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TERRITÓRIOS E POLÍTICAS PÚBLICAS DE DESENVOLVIMENTO TERRITORIAL RURAL

3.1. Da Política Nacional de Desenvolvimento Regional ao Programa Territórios da Cidadania

3.1.1. O Plano Nacional de Desenvolvimento Regional

A questão do desenvolvimento regional, retomada no cenário brasileiro, no contexto das disputas presidenciais no ano de 2002, tendo aparecido no programa da candidatura do Partido dos Trabalhadores (PT), apontava a perspectiva de conciliar a

histórica bandeira de ampliação do mercado de consumo de massa com o combate à dicotomia norte-sul, uma das mais persistentes marcas do modelo de desenvolvimento concentrador, criando uma grande expectativa entre os militantes do tema.

Prestigiado pelo presidente recém-eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, o Ministério da Integração Nacional (MI), esvaziado e envolvido em acusações de clientelismo e corrupção no governo anterior, foi entregue ao quarto colocado na eleição presidencial, Ciro Gomes, do Partido Socialista Brasileiro (PSB) que, no segundo turno, apoiara a candidatura petista contra o candidato José Serra, do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB).

O Ministro Ciro Gomes, ao assumir o Ministério da Integração Nacional, passou a responder por um dos projetos de maior visibilidade do governo: a polêmica integração do Rio São Francisco com bacias hidrográficas do Nordeste setentrional. Outros cargos-chave da estrutura ministerial foram ocupados por quadros técnicos de reconhecida competência na temática regional/territorial, com destaque para Tânia Bacelar de Araújo, colaboradora nos programas de governo das candidaturas anteriores de Lula e coordenadora do tema na equipe de transição do governo eleito, entre dezembro de 2002 e janeiro de 2003.

À frente da Secretaria de Políticas de Desenvolvimento Regional (SDR), a pesquisadora e sua equipe dedicaram-se a uma densa agenda técnico-política ao longo de 2003 que incluiu temas polêmicos como o redesenho dos programas regionais a cargo do Ministério da Integração, a recriação das superintendências regionais, a instituição de um Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional (FNDR), além de conduzir debates sobre uma nova Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR). Assim, em fins de 2003, sua versão preliminar – “PNDR: Proposta para discussão” foi apresentada à sociedade.

Partindo do diagnóstico de que o acirramento das assimetrias socioeconômicas constituía um dos efeitos mais perversos da globalização, o texto do documento defendia a adoção de políticas capazes de proporcionar a coesão territorial e social, enfatizando a pertinência de uma política de desenvolvimento regional em resposta às forças centrípetas da atual fase do capitalismo internacionalizado.

Propunha, ainda, a superação da abordagem macrorregional que, historicamente, caracterizara as políticas desenvolvimentistas no Brasil, em favor de um enfoque

multiescalar, centrado na valorização da diversidade e das relações sociais estabelecidas no território.

Para a Secretaria de Desenvolvimento Regional:

As iniciativas locais e sub-regionais precisam se articular e encontrar nexo na Política Nacional. Num país continental, heterogêneo e desigual como o Brasil, a ênfase em soluções localistas isoladas não é recomendável, pois pode ampliar os riscos de fragmentação. Daí a importância de políticas nacionais capazes de assegurar consistência às iniciativas locais e garantir a integração nacional (BRASIL; 2003: 14)

A natureza transversal da política foi ressaltada no documento, sob a justificativa de que entre o conjunto de ações necessárias à implementação da Política de Desenvolvimento Regional incluíam-se projetos e atividades a cargo de órgãos diversos. Evidenciava-se a intenção de internalizar a dimensão territorial no planejamento e na ação do conjunto do Governo, contando para isso com o envolvimento ativo dos órgãos responsáveis pela macrocoordenação da máquina burocrática. O referido texto destaca que, “o mais complexo na Proposta deriva mesmo do fato de que iniciativas que buscam intervir sobre outros problemas devem, na medida do possível, responder aos critérios emanados da PNDR” (BRASIL, 2003, p. 15).

