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O Patronato Predatório: Os Donos do Poder, de Raymundo Faoro

1. Por que os pobres não têm acesso à habitação?

1.3. Aspectos da Formação da Pobreza no Brasil de 1500 a 1930

1.3.6. O Patronato Predatório: Os Donos do Poder, de Raymundo Faoro

Em 1958, surge o livro que trata da Formação do Patronato Político Brasileiro, e o definiu como sendo um patronato predatório, explorador, não construtor de Estados, nem de democracias. Raymundo Faoro descreve, em um belo livro, como a burocracia associada ao poder, depredou e tomou a si o patrimônio do país, desde os tempos da fundação de Portugal. E, como esta burocracia, esta camada de poder, continuou atuando de forma predatória na época da colonização, no Império e até a metade do século XX com a República na época do “Estado Novo” de Getúlio Vargas.

Começa a sua história na origem de Portugal, no século XIV, com dom João I, o Mestre de Avis, e a formação do Estado Português. Demonstra ali a criação do estamento11 burocrático, que existente até hoje continua dominando a vida política brasileira. Passa então a analisar o Brasil Colônia, apresentando os traços gerais da organização administrativa,

11 Estamento, termo originalmente usado em Portugal, e que significa camada que comanda a Economia, junto ao Rei.

46 social, econômica e financeira. Demonstra claramente que o Brasil foi uma obra de centralização colonial. Colônia regida de fora, administrada em Portugal. E, com o único objetivo de mercantilismo, de exploração dos recursos, de um saque à vasta natureza, com o único objetivo de saciar as necessidades do Estado Português. Não havia nenhuma intenção de criar um Estado, um País. Em todos os capítulos só faz provar que o estamento, o patronato, o patrimonialismo estatal, nascido lá em 1400, segue vigindo, continuando a explorar todos os recursos naturais e a população que aqui vive.

Diz ele que é uma viagem “redonda” do patrimonialismo ao estamento. De D. João I até Getúlio Vargas, “foram seis séculos que resistiram como uma estrutura político social à todas as transformações fundamentais, à travessia do oceano largo”.(FAORO, 2001: 819)

Afirma que:

a comunidade política conduz, comanda, supervisiona os negócios, como negócios privados seus na origem, como negócios públicos depois, em linhas que se demarcam gradualmente. O súdito e a sociedade se compreendem no âmbito de um

aparelhamento a explorar, a manipular, a tosquiar nos casos extremos” e conclui: “ É assim, por que sempre foi.” (FAORO, 2001: 819)

Em nossas leis, aparentemente estão colocadas as transformações fundamentais, os princípios democráticos que deram origem ao estado moderno, ao “estado burguês de direito”, que corresponde, desde Montesquieu, em alguns destes tópicos:

O indivíduo, de súdito, passa a cidadão, com a correspondente mudança de converter- se o estado de senhor a servidor, guarda da autonomia do estado livre.

A liberdade pessoal, que compreende o poder de dispor da propriedade, de comerciar e produzir, de contratar e contestar assume o primeiro papel, reduzido o aparelho estatal a um mecanismo de garantia do indivíduo.

Somente a lei, como expressão da vontade geral, institucionalizada, limitando o Estado a interferências estritamente precisas e mensuráveis na esfera individual, legitima as relações entre os dois setores, controláveis pelas leis e pelos juízes. (FAORO apud MONTESQUIEU, 2001: 820)

Na aparente transição de uma estrutura à outra, na prática estas notas tônicas se desviaram, conclui Faoro. Verificou-se que a realidade histórica brasileira demonstrou a persistência secular da estrutura patrimonial resistindo galhardamente à experiência capitalista. Adotou do capitalismo a técnica, as máquinas, as empresas, mas não aceitou que a

47 alma transmigrasse, continuou em um pré-capitalismo, um capitalismo político. O patrimonialismo se amoldou às mudanças das pressões de fora para dentro do modelo externo, através da centralização do comando econômico em um quadro dirigente. Concentrou no corpo estatal os mecanismos de intermediação, de concessão pública de atividade, de controle de crédito em um espectro que vai da gestão direta à regulamentação material da economia.

Cinqüenta anos depois de escrito (1958) é necessário trazer agora em 2008, por inteiro, o parágrafo da página 827, no capítulo final do livro – “A viagem redonda: do patrimonialismo ao estamento”:

