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Os qualia seriam propriedades qualitativas subjetivas das experiências conscientes, relacionadas ao real problema mente-corpo. Porém, para alguns filósofos fisicalistas como Daniel Dennett (1991;2016), as experiências conscientes não teriam qualia. Ele nega a existência ou a importância dos qualia que seriam tidos como reais ou significativos. É essa a tese defendida em “Quining qualia” publicada originalmente em 1988 (DENNETT, 2016, p. 381). Para esse filósofo, as experiências conscientes não são nada diferentes dos processos físicos que ocorrem no corpo.

38 Ao longo desta tese, argumentaremos que os qualia acompanham diversos processos psíquicos e

neurológicos porque o aspecto mental e material no ser humano existem entrelaçados e participam um da existência do outro. Os qualia como ordens implícitas mais complexas (que também existem pelo entrelaçamento de aspectos mental, ou quase-mental, e material) existem em participação com as outras ordens implícitas menos complexas no ser humano e têm poder de (in)formar, ou seja, de dar forma a novas ordens, que podem se apresentar na forma de novos comportamentos também por meio de causação circular.

Chalmers também criticará essas propostas e defenderá a existência dos qualia como algo diferente e que guarda independência em relação à constituição físico-biológica existente no ser humano.39 Ele apresenta cinco argumentos contra a afirmação de que haja uma completa dependência dos qualia em relação à constituição físico-biológica do ser humano e que uma explicação desta última seja suficiente para explicar a existência dos

qualia. A essa relação de completa dependência de um conjunto de fatos sobre outro, dá-se

o nome de superveniência.

Para tornar isso mais claro, Chalmers (1996, p. 33-38) diferencia quatro tipos de superveniência: local, global, lógica e natural. A superveniência local refere-se à determinação das propriedades B de um indivíduo pelas suas propriedades A; por exemplo, as propriedades físicas que determinam a forma do objeto. A superveniência global refere- se à determinação de um conjunto de propriedades B por um conjunto de propriedades A do mundo inteiro; por exemplo, as propriedades biológicas determinadas pelas propriedades físicas do mundo inteiro, ou ainda o valor econômico da Mona Lisa original que é diferente do valor de suas réplicas. A superveniência lógica refere-se à implicação conceitual enquanto que a superveniência natural é ontológica. A primeira é mais fraca, pois se refere às situações logicamente possíveis de existirem, independentemente de sua ocorrência real; já a superveniência natural refere-se às situações meramente possíveis de existirem, porém as situações naturais incluem as contrafactuais, por isso, afirma-se que essa superveniência é mais forte.

Chalmers (1996, p. 47-48) questiona a existência de uma superveniência lógica entre o conjunto de fatos fenomênicos e físicos, uma vez que isso implicaria que, sabendo-se tudo sobre os fatos físicos, pudéssemos deduzir o conhecimento dos fatos fenomênicos. Para ele, um fenômeno natural é redutivamente explicado em termos de propriedades de nível inferior se, e somente se, ele sobrevém logicamente dessas propriedades. Segundo Chalmers (1996), a consciência fenomênica também não sobrevém globalmente, porque a consciência não é implicada por todos os fatos microfísicos do mundo. Ademais, não há necessidade natural que conecte fatos físicos a fatos fenomênicos. A superveniência local entre o físico e a

39 Apesar das semelhanças apontadas entre a perspectiva de Chalmers e a que defenderemos a partir de Bohm

sobre os qualia, aqui é importante ressaltar que, para a perspectiva defendida com base na participação mente- corpo, os qualia não seriam completamente independentes da constituição físico-biológica do ser humano. Poderíamos considerar que há apenas uma relativa independência, como trataremos nos capítulos 3, 4 e 5 desta tese. O que se aproxima da posição naturalizada, ainda que não materialista, de Chalmers. Para a perspectiva metafísica de Bohm, é um fato que sistemas físicos apresentam aspectos mental e material simultaneamente.

consciência fenomênica parece ser a única defensável, segundo Chalmers. Não discordamos que haja uma dependência do aspecto fenomênico do mental em relação ao físico, porém defenderemos que o mais adequado é pensar que haja uma (inter)dependência entre aspectos fenomênicos (ou protofenomênicos) e aspectos físicos.40

Os cinco argumentos usados por Chalmers contra a ideia de superveniência lógica da consciência fenomênica sobre o físico são: 1. O argumento dos zumbis; 2. O argumento do espectro invertido; 3. O argumento da assimetria epistêmica; 4. O argumento do conhecimento e 5. O argumento da ausência de análise.