Um conjunto de variáveis foi apresentado, englobando densidade demográfica, crescimento populacional, escolarização de adultos, urbanização, renda média domiciliar e variação do produto interno bruto (PIB), sendo que a escolha das áreas preferenciais para ação se deu pela sobreposição da renda média familiar e a variação do PIB, contemplando assim uma dimensão estática (renda) e outra dinâmica (variação do PIB). Mais uma vez, os dados indicaram a permanência das desigualdades regionais que, historicamente, caracterizam a formação do Estado brasileiro, indicando a concentração de microrregiões de menor renda e dinamismo nas regiões Norte e Nordeste.

As microrregiões que apresentassem os territórios marcados pela insuficiência de renda e/ou deficiências de infraestruturas, seriam as preferidas pela Política de Desenvolvimento Regional. A operacionalização se daria sob uma arquitetura institucional que harmonizaria instrumentos e responsabilidades em diversos níveis, resultando na coexistência de instâncias articuladas de planejamento e deliberação. A distribuição de papéis preconizada delegava ao nível nacional, composto pelo

Ministério da Integração e demais órgãos coordenadores da Política Nacional de Desenvolvimento Regional, a responsabilidade pela definição de critérios e seleção dos espaços prioritários para alocação de recursos e intervenção de outras políticas.

Já no nível regional caberia, especificamente, a elaboração de planos estratégicos de desenvolvimento e a articulação de iniciativas e promoção de ações especiais, com destaque para a atuação prevista das seguintes Superintendências: Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) e Superintendência de Desenvolvimento do Centro Oeste (SUDECO), consideradas “braços de representação” da Política Nacional de Desenvolvimento Regional junto aos “atores” do território.

Já nos níveis inferiores é que se desdobrariam as ações propriamente ditas, com ênfase nos programas sub-regionais, denominados, no texto, “unidades de articulação das ações federais nas sub-regiões”. A essas, deveriam acoplar-se espaços institucionais de concertaçãoconstruídos pelos próprios “atores”17 do território, com destaque para os

fóruns das mesorregiões diferenciadas e demais instâncias sub--regionais, cuja composição deveria contemplar, além dos órgãos governamentais dos três níveis, setores empresariais e sociedade civil.

Por espaço de concertação entende-se o espaço de Diálogo ou discussão entre o governo, as organizações sindicais e as organizações empresariais sobre assuntos sociais e laborais, com o objetivo de estabelecer acordos ou consensos. Segundo a Coordenadora de Planejamento da Secretaria de Desenvolvimento Territorial:

[...] concertação tem sentido de concerto, de regência de orquestra, um ambiente de concertação é um espaço onde é possível construir as convergências. Então, quando a gente fala de concertação ele tem a ver com ambiente onde você pactua, aonde você procura a convergência através do diálogo e através de complementariedade de ações. Então quando a gente fala que o território é um espaço por excelência de concertação é porque nele estão presentes o governo federal, o governo estadual e o governo municipal. Nele está presente a sociedade civil, não específica de um município, mas de um conjunto. Então ela (a sociedade civil) representa aquele ambiente,

17 Para melhor compreende o sentido atribuído ao termo “ator social” utilizado nas atuais políticas de

desenvolvimento territorial ver TOURRAINE (1970, 1994) e DAHRENDORF (1969). Neste trabalho partimos do entendimento de que a utilização do termo “ator social”, no contexto do surgimento dos novos movimentos sociais e das teorias liberais que apregoam o “fim da história”, buscam esvaziar o sentido da luta de classes enquanto categoria analítica explicativa do movimento da história. Seu uso durante o trabalho, portanto, se justifica apenas pela necessidade de fazer referência as políticas de desenvolvimento em questão, na forma como foram e estão sendo concebidas.

aquele espaço. (Coordenadora de Planejamento da Secretaria de Desenvolvimento Territorial, em entrevista realizada em 16/04/2014)

Eleita espaço preferencial para desenvolvimento das ações, a escala mesorregional18 seria beneficiada por uma agenda programática que incluiria o apoio a

arranjos produtivos locais inovadores, qualificação da mão de obra, acesso ao crédito e infraestrutura de pequena e média escalas, desde que tais ações estivessem subordinadas a um “Plano de Desenvolvimento”, construído e referendado localmente.

