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3 MODELO ANALÍTICO: DESISÃO EM POLÍTICA EXTERNA, HEGEMONIA

5.4 O Mercosul e a Política Externa Brasileira Contemporânea

A chamada tese do destino manifesto sempre esteve diretamente associada à história da política exterior do Brasil (CERVO, 2008; CERVO; BUENO, 2010). Desde o período da independência, o país tem um perfil marcadamente distinto dos outros da região. Lusófono, dotado de dimensões territoriais continentais e já nascido com ambições de protagonismo, o Brasil não foi efetivamente enquadrado pelos EUA na política do Big Stick da Doutrina Monroe e nem integrou o projeto pan-americanista de Simon Bolívar. Antes, o que se processou foi a adoção de um perfil de atividade internacional marcado pelo pragmatismo e eficácia na condução das relações exteriores, que permitiu ao país construir relações especiais com os países dominantes ao passo em que erigia um subsistema de poder regional no âmbito do Cone Sul.

Dois elementos profundamente arraigados na concepção das elites políticas brasileiras se notabilizam ao longo da história da condução das relações exteriores: a busca por autonomia (principalmente frente aos poderes centrais) e o multilateralismo como principal instrumento de política externa para alcançar esse objetivo. Esses fatores se refletiram na diversificação de parceiros políticos e comerciais, que variam em função da conjuntura política internacional. Nos seus aspectos mais fundamentais, o desenvolvimento dessa linha de atuação se tornou possível através do papel historicamente desempenhado pelo Itamaraty. O Ministério das Relações Exteriores (MRE) tem atuado com um nível de autonomia relativa da política partidária sem paralelo com nenhum outro Estado periférico. Ao longo de sucessivos governos autoritários e democráticos, o MRE sempre representou um fator que garantiu um elevado grau de continuidade na condução da política externa.

Devido a essa tendência à coesão nos padrões de atuação internacional até os anos 1980, a política externa brasileira se caracterizava, essencialmente, pelas políticas multilateral- universalistas, múltiplos contatos comerciais internacionais e uma alta participação em organizações internacionais, como a Assembléia Geral da ONU e as rodadas de negociação do antigo GATT. Nestes fóruns, o Brasil adotou uma diplomacia proativa, comprometida com as demandas dos países em desenvolvimento, especialmente em questões comerciais com os países desenvolvidos.

Esta grande presença internacional contrastava com um baixo perfil de atividade nos espaços de cooperação internacional da América Latina. No entanto, esta situação se alterou no final dos anos 1980 e início dos anos 1990. Os processos de redemocratização, a subsequente

reaproximação com a vizinha Argentina, a emergência das políticas neoliberais nos países da região e a segunda onda de regionalismo criaram condições para os tomadores de decisão brasileiros estabelecerem uma nova agenda de política externa: a integração regional sul- americana.

Esse projeto foi implementado em bases pragmáticas, através de mecanismos intergovernamentais de integração econômica comercial de baixa institucionalidade (BARBOSA, 1991, 2010; ALMEIDA, 2012). A predileção por esse modelo está relacionada com as preferências históricas da política externa brasileira e com as novas estratégias de inserção internacional adotadas em período mais recente (VIGEVANI; CEPALLUNI, 2011).

O principal objetivo dos formuladores de política externa brasileiros é o de preservar a posição de liderança do país na região enquanto projetam ambições brasileiras na política mundial. O mecanismo empregado para assegurar o poder regional é a hegemonia cooperativa. Os instrumentos para alcançar uma posição mais relevante na ordem mundial são o tradicional multilateralismo e as estratégias de soft balancing com outros países em desenvolvimento.

Em termos de hegemonia cooperativa, os mecanismos através dos quais o Brasil compartilhou poder com seus vizinhos se pautam pelas vias institucionais. No quadro regional se notabiliza o Mercosul. O desenho institucional desse processo de integração regional, definido nas suas linhas maiores pelo Protocolo de Ouro Preto, de 1994, faz com que todas as negociações internacionais precisem ser realizadas em conjunto e por consenso pelos Estados- Parte. Dessa maneira, torna-se necesário um grande movimento de barganha, negociação e de persuasão dentro do próprio bloco, com vistas ao estabelecimento de posições comuns na arena internacional (ALMEIDA, 2012). O modelo consensualista do processo de integração representa, em grande medida, uma restrição à autonomia decisória da política externa brasileira e corresponde a um processo de compartilhamento de poder com os demais países integrantes do Mercosul. Contudo, as grandes assimetrias entre o Brasil e os demais membros do bloco conferem grande vantagem a essa potência regional, sobretudo em questões ligadas ao comércio exterior.

O fato da ação externa do Brasil estar parcialmente atrelada aos interesses e expectativas dos países-membros do bloco foi alvo de críticas na condução da política externa brasileira no plano político doméstico, especialmente durante o segundo governo Lula. Importantes formuladores de política e tomadores de decisão (diplomatas, ex-diplomatas, políticos oposicionistas e membros do empresariado)138 apontavam para as deficiências institucionais do

138 Tome-se, por exemplo, o discurso proferido a Federação das Idústrias de Minas Gerais (FIEMG) então candidato a presidência da república José Serra criticou duramente a ideologização do Mercosul e o atrelamento

Mercosul, preconizando que a desmobilização do bloco, como união aduaneira imperfeita, e a sua retração para o nível de uma área de livre comércio seria mais benéfica para os interesses de política externa do Brasil. Entretanto, no período analisado, os tomadores de decisão brasileiros entenderam que o Mercosul representava um projeto de longo prazo com o qual o país estava comprometido, motivo pelo qual tem cabido ao país relaçar o bloco depois das crises, sempre o tendo como uma das prioridades da política externa brasileira (MRE, 2014).

O estabelecimento do Mercosul e, mais recentemente, da UNASUL como grandes veículos da hegemonia cooperativa brasileira na região foram engendrados através de um desenvolvimento histórico específico, marcado por momentos críticos que permitiram a superação parcial ou integral de alternativas integracionistas que ameaçavam os interesses brasileiros na América do Sul. O rastreamento desse processo (process-tracing) é fornecido a seguir, demonstrando como a diplomacia brasileira lidou com as contradições e complementaridades dos projetos de integração que se desenvolveram paralelamente ao Mercosul.