O argumento dos zumbis (1) baseia-se na experiência de pensamento de que exista um mundo zumbi41 com seres idênticos física e psicologicamente aos nossos, mas que não tenham experiência consciente. Isso seria inteiramente inteligível, portanto, logicamente possível, embora empiricamente improvável. Esse argumento mostra que os fatos fenomênicos não sobrevêm logicamente dos fatos físicos, pois se isso fosse verdade, os seres do mundo zumbi também deveriam ter experiências conscientes (logo, não seriam ‘zumbis’) (CHALMERS, 1996, p. 94-99). Isso mostra que é teoricamente possível pensar na existência de um mundo físico sem a existência dos qualia;42 e, embora o oposto não se possa concluir, ou seja, de que é possível pensar num mundo com qualia sem que ele seja físico, ainda se pode concluir que há uma certa independência entre a consciência fenomênica e os processos físicos no corpo, no sentido de ela não poder ser reduzida a esses processos. Chalmers reconhece que esse argumento é o mais fraco contra a superveniência lógica, visto que, para criticá-lo, basta mostrar que pode haver um mundo fisicamente idêntico ao nosso, no qual as experiências sejam diferentes, sem que elas estejam completamente ausentes.

40 Num mesmo nível de complexidade de organização, defenderemos que existe uma participação ou

entrelaçamento entre os aspectos mental (ou quase-mental) e material; e entre diferentes níveis de complexidade, defenderemos que existe uma causação circular, que permite compreender a interdependência da consciência fenomênica (como um aspecto mental entrelaçado com um aspecto material) e de níveis protofenomênicos (como aspectos quase-mentais entrelaçados com aspectos materiais) a ela relacionados.

41 Chalmers diferencia zumbis psicológicos de zumbis fenomênicos. Os primeiros seriam os dos filmes de

Hollywood que são idênticos fisicamente aos seres humanos, mas são diferentes psicologicamente, pois agem diferentemente de nós ao não demonstrarem dor. Já os zumbis fenomênicos dos quais Chalmers trata, são idênticos física e psicologicamente aos seres humanos, ou seja, agem exatamente como os humanos, porém não têm experiências qualitativas (CHALMERS, 1996, p. 95).

42 Segundo a perspectiva defendida no capítulo 3, 4 e 5 desta tese, seria estranho que realmente existisse um

mundo zumbi, pois se esse mundo é fisicamente idêntico ao nosso, os seres que vivem nele deveriam ter características semelhantes. Não teríamos como dizer se suas experiências conscientes seriam idênticas, mas teríamos que aceitar que eles deveriam ter algum tipo de experiência consciente. Porém, não vamos nos deter em criticar o argumento de Chalmers aqui. Apenas vamos indicar que talvez o problema dele esteja na concepção que tem de mundo físico, que não implica aspecto mental irredutível desde as organizações menos complexas.

O argumento do espectro invertido (2), já apresentado por Shoemaker (1982) e antes ainda por John Locke (1632-1704), pretende mostrar justamente isso. Enquanto, por exemplo, no nosso mundo, eu vejo o céu azul e a maçã vermelha, o meu gêmeo no outro mundo pode ver o céu vermelho e a maçã azul. Essa experiência de pensamento também mostra a falha da superveniência lógica da experiência consciente em relação ao físico, pois, se ela existisse, como os mundos são idênticos fisicamente, os seres que vivem neles deveriam ter experiências conscientes idênticas. Por outro lado, esse argumento é compatível com uma explicação redutiva da consciência fenomênica, uma vez que o meu gêmeo no mundo também teria experiências conscientes. Essa explicação só não daria conta de explicar o caráter específico da consciência (CHALMERS, 1996, p. 99-101). Por esse aspecto, poderíamos discordar de Chalmers e afirmar que não caberia dizer que a explicação redutiva seria totalmente satisfatória, uma vez que o caráter específico da consciência ou do aspecto protofenomênico não seria explicado. Pela nossa interpretação, que será apresentada nos capítulos 3, 4 e 5, afirmaríamos que, num mundo gêmeo, seres poderiam ter experiências fenomênicas, mas não teríamos como assegurar se são semelhantes às nossas ou não.

O argumento da assimetria epistêmica (3) afirma que a única base para acreditarmos na existência da consciência é a nossa própria experiência consciente, pois não há fatos no mundo que sirvam de evidência ‘direta’ da consciência. Para haver superveniência lógica da consciência fenomênica sobre fatos físicos, deveria ser possível detectar diretamente tais evidências no mundo físico. Como isso não é possível, a consciência não sobrevém logicamente do físico (CHALMERS, 1996, p. 101-103).

O argumento do conhecimento (4) mais conhecido por “Mary e o quarto preto e branco” elaborado por Frank Jackson (1986), concordamos com Chalmers, é o mais claro argumento que pode ser usado contra a superveniência lógica da consciência sobre o físico. Ele mostra que, mesmo que Mary conheça todos os fatos físicos sobre as cores, ela adquire conhecimento novo ao sair do quarto e ter contato direto com as cores do mundo. Logo, a experiência consciente não sobrevém logicamente do físico, caso contrário, ela não teria adquirido novo conhecimento ao sair do quarto (CHALMERS, 1996, p. 103-104).