Embora as linhas gerais da proposta da SDR/MI tenham sido recepcionadas de forma positiva pelo conjunto do governo, ao menos duas inovações institucionais previstas no documento acabaram por não avançar: a primeira, que consistia na formulação de uma Política Nacional de Ordenamento Territorial (PNOT), ficou restrita à produção de textos para reflexão e debates, não resultando em proposição concreta; a segunda, considerada indispensável à viabilização e consolidação da PNDR, tratava da criação do Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional (FNDR). O novo fundo, segundo a argumentação da SDR/MI, supriria a lacuna representada pela inexistência de uma fonte estável de recursos para investimentos infraestruturais, de pequeno e médio portes, bem como para a expansão dos programas sub-regionais.

A indecisão do governo federal em promover transformações estruturais no enfrentamento da questão regional refletiu na alternância de avanços e retrocessos na agenda político-institucional. Como aspectos positivos, o primeiro Plano Plurianual (PPA) da gestão do presidente Lula apresentou como um de seus três grandes objetivos o crescimento com geração de emprego e renda, ambientalmente sustentável e redutor das desigualdades regionais.

Foram criadas, ainda em 2003, duas importantes instâncias de articulação e coordenação de ações: o Comitê de Articulação Federativa (CAF), espaço de interlocução entre União e municípios, e a Câmara de Políticas de Integração Nacional e Desenvolvimento Regional, vinculada ao Conselho de Governo da Presidência da República. A Câmara, instituída pelo Decreto nº 4.793, de julho de 2003, tinha como missão formular políticas e diretrizes de integração nacional e desenvolvimento

18 De acordo com § 5° do art. 3° do Decreto 6.047, de fevereiro de 2007, que institui a política de desenvolvimento regional, mesorregião seria o espaço subnacional contínuo menor que o das macrorregiões, existentes ou em proposição, com identidade comum, que compreenda áreas de um ou mais Estados da Federação, definido para fins de identificação de potencialidades e vulnerabilidades que norteiem a formulação de objetivos socioeconômicos, culturais, político-institucionais e ambientais.

regional, além de coordenar e articular as políticas setoriais com impacto regional. Presidida pela Casa Civil da Presidência da República (CC/PR), sua composição contava com representantes de dezessete órgãos federais19.

Estes aspectos, contudo, não foram suficientes para assegurar efetivamente a institucionalização da proposta de política. As dificuldades organizacionais e as limitações institucionais traduziram-se na falta de um marco legal, que só se concretizou com a publicação do Decreto nº 6.047, de fevereiro de 2007. O ato normativo que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Regional validou as linhas gerais da proposta original de 2003, destacando os papéis do MI como seu operador e da Câmara de Políticas de Integração Nacional e Desenvolvimento Regional como instância articuladora e coordenadora.

Ao final do primeiro mandato do Presidente Lula, o esvaziamento político do Ministério da Integração já era notório, processo que se acelerou com a saída de Ciro Gomes, que deixou a pasta em março de 2006 para candidatar-se à Câmara Federal. Se os desafios para a consolidação institucional do MI já se delineavam fortemente, a crescente perda de status concorreu para que a PNDR não se estabelecesse como política de Estado, inviabilizando sua legítima pretensão de pautar o debate sobre desenvolvimento regional/territorial no país.

Evidência disso foi a contínua expansão do leque de programas de desenvolvimento territorial no âmbito do governo federal, reafirmada com o lançamento do Programa Territórios da Cidadania (PTC) em cerimônia no Palácio do Planalto, em 25 de fevereiro de 2008, pela Casa Civil da Presidência da República (CC/PR). Um novo programa se materializava, por iniciativa de outro órgão, sob o mesmo governo.

