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A década de 1970 representa a passagem da ordem regulada de Bretton Woods para uma ordem mais liberal baseada no sistema dólar-flexível com mobilidade de capital. Essa maior desregulamentação e liberalização financeira foram incitadas pela estratégia dos Estados Unidos de reforçar a hegemonia mundial – contestada no final dos anos 1960 e início dos anos 1970 - pela afirmação de seu poderio financeiro. O movimento de liberalização e desregulamentação dos mercados financeiros nos países centrais aumenta a denominação em dólar das transações internacionais, reafirmando o dólar como a principal moeda do sistema financeiro internacional. Uma ordem financeira livre se estrutura a partir dos anos 1980 e se consolida nos anos 1990. Como sintetiza Helleiner (1994, p. 146)33,

no início dos anos 1990, a ordem financeira restritiva de Bretton Woods já tinha sido totalmente derrubada e um padrão quase que totalmente liberal das relações financeiras tinha emergido entre os Estados industrializados, dando aos operadores de mercado um grau de liberdade sem paralelo desde 1920.

A reemergência das finanças globais, que culmina na globalização financeira a partir dos anos 1990, se inicia, segundo Helleiner (1994), com o funcionamento do Euromercado nos anos 1960 à margem da regulação estatal e veio ao encontro dos interesses estatais norte-americanos e britânicos em consonância com interesses de grupos econômicos privados. Para os Estados Unidos, o Euromercado representava a oportunidade de evitar políticas de ajustes para lidar com seus crescentes desequilíbrios externos pelo financiamento externo desses déficits via posse de dólar por investidores estrangeiros – públicos ou privado – ao mesmo tempo em que preservava autonomia de política doméstica, tais como gastos militares. Para o Reino Unido, o Euromercado representava a oportunidade de o país continuar a exercer um papel proeminente na ordem financeira pelo fortalecimento de Londres como mercado offshore e centro

financeiro sem abrir mão do Estado de Bem-Estar no plano doméstico. Para os banqueiros dos dois países, o Euromercado representava uma solução para o problema de regulação e controle de capitais nas economias domésticas e a oportunidade de reassumir o papel protagonista que o eixo financeiro Nova Iorque – Londres tivera nos anos 1920. O Euromercado, com sua ausência de regulação e liquidez, e forte presença de bancos e corporações multinacionais norte-americanas, se tornou um mercado de capitais internacional completo, atrativo para investimentos e incentivador da demanda estrangeira por dólar34. Ao final da década de 1970, os Estados Unidos tiveram que optar entre a autonomia de política doméstica e o apoio à liberalização financeira diante de um ataque ao dólar, durante o governo Carter. O plano de estabilização colocado em prática em 1979 por Paul Volker no comando do Federal Reserve resultou em um maior comprometimento com a liberalização financeira. Como consequência, a confiança no dólar e nos mercados financeiros norte-americanos foi restabelecida. De fato, a abertura do sistema financeiro acabou preservando e reforçando o papel do dólar como divisa internacional, uma vez que o mercado financeiro norte-americano se tornou alvo de expressivos investimentos públicos e privados.

Inovações financeiras a partir dos anos 1980, em especial os derivativos e a securitização, reforçaram o caráter especulativo das finanças na atual fase do capitalismo. O capital internacional, que outrora assegurava o financiamento do comércio mundial e de desequilíbrios nos Balanços de Pagamentos, agora apresenta apenas uma relação indireta com os investimentos produtivos na economia mundial e se reproduz rapidamente na esfera financeira. Ademais, o sistema financeiro internacional passou a ser regido por numa nova estrutura institucional, pautada na autorregulação do mercado. Assim, a chamada “Nova Arquitetura Financeira Internacional”, que se estruturou a partir dos anos 1980, tem como alicerce a livre mobilidade dos fluxos de capitais e a integração de mercados financeiros capitaneados por um conjunto de instituições e práticas de regulação falhas e debilitadas que não exercem controle efetivo sobre esses fluxos (COTRY, 2009, p.564).

34 As taxas de juros no euromercado, por exemplo, não sofriam restrição de teto máximo, assim os investidores poderiam receber maiores retornos de suas aplicações nesse mercado do que nos Estados Unidos ou na Europa; o que incentivava a posse de dólar por investidores estrangeiros.