O conteúdo do Estado molda a fisionomia do chefe de governo, gerado e limitado pelo quadro que o cerca. O rei, o imperador, o presidente não desempenham apenas o papel de primeiro magistrado, comandante do estado-maior de domínio. O chefe governa o estamento e a máquina que regula as relações sociais, a ela vinculadas. À medida que o estamento se desaristocratiza e se burocratiza, apura-se o sistema monocrático com o retraimento dos colégios do poder. Como realidade, e, em muitos momentos, mais como símbolo do que como realidade, o chefe provê, tutela os interesses particulares, concede benefícios e incentivos, distribui mercês e cargos, dele se espera que faça justiça sem atenção às normas objetivas e impessoais. No soberano concentram-se todas as esperanças, de pobres e ricos, porque o Estado reflete o pólo condutor da sociedade. O súdito quer a proteção, não participar da vontade coletiva, proteção aos desvalidos e aos produtores de riqueza, na ambigüidade essencial ao tipo de domínio. Não se submete o chefe à aristocracia territorial, ao senhor das terras, à burguesia, governado em nome de uma camada, diretamente sobre a nação. Ele fala ao povo, não aos intermediários por este criado, do palácio à sociedade, em dois planos separados. Ele é o pai do povo, não como mito carismático, nem como herói, nem como governo constitucional e legal, mas o bom príncipe- dom João I, dom Pedro II ou Getúlio Vargas- empreendendo, em certas circunstâncias, uma política social de bem-estar, para assegurar a adesão das massas. Para evitar a participação popular, recorre, não raro, à mobilização das ruas, em manifestações que, atrás de si, só deixam o pó de palavras inconseqüentes. Filho do providencialismo estatal, ele o fortifica, usando dos poderes que a tradição lhe confere. Em casos extremos, será o ditador social, de aparência socialista, de um suposto socialismo que sacia aspirações, desviando-as e acalmando-as, com algum circo e com algum pão. O bom príncipe, o pai do povo guarda, na sua prudência de generalizar a aparência do poder, sem abrir nenhum canal de participação, a conduta do conselho de Álvaro Paez ao Mestre de Avis, no século XIV, na sua finura sarcástica: “Senhor” – recomendava-lhe o astuto conselheiro – “fazei por esta guisa: Daí aquilo que vosso não é, prometei o que não tendes, e perdoai a quem vos não errou, e ser-vos-á de mui grande ajuda para tal negócio em que sois posto”. Na base da pirâmide, no outro extremo dos manipuladores do poder, o povo espera, pede e venera, formulando a sua política, expressão primária de anseios e clamores, a política de salvação. Confundindo as súplicas

48 religiosas com as políticas, o desvalido, o negativamente privilegiado, identificado ao providencialismo do aparelho estatal, com o entusiasmo orgiástico dos supersticiosos, confunde o político com o taumaturgo, que transforme pedra em pães, o pobre no rico. (FAORO, 2001: 827)

Quem não vê neste discurso, o mesmo posicionamento, a mesma maneira de agir de muitos governos, de direita e esquerda? O discurso, em outro signo, está expresso magnificamente, na charge de Santiago, apresentada na revista do CREA-RS, edição de Dezembro de 2008:

Figura 1. Charge de Santiago ilustrando o mesmo velho discurso.

E, podemos concluir mais uma vez: “É assim, porque sempre foi.”

A leitura destes livros possibilitou a compreensão dos aspectos históricos que contribuíram para a formação deste contingente tão grande de pessoas de baixa renda (aqueles que têm renda familiar mensal de até 3 salários mínimos), que hoje somam 33,4 milhões de famílias e que são mais de 100 milhões de pessoas. (cf. PNAD 2006)

Até há bem pouco tempo atrás se dizia que o homem brasileiro, mal nutrido, nômade e caçador, não servia para o trabalho. E que com pouca saúde, descendente dos “doentes e sifilíticos pela exploração sexual do escravo”, pela inércia produtiva natural do mestiço, do

49 pardo, degenerado pelo clima quente e pela miscigenação, levaram à depauperação da energia econômica e da “raça brasileira”. Este equívoco deve continuar a ser combatido. E, no lugar desta malfadada “tese”, é preciso esclarecer os motivos verdadeiros que estão atrás do pouco desenvolvimento deste país.

Precisamos assumir a exploração e a segregação a que o homem brasileiro foi submetido pela condição econômica e política, pelo fato do Brasil ter sido uma economia exportadora e dependente, submetido a um patriarcalismo predatório, e sem a oportunidade de criação de valores internos, tanto de mercado, de técnica, como de talentos. O principal a entender é que pela exploração dos mais pobres, dos alijados da sociedade, nada lhes foi dado. Nem saúde, nem moradia. Uma educação pobre, autoritária, excludente, veio completar o quadro ideológico a que foram submetidos.

Chegamos assim até a atualidade. A questão em que hoje as classes ricas, através da dominação e segregação não permitem o acesso da população de baixa renda ao financiamento, decisão e participação nos projetos, permanece. E esta inibição é de tal ordem que o próprio homem excluído não se apercebe de sua condição de explorado. Contaminados pela ideologia, continuam a entender as necessidades da classe exploradora como sendo suas também. Não conseguem ver, por uma questão ideológica, a sua necessidade mais básica: a habitação. E neste processo imperceptível, falso e danoso, assumem as necessidades das classes mais altas. É de suma importância que, na formação e educação desta população de baixa renda, sejam também conscientizados a reivindicar este direito seu: o da função social da propriedade, direito que lhes é garantido pelo artigo 182 da Constituição de 1988.

Pode-se concluir sobre os aspectos da formação da pobreza no Brasil, que pela exploração dos mais pobres, dos alijados da sociedade, principalmente negros e indígenas, nada lhes foi dado em troca. Uma educação pobre de sentimentos, cheia de autoridade e castigos, lhes retirou, naquela ocasião, até a alma. Foi tanto e tamanho o estrago, que até hoje

50 eles e os seus descendentes não têm a capacidade de reconhecer que a sua casa é de primeira necessidade. Esta prioridade lhes foi tirada nesta exploração, que vem vindo de tempos remotos. E continua até hoje.

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