No entanto, esse argumento contém uma ambiguidade importante a ser esclarecida e não há um consenso entre os filósofos sobre como contorná-la. Inclusive, o próprio Jackson mudou a sua concepção a respeito da conclusão desse argumento. Em seu “Postscript on qualia”, Jackson (2004) afirma que o fato de Mary não saber tudo o que há para saber não leva necessariamente à conclusão de que o que há ainda para saber seja algo não-físico ou mental; o ponto é que os humanos talvez não sejam capazes de conhecer todas as

propriedades intrínsecas da natureza. Isso é interessante, mas o problema com esse contra- argumento é o que estamos chamando de conhecimento quando concluímos que Mary adquire novo conhecimento. Seria um conhecimento proposicional (know that), um conhecimento relacionado a uma nova habilidade (know how) ou um conhecimento que se dá por familiaridade a partir da experiência direta de algo ou alguém (know what)? A interpretação de Jackson, em ambos os artigos, apresenta conclusões sobre a aquisição ou não de conhecimento proposicional sobre o mundo.

Para Conee (1994), o conhecimento novo que Mary adquire não é um conhecimento proposicional, nem idêntico a um conjunto de habilidades, mas é um conhecimento por familiaridade (aquaintance knowledge). Concordamos com essa perspectiva a respeito do argumento do conhecimento e, como ficará mais claro no terceiro capítulo desta tese, a perspectiva defendida, a partir da posição de Bohm (1980, p. 253), procurará mostrar que há uma informação nova adquirida, imediatamente sentida (sensed immediately), que se torna consciente de uma perspectiva subjetiva, sem necessariamente ser por intermédio da linguagem proposicional. No caso da experiência de pensamento, Mary não aprende nenhuma proposição nova, ela já qualificava o céu como azul antes, por exemplo, quando percebia apenas comprimentos de onda através de equipamentos. O que acontece é a aquisição de um conhecimento por familiaridade, uma nova informação (fenomenal) associada ao conhecimento proposicional de que o céu é azul e que tem tais características de comprimentos de onda. Essa informação é um tipo de conhecimento de um fato físico43 (que não existe em si mesmo, mas apenas na relação entre sujeito e mundo) que se dá por experiência própria e, por isso, só pode ser acessado diretamente da perspectiva subjetiva.44

43 Estamos entendendo fatos físicos, aqui, num sentido bem mais amplo, como processos que acontecem no

tempo e no espaço. Essa perspectiva difere de uma posição materialista que compreende que apenas objetos/processos mensuráveis objetivamente seriam considerados relevantes cientificamente.

44 A posição defendida nesta tese sobre os qualia tem características que a aproximam tanto de uma proposta

representacionalista quanto de uma proposta relacional. A teoria representacionalista compreende que os qualia são conteúdos representacionais (ou seja, contêm significado) das experiências, enquanto estados internos do sujeito percipiente. Mas os representacionalistas, segundo Tye (2016), geralmente são externalistas sobre o conteúdo representacional e isso implica que gêmeos microfísicos não poderiam diferir quanto aos seus qualia, o que Chalmers, por exemplo, não aceitaria. Chalmers autodenomina-se um representacionalista fraco, neste sentido, uma vez que o tipo de conexão estabelecida entre o sujeito percipiente e seu contexto passado e presente influencia o conteúdo representacional da sua experiência (Cf. TYE, 2016). A teoria relacional dos

qualia pressupõe geralmente uma teoria realista ingênua de que os indivíduos percipientes estão diretamente

conscientes (aware) dos objetos ao seu redor e de suas propriedades e isso implica que quando alguém estivesse alucinando, o caráter fenomênico de sua experiência não seria o mesmo que de uma experiência real (Cf. TYE, 2016), o que parece coerente. No entanto, não parece que os indivíduos estão sempre conscientes de tudo o que se passa ao seu redor, isso depende do foco de sua atenção em determinado momento. Além disso, compreender que o conteúdo representacional da experiência depende da relação do sujeito percipiente com os objetos da percepção implica considerar todo o conjunto de estados mentais do sujeito que vão interagir com os dados sensórios produzidos em um determinado contexto natural e cultural.

Por fim, o argumento da ausência de análise (5) afirma que, embora os estados conscientes possam desempenhar vários papéis causais, eles mesmos não são definidos por seus papéis causais. O que faz deles estados conscientes é que eles têm uma certa qualidade fenomenal que não pode ser definida em termos funcionais (CHALMERS, 1996, p. 103- 106).

Diante disso, Chalmers conclui que a consciência fenomênica não sobrevém logicamente dos fatos físicos. A consequência é que os fatos fenomênicos acompanham os fatos físicos como fatos adicionais e devem ser explicados por si mesmos (CHALMERS, 1996, p. 107). Concordamos com a crítica de Chalmers à tentativa reducionista de compreender a consciência fenomênica como um processo físico que pode ser explicado nesses termos.

1.3 A crítica de Dennett aos qualia mina qualquer noção de consciência fenomênica?

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