A governança corporativa – baseada em resultados de curto prazo que privilegiam os interesses de acionistas – e a gestão de risco dos bancos – baseada em notas de agências de rating e modelos internos de precificação de ativos, conforme os acordo de Basiléia – passaram a ser vistas como a melhor forma de regulação e supervisão para se evitar uma crise sistêmica (FARHI et al., 2009). Os bancos perderam para os mercados de capitais o papel de principal financiador da economia, e para preservarem suas atividades e se manterem no mercado, passaram a diversificar suas iniciativas e reorientaram suas atividades para os produtos de derivativos e para os chamados ‘produtos estruturados’ (PLIHON, 1996; FARHI et al., 2009). De fato, os bancos mudaram sua esfera de atuação, passando a ter suas receitas vinculadas, a partir da década de 1980, à troca de propriedade de ativos, taxas, e comissões e não mais à diferença entre os juros de captação e o de repasse. Um movimento chamado de “originar e distribuir” (WADE, 2010).

Ademais, o uso crescente de inovações financeiras pelos bancos para retirar riscos de crédito de seus balanços e torná-los mais líquidos fez o sistema operar com elevada alavancagem, driblando as restrições dos acordos de Basiléia. Essas atividades bancárias foram, na verdade, viabilizadas pela atuação de instituições financeiras não-bancárias – fundos de investimentos, hedge funds, fundos de pensão, seguradoras, dentre outras –, que se tornaram protagonistas na alavancagem e aceleração da globalização financeira ao operar no chamado “global shadow banking system”, ou seja, à sombra da regulação bancária dos acordos de Basiléia (FARHI et al., 2009). Portanto, na Nova Arquitetura Financeira, a estrutura reguladora global é débil e os sistemas domésticos de regulação nas economias centrais, em especial na norte-americana, sobre o mercado de derivativos e sobre a atuação de bancos nos mercados externos são frouxos (WADE, 2010).

Os anos 1980 também foram palco da reestruturação industrial e rearranjo produtivo global, que estabeleceu uma nova divisão internacional do trabalho. O Japão comandou a internacionalização da Ásia, que se especializou em produtos industriais de consumo em massa e de alta tecnologia com a emergência dos Tigres Asiáticos e a

industrialização da Coréia do Sul. A Alemanha liderou a reestruturação industrial na Europa, uma vez que o Reino Unido optou pela desindustrialização e especialização em serviços de alto valor, em especial os financeiros. E os Estados Unidos abriram seus mercados para acomodar o crescimento mundial, em especial da Ásia, e consolidar seu domínio nos mercados financeiros, retomando a competitividade de suas indústrias. Além disso, a década de 1990 testemunhou a emergência de uma onda global de integração aberta comercial e política – União Europeia, NAFTA35, Mercosul, ASEAN36, dentre muitos outros. Assim, e com a consolidação da tecnologia da informação e comunicação, os mercados globais se tornaram mais integrados e a produção passou a ser descentralizada em escala planetária. Dessa forma, a globalização produtiva resultou de um rearranjo na divisão internacional do trabalho com o deslocamento da produção em massa dos países centrais para os países em desenvolvimento no novo paradigma tecnológico. A China, que emergiu como centro exportador de manufaturas baratas e foi ganhando competitividade em produtos de tecnologia avançada, engrenou a globalização estimulando as exportações do leste asiático e as importações norte-americanas. A expansão chinesa passou a ser o motor do crescimento asiático e mundial.

De modo geral, os países em desenvolvimento encontraram uma nova ocupação no mercado mundial e um grupo seleto deles – China, Índia, Indonésia, Coréia do Sul, Malásia, Taiwan, Tailândia, Argentina, Brasil, Chile, México e Turquia, conforme Amsden (2004) – conseguiu se ascender na escada do desenvolvimento. No entanto, conforme será mostrado na segunda parte desta tese, na nova divisão internacional do trabalho as manufaturas intensivas em tecnologias continuam centradas nas economias desenvolvidas, enquanto as economias em desenvolvimento da periferia ainda concentram, majoritariamente, as manufaturas intensivas em trabalho. Ademais, a criação da Organização Mundial do Comércio em 1994, além de impulsionar a globalização produtiva por seu mecanismo de enfforcement das regras liberalizantes no comércio internacional de bens, deu novos contornos ao capitalismo do século XXI ao

35 Acordo de Livre Comércio da América do Norte (North American Free Trade Agreement).

36Associação das Nações do Sudeste Asiático (Association of Southeast Asian Nations), que apesar de estabelecida desde o final da década de 1960, se tornou área de livre comércio em 1992.

regular o comércio em diferentes áreas, tais como as relacionadas aos direitos de propriedade intelectual.

A combinação de todos esses elementos caracteriza o capitalismo no século XXI. Contudo, o cenário descrito não nos permite perceber questões-chave na emergência da atual fase capitalista. Para compreendermos os desdobramentos do capitalismo a partir da década de 1970 precisamos olhar para as três dimensões analíticas destacadas nesta tese: tecnologia, finanças e as relações de poder no sistema internacional.

2.2 Dimensões Analíticas e o Capitalismo no século XXI: o poder na estruturação