• Nenhum resultado encontrado

Tradição Municipalista e Cultura Oligárquica na Política Brasileira

TERRITÓRIOS E POLÍTICAS PÚBLICAS DE DESENVOLVIMENTO TERRITORIAL RURAL

3.2. Contradições e Tensionamentos nas Políticas de Desenvolvimento Territorial

3.2.2. Tradição Municipalista e Cultura Oligárquica na Política Brasileira

Dentre os temas que tensionam as intenções da política de desenvolvimento territorial no Brasil, encontra-se o da tradição municipalista e da cultura política decorrente dessa tradição. Nesse sentido, conforme apontam Medeiros e Dias (2011, p. 241) há uma tensão inevitável entre a noção de território tal como delimitada pela Secretaria de Desenvolvimento Territorial do MDA e os limites administrativos municipais. Assim, para estes autores, “[...] é importante analisar o papel dos municípios em face do marco jurídico vigente”, uma vez que eles são “[...] definidos como a unidade de poder e administrativa mínima no desenho da federação” (2011, p. 142).

O tema do papel dos municípios na federação brasileira foi amplamente discutido, entre outros, por Vitor Nunes Leal no seu clássico “Coronelismo, enxada e voto”, escrito em 1949. Nesse livro, o autor chamava a atenção para a necessidade de se compreender o municipalismo brasileiro, fundado numa superposição entre o alargamento do regime representativo, resultante da extensão do direito de voto, e o que ele considerava como sendo uma “inadequada estrutura econômica e social”.

[...] havendo incorporado à cidadania ativa um volumoso contingente de eleitores incapacitados para o consciente desempenho de sua missão política, vinculou os detentores do poder público, em larga medida aos condutores daquele rebanho eleitoral. Eis aí a debilidade particular do poder constituído, que o levou a compor-se com o remanescente poder privado dos donos de terra no peculiar compromisso do 'coronelismo' (LEAL, 1986, p. 253).

O autor ressaltou o poder dos proprietários de terra, fundado na fragilidade de um sistema rural decadente, “baseado na pobreza ignorante do trabalhador da roça e sujeito aos azares do mercado internacional de matérias primas e gêneros alimentícios que não podemos controlar” (LEAL, 1986, p. 57).

O seu estudo mostra como esse poder estava intimamente vinculado ao apoio que os proprietários de terras recebiam do governo estadual, criando o complexo sistema chamado de “coronelista”, que marcou a história brasileira por muitas décadas.

Para Leal (1986), a situação de dependência do eleitorado rural (massa de assalariados, parceiros, posseiros e pequenos proprietários) em relação aos donos de terras e à falta de consciência política dos eleitores fez, segundo o autor, com que o coronelismo se estabelecesse num sistema de reciprocidade, de troca de favores entre os políticos locais e o poder público estadual. De um lado, os chefes municipais e os coronéis conduziriam uma quantidade de eleitores, de outro, a situação política dominante no Estado, “que dispõe do erário, dos empregos, dos favores da força policial, que possui, em suma, o cofre das graças e o poder da desgraça” (LEAL, 1986, p. 43).

De modo especial, a partir dos anos de 1960/70, com o processo de industrialização, de modernização da agricultura brasileira e o acelerado processo de expropriação dos trabalhadores, com a consequente urbanização dos municípios e a multiplicação de povoados e periferias urbanas, acreditava-se que o poder dos “coronéis” seria reduzido. Nesse sentido, argumentam Palmeira e Leite (1998), não só foram rompidos os contratos tradicionais, como também foram alteradas as relações sociais com o surgimento de novas posições e novos personagens, criando novas mediações que passaram a ser determinadas pela ocupação de postos na máquina pública.

[...] a patronagem exercida pelos grandes proprietários, já abalada pela saída em massa dos trabalhadores de dentro das fazendas, deixa de ser um mecanismo de articulação exclusiva dos camponeses com o

Estado e com a sociedade. Abre-se a possibilidade de patrões alternativos e de padrões alternativos, ao mesmo tempo que se amplia o espaço para organizações estranhas ao sistema tradicional de dominação (PALMERIA; LEITE, 1998, p. 128)

A esse respeito, Veiga (2001), vai colocar que, se houve mudanças importantes, elas não foram capazes de alterar completamente as práticas políticas. Os municípios empobrecidos do interior, com reduzido contingente populacional, mantiveram-se dependentes da articulação política com os poderes públicos para obter recursos, reproduzindo relações de dependência, embora em outras bases. Nesse contexto, criou- se uma imagem de urbanização e civilidade que, na verdade, ainda parece longe de existir.

A Constituição de 1988 alterou alguns aspectos desse quadro, mas conservou outros. Foram ampliadas, por exemplo, as possibilidades de participação social nas políticas públicas, em especial por meio da criação de conselhos em vários níveis e setores. No que se refere aos municípios, no entanto, manteve-se como referência seu polo urbano-administrativo. De acordo com a Carta Magna, é possível haver a criação, fusão, incorporação e desmembramento de municípios por lei estadual, garantindo-se a preservação da continuidade e a unidade histórica e cultural do seu ambiente urbano.

