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O percurso do cuidado (receptor dos cuidados)

11. UM NOVO PROGRAMA PSICO-EDUCACIONAL PARA

11.1. Conceitos Gerais do Programa

11.1.1. O percurso do cuidado (receptor dos cuidados)

No percurso do receptor dos cuidados identificamos etapas que ordenamos por uma possível ordem cronológica do seu aparecimento ao longo da demência, e

consequentemente de acordo com uma progressivamente maior preponderância da deterioração cognitiva, da dissolução do self, e por isso mesmo, a esta ordem

corresponde também uma progressivamente menor relevância dos factores individuais. Tomamos como ponto de partida um indivíduo com as suas características pessoais, a sua história, a sua personalidade, e uma relação com o cuidador. A natureza da relação entre cuidador e cuidado parece-nos uma variável significativa. Ser cuidado pelo cônjuge, por um filho, ou por um irmão, levantará certamente questões diferentes.

Num período inicial, plenamente mantidas as suas capacidades, notando, antes de qualquer outra pessoa, alguma dificuldade na memória, na capacidade de organizar e desempenhar tarefas complexas, ou na fluidez do pensamento, poderá reagir com

CUIDADO e o seu

momento psicológico momento psicológico CUIDADOR e o seu Personalidade prévia Memória Comunicação Desorientação Doença Necessidades Manifestações Possíveis Intervenções Informação Competências Interpessoais

negação das dificuldades, com ansiedade, com zanga, ou com depressão. Poderá ter apenas uma ou várias destas reacções, em simultâneo ou sucessivamente.

Ansiedade e depressão referem-se à presença das habituais manifestações destes quadros. Podem surgir mais cedo ou mais tarde no decurso de um processo demencial, assim como podem surgir precocemente e persistir ao longo do processo. No início do processo demencial a componente psicogénica pode ser significativa. À medida que a gravidade do processo demencial avança, esperaremos manifestações simbólicas menos elaboradas e compreensíveis, manifestações verbais cada vez mais elementares, e mais manifestações motoras e instintivas.

Esta situação de um indivíduo, precocemente, se aperceber das suas

dificuldades, depende também do grau de atenção às próprias capacidades cognitivas (Hess, Auman, Colcombe, & Rahhal, 2003), o que por sua vez dependerá do valor que atribui às capacidades cognitivas no conjunto do seus atributos, e do nível de exigência cognitiva das suas tarefas habituais.

À percepção das dificuldades e competências no desempenho das suas funções habituais, perceptível ou não para o próprio, e mais cedo ou mais tarde, aparente também para os que o rodeiam, segue-se uma perda da identidade social, imposta pelo próprio, ou pelos circundantes. Isto é, um retirar do reconhecimento dos seus habituais papeis sociais. Por exemplo, um indivíduo deixa de ser reconhecido como uma pessoa com energia para tudo, ou como um médico competente a quem se pode confiar as queixas e angústias mais inquietantes, ou como a dona de casa que tem o governo da casa controlado, e que tudo previu e pensou, ou como o chefe da família. Um processo idêntico, embora mais atenuado, pode também ocorrer no envelhecimento normal.

No entanto, no doente com demência, começam a surgir as consequências da deterioração cognitiva, com diminuição da capacidade crítica e da compreensão do ambiente.

Negação, ansiedade, depressão, baixa crítica para a sua situação, e défice na compreensão, formam um contínuo de gravidade crescente. Falaremos de negação quando presumimos que o comportamento é essencialmente psicogénico, e que a componente cognitiva tem uma importância menor. Falaremos de baixa crítica para a sua situação e de défice na compreensão com a presunção de uma importância crescente da componente cognitiva.

