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O medo cósmico no limiar extremo do desconhecido

Diante das emoções experimentadas pela humanidade, o medo apresenta-se como categoria estética literária. Visto que a amplitude do medo permite divagar por diversos aspectos, aqui, o trabalho se importa em relacioná-lo com as narrativas weird que fazem parte do corpus.

Lidar com a ficção weird, na qual o desconhecido e as ações inexplicáveis remetem às emoções de terror e medo nos personagens, como também atingem o leitor, faz com que seja questionado o que vem com esse sentimento primitivo.

No sentido estrito e estreito do termo, o medo (individual) é uma emoção-choque, frequentemente precedida de surpresa, provocada pela tomada de consciência de um perigo presente e urgente que ameaça, cremos nós, nossa conservação. Colocado em estado de alerta, o hipotálamo reage por uma mobilização global do organismo, que desencadeia diversos tipos de comportamentos somáticos e provoca sobretudo modificações endócrinas. Como toda emoção, o medo pode provocar efeitos contrastados segundo os indivíduos e as circunstâncias, ou até reações alternadas em uma mesma pessoa: a aceleração dos movimentos do coração ou sua diminuição; uma respiração demasiadamente rápida ou lenta; uma contração ou uma dilatação dos vasos sanguíneos; uma hiper ou uma hiposecreção das glândulas; constipação ou

diarreia, poliúra ou anúria, um comportamento de imo, um comportamento de imobilização ou uma exteriorização resultará numa tempestade de movimentos desatinados e inadaptados, característicos do pânico. Ao mesmo tempo manifestação externa e experiência interior, a emoção de medo libera, portanto, uma energia desusada e a difunde por todo o organismo. Essa descarga é em si uma reação utilitária de legítima defesa, mas que o indivíduo, sobretudo sob o efeito das agressões repetidas de nossa época, nem sempre emprega com discernimento (DELUMEAU, 2001, p. 23).

Claro está que a definição e a conceituação de medo perpassam várias áreas do conhecimento: a relação com a psicologia, a preocupação com o indivíduo, a filosofia, a história. Aqui é importante a compreensão do medo cósmico de autoria de Lovecraft.

O medo está ligado à forma de se proteger contra o perigo e é inerente à natureza humana. O instinto de sobrevivência está relacionado essa sensação, que se liga ainda ao mistério da morte. França apresenta que:

As emoções relativas à autopreservação são dolorosas quando estamos expostos às suas causas, porém, quando experimentamos sensações de perigo sem que estejamos realmente sujeitos aos riscos, isto é, quando a fonte do medo não representa um risco real a quem o experimenta, entramos no campo das emoções estéticas. O exercício de tais sensações parece ser capaz de produzir efeitos estéticos diversos, sobre os quais os estudos literários vêm refletindo há séculos – a catarse, o sublime, o grotesco, entre outros (FRANÇA, 2017a, p. 44).

Dessa forma, ao escolher o medo como categoria de observação nas narrativas, tem-se em mente que o mundo contemporâneo é perigoso. Por ser uma emoção presente na imaginação humana, a investigação dos modos de representação literária do medo e seu processo de criação são dignos de investigação, mesmo que essa representação venha de origem fantástica. Esse tipo de literatura busca retratar as formas literárias dos medos reais.

Por direcionar a temática do medo cósmico em suas narrativas fantásticas de horror, Lovecraft (2007) destaca o medo do desconhecido como a emoção mais forte. “O apelo do macabro espectral é geralmente restrito porque exige do leitor um certo grau de imaginação e uma capacidade de distanciamento da vida cotidiana” (LOVECRAFT, 2007, p. 13).

O escritor brasileiro Oscar Nestarez discorre sobre a literatura de medo, nos contos de H. P. Lovecraft, em seu livro: Poe e Lovecraft: um ensaio sobre o medo na literatura. Ele ressalta a contribuição de Lovecraft para o engrandecimento da literatura fantástica, destacando que ele não saiu dos domínios do horror. Sobre Lovecraft, o autor comenta que “toda sua obra versa sobre o medo primordial, a atmosfera da loucura, o pânico absoluto e sem concessões, e seus

recursos para atingi-lo eram invariavelmente semelhantes, de modo que seus contos são sempre inconfundíveis” (NESTAREZ, 2013, p. 3).

Na proposta de definição do medo cósmico por Lovecraft (2007, p.13), os leitores podem se libertar das emoções da rotina diária. Os primeiros instintos humanos foram responsáveis pelos acontecimentos e pelas histórias sobre emoções comuns, em resposta ao ambiente. Portanto, ao serem discutidos os temas presentes na literatura fantástica, independentemente da temática de horror, as emoções humanas são postas à prova, quando personagens centrais dessas narrativas apresentam características que podem nos levar ao horror, terror ou medo.

