês misturados a outros advindos do repertório tradicional luso-brasileiro, utilizado por Ricardo Severo (após a divulgação das pesquisas de Wasth Rodrigues e Felisberto Ranzini), além de alguns estilemas dos palacetes de Ramos de Azevedo, inspirados na arquitetura residencial de César Daly. Este amálgama de influências variadas conformaria indiscutivelmente a arquitetura de Victor Dubugras, e, a partir dela, o “Maneirismo Paulistano”.

Nos anos 20 as residências de Victor Dubugras seduziram a classe média paulistana sequiosa de novidades. Assim, muitas das invencionices criadas por ele foram sendo paulatinamente incorporadas em inúmeras casas da época que vulgarizaram os volumes em balanço, os guarda-corpos de meias-luas superpostas, o revestimento de pedras irregulares tipo “canjiquinha”, o uso de pedras soltas na alvenaria aparente etc.

FIGURAS 138, 139 e 140 : A antiga residência David Ribeiro localizada na alameda Joaquim Eugênio

de Lima ilustra os principais estilemas empregados por Victor Dubugras nas suas casas. (Victor

FIGURAS 141 e 142 : Notar a semelhança volumétrica e de composição arquitetônica entre o desenho de

fachada elaborado por Victor Dubugras (s/d) e a residência à rua Estados Unidos esquina da avenida Brigadeiro Luiz Antonio. É possível observar o jogo movimentado de volumes, a presença de alpendres, da faixa branca de massa logo abaixo do pequeno beiral circundando todas as fachadas, das janelas com jardineiras no pavimento superior, das paredes de alvenaria de tijolos aparentes etc. No desenho de Dubugras percebe-se também a existência de pedras nos embasamentos e soltas aleatoriamente nos panos de alvenaria aparente, estilema identificado em inúmeras casas do “Maneirismo Paulistano”, como se verifica nas figuras 143, 144 e 145.

FIGURAS 144 e 145 : Exemplo de pedras soltas

na fachada de tijolos aparentes de casa à rua Desembargador do Vale. Na residência de paredes revestidas da rua Sampaio Viana, nota- se uma interpretação livre da aplicação de pedras na fachada disseminada por Dubugras nas suas obras.

FIGURA 143 : Cunhais e embasamento de pedras na

fachada de alvenaria aparente de casa à rua Tupi, artifício de composição arquitetônica muito utilizado nas residências de Victor Dubugras.

FIGURA 147 : Fachada lateral de residência à rua Bela Cintra

apresentando série de três janelas seqüenciais marcando a caixa da escada como nas casas de Dubugras .(projeto 144 / processo nº 28.938/28)

FIGURA 146 : Detalhe de série de janelas

seqüenciais da antiga residência David Ribeiro localizada na alameda Joaquim Eugênio de Lima. (Victor Dubugras / São Paulo, 1920)

FIGURAS 148, 149 e 150 : Os elementos vazados em forma de meias-luas superpostas dos guarda-

corpos dos balcões dos terraços superiores comparecem tanto na residência Carlos Whately, projetada por Victor Dubugras (São Paulo, s/d), quanto nas casas da avenida Brasil(projeto 55 / processo nº 54.356/24) e da alameda Barros, representantes do “Maneirismo Paulistano”.

As similitudes entre o “Maneirismo Paulistano” e o Neocolonial de Dubugras podem ser percebidas pela presença constante de pequenos beirais, às vezes decorados com falsos “cachorros”, pelos telhados movimentados de várias águas e pela ocorrência eventual de painéis de azulejos nas casas de classe média paulistanas dos anos 20 e 30. Os resquícios da arquitetura residencial de Ramos de Azevedo também são evidenciados no “Maneirismo Paulistano”, particularmente, nas paredes de tijolos à vista e nos requadros de massa branca das envasaduras (e, eventualmente, nos cunhais).

FIGURA 151 : Detalhe de beiral decorado com falsos

“cachorros” de casa à rua Traipu.

FIGURA 152 : Detalhe de requadros de massa branca

Assim, os estilemas caracterizadores do “Maneirismo Paulistano” podem ser sintetizados nos arcabouços cúbicos com panos de tijolos à vista (às vezes, parciais); nos beirais de estuque com falsos “cachorros” imitando beiradas neocoloniais; no emprego de alpendre provido de arcos de pleno cinto; no uso de portas e janelas de vergas retas; às vezes, nos cunhais brancos de massa e na utilização de decoração em relevo pré-moldada de gesso ou cimento nos paramentos e medalhões; no uso de guarda-corpos com elementos vazados em forma de meias-luas ou escamas de peixe; no uso exclusivo de telhas planas, ditas francesas ou de Marselha; no emprego usual de faixas decorativas circundando a construção na altura das vergas das janelas superiores; no uso freqüente de jardineiras guarnecendo os peitoris das janelas; e, na colocação de vitrais decorativos nas caixas de escada.

FIGURA 153 : Residência à rua Piauí apresentando os principais estilemas do “Maneirismo

Do repertório formal e estilístico básico do “Maneirismo Paulistano”, acima descrito, pode-se verificar que derivaram algumas soluções variantes mais simplificadas ou estilizadas como:

1. Casas totalmente revestidas com os estilemas anteriores.

2. Casas revestidas, ou não, apresentando o avanço de um cômodo no pavimento superior, coroado por um telhadinho de duas águas, ostentando dois triângulos de arremate dos beirais das paredes laterais.

FIGURA 154 : Casas geminadas à

rua Frei Caneca. FIGURA 155 : Residência à rua Gabriel dos Santos.

3. casas com oitão decorado com elementos verticais ou horizontais de massa em relevo.

4. casas com ornamentos produzidos industrialmente em massa aplicados em pontos estratégicos da fachada.

FIGURA 157 : Casa à rua Tomé de Souza. FIGURA 158 : Casa à rua Itararé esquina da rua

Herculano de Freitas.

FIGURA 159 : Casas geminadas à rua José Antonio Coelho.

FIGURAS 160 e 161 : Exemplos de decoração parietal e de ornamentos de massa.

Notar o guarda-corpo do balcão com figuras de anjos da residência da rua dos Ingleses e o painel em alto relevo embaixo da jardineira da casa da rua Bandeirantes.

5. casas do “Maneirismo Paulistano” com volumes salientes na fachada.

Em suma, o “Maneirismo Paulistano” foi essencialmente uma recriação arquitetônica coletiva, geradora da expressão própria de uma camada social num determinado momento histórico. Os exemplares remanescentes do “Maneirismo Paulistano” são testemunhos de

“/... / uma criação arquitetônica popular autóctone, /.../ porque simplesmente nasceram sem autoria definida – nunca foram obra de autor e, realmente, nada de especial neles nos chama a atenção. /.../ No entanto, neles sempre houve uma intenção plástica, e sua produção estaria, com toda a justiça, inserida dentro daquilo que chamamos de arquitetura. /.../ Tais exemplares são fundamentalmente documentos representativos de esforços populares tendentes a aliar dificuldades materiais a uma certa dignidade ou compostura muito ciente da imprescindibilidade da intenção artística.” (LEMOS, 1985, p. 169 e 180)

FIGURA 162 : Casa à rua Colômbia.

FIGURAS 163 e 164: Dois conjuntos de casas geminadas à rua Dona Antonia de Queiroz. (projeto 3 / processo nº 10.665/23)