As pessoas envolventes reagem com desvalorização dos atributos pessoais do doente, e começam a interferir na sua vida, e a pretender substituírem-se ao doente na tomada de decisões, controlando aspectos geralmente relacionados com a segurança do próprio ou de terceiros, com o planeamento do futuro, ou com a administração de bens. O doente reage com negação, com ansiedade, com zanga, ou com depressão. Podem surgir então disputas entre o doente e as pessoas que querem alterar o seu ambiente ou as suas rotinas. Por vezes as disputas extravasam o âmbito estrito do cuidador e cuidado, para surgirem entre diferentes elementos, geralmente familiares, que têm diferentes entendimentos das limitações do doente, das suas causas, ou das medidas mais adequadas a serem tomadas, podendo aqui também misturar-se velhos

ressentimentos.

A doença segue o seu curso, acentuam-se as dificuldades de compreensão, e começam a ser notórias as dificuldades de expressão. Acentua-se o isolamento e surge a labilidade emocional.

O isolamento é uma manifestação complexa para a qual podem contribuir factores relacionais, instintivos, e comunicacionais. A labilidade emocional surge como

manifestação de perda de controlo dos impulsos, e para além do agravamento resultante do processo demencial, está também sujeita ao padrão habitual do indivíduo, à sua resistência à frustração, e às variações a que estes comportamentos estão sujeitos.

Podem surgir períodos de desorientação que gradualmente se vão tornando permanentes, ideias delirantes, geralmente de perseguição, alucinações, geralmente visuais, agitação motora, agitação verbal, agressividade, recusa em fazer a higiene ou mesmo em se alimentar. Começa a ser difícil a expressão das necessidades básicas e do desconforto físico.

A dificuldade na comunicação e dificuldade em expressar as necessidades básicas, surgem como graus sucessivos de múltiplos défices na elaboração verbal, e constituem uma clara assinatura da deterioração cognitiva, com mínimos factores psicogénicos, apenas modelada pela reserva cognitiva, sendo que esta se relaciona com o nível educativo.

Se é certo que no percurso psicológico do cuidado ao longo do processo demencial, cada etapa nos aparece como negativa, causadora de desadaptação e

sofrimento, podemos também perceber que cada uma dessas dificuldades traz implícito um pedido, uma necessidade própria, o que, não sendo à partida algo positivo, traz consigo um potencial, pelo menos do ponto de vista relacional. Uma necessidade é também um motivo para a interacção, para uma possível aproximação, que pode ir além da própria necessidade inicial, e tornar-se uma troca recíproca. A negação da realidade objectiva que se antevê, traz em si uma clara mensagem de desejo de manter a

autonomia, da necessidade de autonomia. A ansiedade com a sua antecipação receosa. Como não ver na ansiedade uma manifestação de percepção das dificuldades futuras, e de necessidade de confiança? A depressão não é também o reconhecimento da

situação, e o défice de compreensão, anunciando a perda de capacidades cognitivas,

requer dos cuidadores aceitação, respeito pelo processo psicológico do cuidado, e conhecimento das dificuldades cognitivas do cuidado, que permita a procura das melhores alternativas para garantir a segurança, e manter a comunicação e o

desempenho. No isolamento, e na labilidade emocional, manifestações complexas, poderemos encontrar diversas misturas de causas psicológicas, instintivas e cognitivas. Na dificuldade em expressar as necessidades básicas consuma-se a dependência em relação a terceiros, donde a premência de estes entenderem o que já não se consegue expressar de forma convencional. No percurso do receptor dos cuidados, como acima referimos, surgem-nos primeiro as etapas com maior componente psicológica, ou seja, mais acessíveis a uma abordagem compreensiva, onde podem ter maior relevância as atitudes interpessoais de empatia e aceitação. Se nas etapas mais tardias do processo demencial ganha importância a deterioração da componente cognitiva, tornando-se progressivamente mais necessária uma abordagem explicativa, e uma intervenção capaz de minimizar as consequências da perda das capacidades cognitivas, não deixa por isso de haver lugar a uma componente compreensiva, iluminada pela empatia e aceitação, embora adaptada à realidade e capacidade comunicativa do cuidado, onde ganham relevância as comunicações não verbais (Prouty, 1994). A perda do sentimento de si é um risco presente na demência mas surge tardiamente e pode ser combatida,

preservando-se dessa forma um sentido para a existência do doente, com benefícios para o próprio, mas também para o cuidador.