Do ponto de vista da organização administrativa e política, ainda por efeito da aprovação da Constituição de 1988, as décadas de 1980/90 presenciaram um intenso debate sobre descentralização administrativa. Como aponta Abrucio (2006), a Constituição abriu a possibilidade de um novo federalismo, que

[...] redundou em uma pressão sobre as antigas estruturas oligárquicas, conformando um fenômeno sem paralelo em nossa história federativa. Daí surgiram novos atores como os conselheiros em políticas públicas e líderes políticos que não tinham acesso real à competição pelo poder (ABRUCIO, 2006, p. 97).

O mesmo autor, no entanto, aponta para o significado político da persistência das desigualdades regionais, que se traduzem no fato de que um contingente enorme de pequenos municípios não tem capacidade de sobreviver com recursos próprios. De acordo com Souza (2002, p. 432), quase 75% dos municípios brasileiros arrecadam menos de 10% da sua receita total via impostos e que cerca de 90% dos municípios com menos de 10.000 habitantes dependem quase que em 100% das transferências do Fundo de participação dos Municípios (FPM) e do Imposto sobre Operações relativas à

Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS). Frente a essa situação, a autora comenta que: [...] os governos locais no Brasil variam consideravelmente na sua capacidade de tirar vantagens da descentralização e de investir em programas sociais. No entanto, a literatura sobre descentralização e muitos trabalhos sobre os governos locais no Brasil tendem a tratá-los como uniformes e como tendo a mesma capacidade de jogar um papel expandido nas tarefas que lhes foram transferidas. A literatura brasileira sobre o tema, com poucas exceções, ainda resiste em considerar as enormes heterogeneidades do país e a ignorar o fato de que políticas descentralizadas para as esferas locais podem produzir resultados altamente diferenciados (SOUZA, 2002, p. 438-439).

Como decorrência da situação dos municípios, Abrucio (2006) alerta para a tendência à “prefeiturização”, tornando os prefeitos “atores” por excelência do jogo local e intergovernamental. Segundo ele, “cada qual defende seu município como uma unidade legítima e separada das demais, o que é uma miopia em relação aos problemas comuns micro e macrorregionais”. Para ele, a isso se soma a falta de estímulos para a criação de consórcios municipais, configurada na inexistência de qualquer figura jurídica de direito público que dê segurança aos governos locais para buscar mecanismos de cooperação.

[...] em vez da visão cooperativa, predomina um jogo no qual os municípios concorrem entre si pelo dinheiro público de outros níveis do governo. Lutam predatoriamente por investimentos privados e ainda, muitas vezes, repassam custos a outros entes, como é o caso de muitos governos municipais que compram ambulâncias para que os moradores utilizem os hospitais de outros municípios, sem que seja feita qualquer cotização para pagar as despesas (ABRUCIO, 2006, p. 98).

Fatos como esses apontam a sobrevivência do que se considera “resquícios culturais e políticos antirrepublicanos no plano local”, assinalando que muitos municípios ainda são governados sob o registro oligárquico (ABRUCIO, 2006, p. 99).

Abrucio ainda chama a atenção para o fato de que, mesmo com a renovação, pela qual a política local passou a partir das experiências dos conselhos e da ascensão de lideranças locais provenientes de organizações que surgiram a partir das lutas sociais, há uma lógica que impõe uma determinada relação entre governos municipais, governos estaduais e governo federal.

[...] Esses aspectos têm efeitos importantes, entre eles, a precariedade de recursos de vários municípios e a criação de obstáculos à participação efetiva dos atores territoriais organizados, dificultando arranjos territoriais que, para se efetivarem, implicam forte dose de concertação.

Por fim, observa-se que, apesar dos avanços nos últimos anos em relação às novas relações sociais e políticas, e consequentes rearranjos de posições, o controle da política municipal ainda está, em grande medida, nas mãos das elites locais, que tendem a reproduzir concepções que colocam o território em segundo plano.

Frente à fragilidade dos municípios em relação aos recursos, à necessidade de barganha de que os mesmos são prisioneiros e ao grau de competição que se estabelece entre eles, evidencia-se a tensão entre o território (nos moldes como esse é compreendido pela Secretaria de Desenvolvimento Territorial do MDA) e o município. Nesse sentido, as dificuldades implicadas no fato de os recursos para os territórios serem executados pelos municípios indicam uma limitada capacidade de gestão social daqueles [municípios] pelos territórios, o que coloca para as atuais políticas de desenvolvimento territorial um desafio enorme, cuja superação parece ainda distante.

Sobre os efeitos da tradição municipalista na cultura política brasileira, entende- se, conforme Leal (1986), que ainda persiste em nossa sociedade–metamorfoseado nas inovações e transformações da vida pública brasileira –, o sistema coronelista, impondo barreiras e limitações à democratização da sociedade, no conjunto de suas instituições. A seguir, trataremos das implicações mais diretas desse sistema nos processos de participação social.