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3.1 Quais as vantagens e os problemas da totalidade indivisa de David Bohm?

3.1.6 O poder causal do mental e da consciência fenomênica

Como temos visto, parece que o que Bohm compreende por participação é algo diferente de causação, como compreendida tradicionalmente. Na causação, haveria duas

127 No original: “The key difference in these two cases is grasped in thought, as the presence together of many

different but interrelated degrees of transformations of ensembles, while for the music, it is sensed immediately as the presence together of many different but interrelated degrees of transformations of tones and sounds. [...] In listening to music, one is therefore directly perceiving an implicate order.”

coisas distintas que entram em relação. Em contraste, na participação entre aspectos mental e material, a ‘relação’ é algo que se dá apenas teoricamente, não existindo ontologicamente duas coisas distintas e independentes que se relacionam entre si. Desde o princípio, os aspectos mental e material já coexistem, uma vez que a informação que se atualiza só o faz porque estava em potência e uma informação só pode estar em potência se tem a possibilidade de atualizar-se.

Mas isso não significa que, na perspectiva bohmiana, o aspecto mental e, como temos defendido a partir dessa perspectiva, que também os qualia ou a consciência fenomênica, não tenha poder ‘causal’, no sentido de produzir uma novidade a partir de outras já existentes. A informação em potência é algo novo que surge da comunicação das informações ativas prévias e ela pode atualizar-se ou não. Na medida em que a informação que estava em potência dá forma à matéria, ela atualiza-se e expressa o seu poder causal. Portanto, a participação pode ser compreendida como um tipo de relação causal,128 consideradas as devidas características próprias que esse conceito assume na perspectiva bohmiana. Na verdade, Bohm não afirma que a participação entre os aspectos mental e material é uma relação causal, porém, a interpretação feita procede se considerarmos os seus exemplos, dentre eles, o apresentado anteriormente sobre as informações contidas num papel que guiam o nosso comportamento.

Bohm e Bunge129 concordam que, apesar de haver causalidade na mecânica quântica, essa causalidade não é determinista, como na mecânica clássica newtoniana. Para Bohm (1957, p. 164-170), sempre podemos ampliar a perspectiva quanto a um dado fenômeno e considerar outras possíveis causas ou interpretações de um acontecimento, dada a totalidade em que está implicado e dada a nossa incapacidade de compreender essa totalidade, a qual está em constante mudança, num processo de vir a ser. Além disso, do ponto de vista da ordem implícita, segundo o qual todas as coisas estão entrelaçadas, parece estranho compreender que umas coisas causam outras, uma vez que a relação causal no sentido newtoniano implica que a causa é externa e, nesse sentido, independente do efeito. De fato, apenas na ordem explícita, na qual se considera que as coisas têm uma relativa independência

128 No capítulo 4 esclareceremos que o conceito de causação geralmente é empregado de três diferentes formas

para referir-se: a uma doutrina, a um princípio e a uma categoria. Na perspectiva bohmiana, se considerarmos que o vínculo entre os aspectos mental e material segue a ‘categoria’ de causação, é possível compreender a interação entre tais aspectos como uma conexão causal.

129 David Bohm e Mario Bunge trabalharam juntos, inclusive Bunge menciona Bohm no prefácio do seu livro

e estabilidade, é possível compreender que há causalidade no sentido de uma coisa ser independente das outras.

Bohm (1980, p. 265) compreende que a participação entre os aspectos mental e material é não-causal, mas, como veremos no capítulo 4, especificamente na seção 4.2.3, ele estava compreendendo esse conceito de acordo com o princípio causal e não em conformidade com a categoria de causalidade. Para Bohm, o vínculo entre aspecto mental e material seria verificado através da informação ativa, que expressaria a conexão entre informação em ato e potência. Sendo o aspecto material, a atual atividade da informação, enquanto o aspecto mental, a potencial atividade das informações ativas que são trocadas e são capazes de interferir, mesmo a longas distâncias, em outras coisas, dada a interação não- local existente na física quântica. Isso evidencia como Bohm concebe os aspectos material e mental de forma bem distinta em relação à tradição das discussões da filosofia da mente. Para ele, mente refere-se a potencial atividade das informações inerentes a eventos e processos físicos de qualquer nível; daí que até mesmo elétrons teriam um aspecto mental (mind-like). Por isso, afirmamos anteriormente que a mente em geral seria irredutível e não apenas os qualia como uma característica do mental. Essa compreensão do mental permitiria compreender como um nível fenomênico poderia emergir de um nível protofenomênico da realidade, usando os termos de Chalmers. E compreender como os qualia, como uma ordem implícita muito sutil poderiam herdar o mesmo poder causal, na medida em que seu aspecto mental enquanto potencial atividade coloca em movimento a informação.

Além disso, fica claro que há novidade qualitativa na comunicação das informações, o que faz com que novas informações surjam e possam atualizar-se. Assim, se há causalidade nesse processo, tal causalidade não é determinista e isso está de acordo com uma visão do ser humano como autônomo e livre.

No ser humano, a inteligência permite a autonomia de pensamento e de ação. Tal como existe no ser humano, na totalidade indivisa, atua a protointeligência que se manifesta através de um tipo de “jogo livre”. A característica essencial da protointeligência seria que as totalidades não são formadas de uma maneira aleatória, mas elas emergem como totalidades relativamente integradas de níveis mais sutis. Esse jogo livre que existe na inteligência humana e na protointeligência é possível justamente porque há liberdade na concepção ontológica de Bohm.

A inteligência, para Bohm (1987, p. 108), é um ato criativo e dinâmico de percepção através da mente, no qual novas categorias são formadas e a criação de categorias constitui um sistema fluido e aberto a mudanças. A rigidez na infraestrutura implícita da consciência

age de modo a interferir no movimento livre da mente, que é necessário para a atenção apropriada. Isso significa que os preconceitos acabam tornando a infraestrutura da consciência rígida, o que a leva à destruição e bloqueia a criatividade.

Enfim, para Bohm, a consciência é inseparável do processo material do cérebro, do sistema nervoso e do corpo como um todo. Segundo ele, “Pensamento, sentimento e intenção podem mudar radicalmente a distribuição do fluxo sanguíneo e variar os processos químicos do cérebro”130 (BOHM; PEAT, 2011, p. 208, tradução nossa). Da mesma forma, mudanças induzidas na química cerebral podem modificar os estados mentais e, assim, cérebro e corpo podem também modificar profundamente os pensamentos, sentimentos e intenções (BOHM; PEAT, 2011, p. 208). Por isso, defendemos que os qualia, a partir da perspectiva de Bohm, poderiam ser compreendidos como interdependentes com a matéria, uma vez que o conteúdo da experiência, como o conteúdo da percepção, também emerge de um entrelaçamento entre aspectos mental e material no ser humano com os aspectos mental e material das informações com as quais ele se comunica no ambiente natural e cultural.

Diante disso, será que a participação mente-corpo em Bohm pode ser relacionada a um tipo de causação circular tal como concebida na Teoria dos Sistemas Dinâmicos? Se ele critica a compreensão da relação mente-corpo como uma relação causal, na qual um aspecto seria mais básico ou primordial em relação ao outro, parece haver uma semelhança entre a sua perspectiva e a da relação entre os níveis na Teoria dos Sistemas Dinâmicos. Porém, isso será investigado melhor no próximo capítulo.

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