Assim, em novembro de 2010, como resposta aos desafios apontados, o Ministério da Integração Nacional colocou em debate na sociedade, o documento “A PNDR em dois tempos: a experiência apreendida e o olhar pós-2010”. Tratava-se do último esforço para elevar a PNDR à categoria de política de Estado, propondo para isso uma série de medidas corretivas agrupadas na chamada “fase II” da Política. O documento baseava-se em três grandes eixos indivisíveis: a) o Mapa da Elegibilidade, com metas de aplicação de recursos; b) o novo FNDR, que viabiliza financeiramente

19Além da Casa Civil e da Secretaria Especial de Aquicultura e Pesca, integravam a Câmara as pasta da

Integração Nacional, Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Educação, Fazenda, Saúde, Cidades, Minas e Energia, Desenvolvimento Agrário, Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Meio Ambiente, Planejamento, orçamento e gestão, Trabalho e emprego, Turismo e Transportes.

toda a proposta; e c) o Novo Modelo de Gestão pretendido, cujo desenho buscava contemplar a complexa governabilidade da questão regional brasileira. (BRASIL, 2010)

Por fim, referindo-se ao Novo Modelo de Gestão, a aposta do MI residia na criação do Sistema Nacional de Desenvolvimento Regional e Integração Territorial. Norteado pelo federalismo cooperativo, cuja missão seria promover a integração horizontal e vertical da ação pública. A estrutura do novo Sistema contaria com quatro instâncias deliberativas e de gestão, sendo duas de âmbito federal (Conselho Nacional e Câmara Interministerial), uma de âmbito estadual (Comitê Estadual), cuja criação dependeria da iniciativa das unidades federativas, e uma supramunicipal, sem denominação específica, a ser integrada por entidades de representação coletiva, tais como associações de municípios, consórcios públicos, fóruns mesorregionais e similares20.

O Conselho Nacional seria a instância máxima, com função deliberativa, cabendo sua titularidade ao Presidente da República. Ao contrário da atual Câmara de Políticas de Integração Nacional, cuja composição estava restrita ao nível federal, o novo órgão contemplaria a sociedade civil e os demais níveis de governo, evidenciando a intenção de corrigir os desequilíbrios observados na representação federativa. O Conselho teria atribuições de natureza essencialmente estratégica, compreendendo formulação de políticas, aprovação de planos plurianuais e avaliação global. Sua instalação, tal como a atual Câmara, se daria na estrutura da Casa Civil da Presidência da República, reafirmando a intenção de comprometer o núcleo decisório central.

Já à Câmara Interministerial seria reservado o assessoramento técnico e administrativo do Conselho, com atribuições normativas e deliberativas na supervisão e coordenação operacional do sistema. Formada por ministérios atuantes em projetos de desenvolvimento regional/ territorial, órgãos da Presidência da República, entidades representativas de outros níveis de governo e sociedade civil, a Câmara teria também a função de articular os esforços da União com os níveis estadual e municipal. Já às instâncias estaduais e supramunicipais caberia a missão de promover o diálogo e

20 O tema da criação de um sistema nacional de desenvolvimento regional/territorial permanece atual.

Após a realização em outubro de 2013 em Brasília, da 2ª Conferência Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário (CONDRAF) elaborou texto de subsídio para o Conselho e demais instâncias de gestão social do desenvolvimento rural, cujo tema central era a construção do sistema nacional como estratégia de gestão do desenvolvimento rural sustentável, visando à constituição ou integração de um conjunto de instâncias e instrumentos interdependentes com vistas ao alcance de determinados objetivos, no caso àqueles relacionados à política de desenvolvimento territorial rural sustentável e solidário.

garantir a representatividade dos “atores” locais, propiciando apoio técnico e político às iniciativas nos territórios. A Figura 1 esclarece o modelo de gestão proposto para a Política Nacional de Desenvolvimento Regional

Figura 1 - Desenho Esquemático do sistema Nacional de Desenvolvimento Regional.

Fonte: BRASIL. Plano Nacional de Desenvolvimento Regional (2003).

Nesta breve análise sobre a trajetória da Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR), é possível perceber a presença de inúmeros fatores econômicos e político-institucionais que se opunham à sua efetivação. Esses condicionantes podem ser considerados como indicadores de que sem o enfrentamento das questões substantivas que concorreram para que a PNDR não se consolidasse como política de Estado – a exemplo das disputas políticas, que em última instância representam a luta de classes ou frações de classe no âmbito do Estado – também outras tentativas políticas que procurem incorporar a dimensão regional/territorial no processo de planejamento dificilmente conseguirão ser exitosas.