Para França (2017b. 239), as posições filosóficas de Lovecraft são responsáveis por sua noção de medo cósmico e dois fatores reconhecem a autenticidade da literatura de horror, o caráter primitivo do medo e sua intensidade, pois até os mais racionais possuiriam a predisposição para esse tipo de narrativa.

Lovecraft sustenta que essa herança psicológica ancestral, que associa incerteza a perigo, combinada com a maior intensidade das experiências de dor em comparação com as de prazer, explicariam a existência e a efetividade da literatura de medo cósmico. A principal evidência de sua potência cultural seria o fato de que até mesmo autores que não se dedicavam exclusivamente ao horror produziram obras afinadas com o gênero – bons exemplos seriam “O papel de parede amarelo” (1892), de Charlotte Perkins Gilman; O rei de amarelo (1895), de Robert W. Chambers; A outra

volta do parafuso (1898), de Henry James; “A pata do macaco” (1902), de W.W.

Jacobs; e O exorcista (1971), de William Peter Blatty (FRANÇA, 2017b, p. 242).

Portanto, para Lovecraft, a ficção com base no desconhecido é capaz de despertar no leitor o medo cósmico, e por isso supera a literatura do medo físico. O medo cósmico, como objeto desse estudo, reúne a representação do medo causado pela existência do sobrenatural, característico da narrativa de horror, via elementos fantásticos.

Contudo, tendo o medo cósmico como estética principal nos contos que fazem parte do

corpus, destaca-se ainda a importância do medo artístico por representar o leitor na projeção da

imagem no mecanismo ficcional existente com o personagem.

O processo que conduz a experimentação do medo mais primitivo, universal e intenso – o medo da morte – “poderia ser encarado como similar ao que nos leva, no ambiente ficcional, a sentirmos medo sem efetivamente corrermos risco. A esse tipo de experiência chamamos de medo artístico” (FRANÇA, 2011, p. 3).

Na ficção weird de Lovecraft, uma das causas que leva ao medo cósmico é a representação das divindades alienígenas e a resistência a Modernidade. Silva (2017a) expõe

essa resistência do autor em construir um sistema literário que deu forma aos pesadelos oriundos de sua infância e adolescência. A postura dos personagens e suas atitudes perante a chegada da Modernidade “aponta para a presença de um homus lovecraftus, que ao mesmo tempo em que anuncia a chegada da Modernidade e tenta compreender seu alcance, se revela incapaz de suportar o impacto da mudança sobre sua identidade” (SILVA, 2017a, p. 47).

No intuito de melhor compreender a temática do medo cósmico na obra de Lovecraft, no conto The Call of Cthulhu, o narrador relata de forma ensaística e em tom de profecia, a incapacidade humana em abarcar as ciências devido à permanente fragmentação do conhecimento.

Em meio ao ciclo cósmico repetitivo, o qual a humanidade está fadada a cumprir eternamente, o narrador prevê “terríveis panoramas da realidade e do pavoroso lugar que nela ocupamos, de modo que enlouqueceremos com a revelação ou então fugiremos dessa luz fatal em direção à paz e ao sossego de uma nova idade das trevas29” (LOVECRAFT, 2015, p. 64). O narrador lovecraftiano não encontra compensação para o perigo, que descompensa o seu ser, por ver a criatura ao final da narrativa. Então, em contato com forças desconhecidas resta ao narrador a morte, ou a insanidade.

Inclui-se, então, The Colour out of Space como uma narrativa weird com características em que as ações das pessoas estão conectadas com fenômenos ou condições estranhas. Retoma- se que para Lovecraft, a atmosfera é o grande trunfo da ficção weird, “[...] a ênfase primordial deve ser dada à sugestão sutil – sugestões e toques imperceptíveis de detalhes associativos seletivos, que expressam as nuances dos humores e constroem uma vaga ilusão da estranha realidade do irreal30” (LOVECRAFT, 1937, p. 10, tradução nossa) e assim possa despertar o medo cósmico.

“O ‘pavor de forças externas desconhecidas’ é o que sente o homus lovecraftus diante da descoberta dos ‘demônios dos espaços insondáveis’ contra os quais as ‘leis fixas da Natureza’ desmancham no ar da Modernidade” (SILVA, 2017a, p. 54). Para despertar o medo cósmico no universo fantástico weird, os elementos presentes na narrativa lovecraftiana, em contos como Cthulhu e Dagon, trazem o oceano com a mesma carga de elemento weird que

29 […] terrifying vistas of reality, and of our frightful position therein, that we shall either go mad from the

revelation or flee from the deadly light into the peace and safety of a new dark age. (LOVECRAFT, 2011, p. 355).

30 […] prime emphasis should be given to subtle suggestion—imperceptible hints and touches of selective

associative detail which express shadings of moods and build up a vague illusion of the strange reality of the unreal (LOVECRAFT, 1937, p. 10).

Colour, visto que as dimensões são fontes infinitas para o sentimento que pretende ser

4 AS MULTIFACETAS DO MEDO CÓSMICO EM QUATRO CONTOS