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A QUESTÃO DA CÓPIA, DA IMITAÇÃO, DAS RECRIAÇÕES, DOS SINCRETISMOS

Grupo I / zona Oeste

NORMANDO/NORTE EUROPEU NEOCOLONIAL SIMPLIFICADO

III.4. As recriações e os sincretismos arquitetônicos : o surgimento de uma linguagem estilística paulistana

III.4.1. A QUESTÃO DA CÓPIA, DA IMITAÇÃO, DAS RECRIAÇÕES, DOS SINCRETISMOS

Nesta seção final da tese discutimos as vinculações estéticas que propiciaram a ocorrência de um estreito relacionamento entre a arquitetura erudita e a de cunho popular no período entre as duas Guerras Mundiais na cidade de São Paulo. Amparados por consulta em bibliografia específica, pela nossa extensa pesquisa arquitetônica em fontes primárias (projetos de construção de residências paulistanas sob guarda do Arquivo Geral

da PMSP) e por uma ampla documentação fotográfica de exemplares remanescentes, procuramos demonstrar a mentalidade reinante na época e os fatores influentes no gosto e nas escolhas estilísticas da população paulistana.

Assim, foi possível perceber a grande ascendência da elite influenciando a preferência da classe média, portadora de um sentimento de ascensão social, que a induzia naturalmente à cópia ou à imitação.42 Se por razões financeiras esta classe não podia

construir da mesma forma, pelo menos procurava exibir algum elemento de referência da arquitetura erudita nas fachadas de suas moradias, que simbolizasse o “status” almejado e personalizasse a edificação.A feição da casa se transformava num signo do posicionamento do seu proprietário dentro do corpo social, que seria capaz de sugerir para si e para os outros uma noção de individualidade. A cópia ou a imitação, em suma, eram motivadas por um desejo consciente de fazer de modo apenas parecido.

Como não podiam acompanhar a mesma composição de fachada e volumetria dos palacetes, as casas populares se adequavam como podiam às dimensões do lote e ao bolso do proprietário. Sempre foi assim até o começo da década de 20, quando passamos a observar lentas porém profundas transformações na sociedade local, agora mais receptiva às novidades que vinham da Europa, e principalmente, dos Estados Unidos. Novas idéias, novos confortos, novos gostos. Enfim, era o momento de experimentar as novidades, de início, encaradas com um certo receio, mas depois gradualmente aceitas pelos paulistanos, sempre desconfiados, apesar do seu aparente cosmopolitismo.

O período entre as Grandes Guerras foi o tempo de libertação dos tabus, dos vínculos com o passado recente, dos compromissos com as estéticas passadistas do Ecletismo trazido pelo imigrante, como já foi dito. As notícias que chegavam através dos meios de comunicação, os modismos trazidos pelo cinema de Hollywood, o início da internacionalização. O desejo de estar em sintonia com o mundo, participando ativamente de todas as manifestações artísticas de vanguarda predominava na elite, que em última instância era a formadora de opinião. Desta forma, restava à classe média assistir às modificações rápidas e significativas que estavam ocorrendo ao seu redor e assumir os modelos que se lhe apresentavam.

42 “/.../ de um modo geral, a gente pode dizer que a média burguesia, em suas construções, como em outras atividades,

sempre produziu com evidente intenção imitativa equacionada em permanente desejo de ascensão social. Só que as limitadas condições naturalmente também sempre situaram as suas construções bastante aquém dos modelos ricos e eruditos. Aquém no tamanho. Aquém no gosto, como dizem os críticos. Aquém no conforto. Imitações reduzidas, mas que desejam manter as aparências. Diríamos uma arquitetura irrisória, que arremeda a outra, mas que nessa emulação vai propiciando aos poucos o nascimento de uma linguagem própria, que representa a média das expectativas estéticas do segmento mediano da sociedade. Define-se uma expressão, um gosto, ou uma falta de gosto, como queiram. Quase sempre uma arquitetura insossa, bem comportada, que resignadamente diz-se inspirada na arquitetura dos ricos. Enfim, essa arquitetura anônima de nossas ruas.” In: LEMOS, Carlos A. C . Alvenaria Burguesa, p.12.

Neste momento de emulação, a arquitetura, e em especial, a residencial de classe média, como uma manifestação de caráter cultural,43 refletiu com clareza todas as

alterações pelas quais estava passando a sociedade paulistana naquela época. Todas as dúvidas e inseguranças reinantes aparecem refletidas nas novas opções estilísticas derivadas de recriações e sincretismos arquitetônicos surgidos nos anos 20 e 30. A classe média se sentiu capacitada, também, de escolher e de criar uma arquitetura que revelasse a predominância de seu gosto, que comparecia em número expressivo de exemplares espalhados por inúmeros bairros da cidade. Ao mesmo tempo, este gosto era bastante peculiar, pois viria a ser expressão arquitetônica justa de um estrato da sociedade que, agora, podia se manifestar e recriar uma linguagem estilística própria.

Antes de analisar essa questão do surgimento de nova corrente estilística no período entre as Guerras na cidade de São Paulo, é essencial definir claramente recriação, distinguindo-a de sincretismo arquitetônico.

As recriações seriam basicamente todas as manifestações arquitetônicas em que se percebe uma intenção plástica onde não está explicitado o desejo de se realizar uma simples cópia. O que interessa no caso não é ser exatamente igual, mas ser diferente, inventando uma expressão singular a partir da interpretação de elementos conhecidos originados de um único vocabulário estilístico erudito; enfim, a recriação arquitetônica configuraria uma releitura personalista de um estilo.

Num lato sensu sincretismo seria a “fusão de elementos culturais diferentes, ou até antagônicos, em um só elemento, continuando perceptíveis alguns sinais originários.” 44

Consideraremos portanto neste trabalho como uma arquitetura sincrética aquela resultante de uma colagem de elementos retirados dos repertórios de variadas fontes estilísticas, ainda passíveis de ser identificáveis, ou seja, uma arquitetura derivada da incorporação de estilemas distintos de estilos diversos, não estando afastado o uso de invenções personalistas, sem quaisquer referências estilísticas eruditas.

43 “ /.../ para o estudo da psicologia e da sensibilidade do povo, a arquitetura popular tem interesse maior que a erudita, em

contraposição, só esta, através de um vocabulário incomparavelmente mais rico, traduz uma elaborada e penetrante compreensão de valores, ignorados ou despercebidos pelos que manipulam a arquitetura popular, que só os atingem, quando os atingem, por via da intuição ou do sentimento. Valores de escala, de proporção, de equilíbrio, de unidade, de modenatura, de comodulação, de estilo, valores exprimindo, no conjunto, a cultura arquitetônica. /.../ A nosso ver ainda que para determinação das constantes da sensibilidade deva ser considerada a arquitetura em todos os seus gêneros e principalmente a Militar, a Religiosa e a Civil -, é indubitavelmente num dos desdobramentos desta última : a Arquitetura Doméstica /.../ que essas constantes melhor se expressam, e o fazem através de uma grande variedade de tipos, dos mais modestos, que se identificam com a popular, aos mais categorizados, que atingem à erudita. Nos tipos mais singelos é usado um vocabulário frusto, num balbuciar de idéias, que, por mais eloqüente que seja, antes se sente, do que se compreende, sem que se possa traduzir num sentido plástico artisticamente definido em termos formais. Ao passo que nos tipos mais qualificados, onde se vislumbra a nota erudita, o fraseado toma sentido mais inteligível, mais claro, porque existe uma gramática como termo de comparação.” SANTOS, Paulo F. “Constantes de Sensibilidade na Arquitetura do Brasil.” In: Arquitetura Revista FAU / UFRJ

v.6,1988, p. 56.