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3.1 Quais as vantagens e os problemas da totalidade indivisa de David Bohm?

3.1.3 A totalidade indivisa do movimento fluente como uma proposta holista

Bohm não denomina propriamente a sua proposta de holista, ele prefere chamá-la de “totalidade indivisa”, apesar de tratar de holograma, holomovimento, holonomia;102

Essa questão não será discutida aqui por não estar relacionada ao problema principal da tese. Mas procuramos analisar essa interpretação, dentre outras questões, em “A totalidade indivisa de David Bohm: uma revisão crítica” (no prelo).

102 Bohm usa o holograma como um recurso para explicar a sua noção de totalidade indivisa.

Etimologicamente, holograma é composto a partir dos termos gregos holos, que significa “todo” e grama, que significa “escrever” (BOHM, 1980, p. 183). Holograma é uma imagem tridimensional de um objeto, na qual cada parte dessa imagem, se for ampliada, representará novamente o todo/objeto hologramado. Holomovimento é um processo de movimento contínuo que constitui a base fundamental de toda a realidade,

entretanto, partimos do princípio que é possível interpretá-la tendo como traço fundamental justamente a noção de totalidade (da realidade), na qual ocorrem as inter-relações de suas partes.

O termo “holismo” foi criado em 1926, por Jan C. Smuts, para referir-se à ideia que o todo transcende à soma das suas partes. Em suas palavras: “Comparado às suas partes, o todo constituído por elas é algo completamente diferente, algo criativamente novo [...]”103 (SMUTS, 2010, p. 180, tradução nossa). A perspectiva de Bohm parece representar bem um holismo ontológico, pois as informações contidas nos campos quânticos, ao comunicarem- se entre si, fazem surgir ‘novas’ informações, que guiarão o movimento das partículas no espaço e contribuirão para a transformação de suas características. Além disso, podemos afirmar que, para Bohm (1987, p. 190-191, tradução nossa, grifo nosso), as relações entre as partes derivam do todo e o todo seria anterior às partes, sem determinar todas as propriedades que podem surgir. Em suas palavras:

Tais “partículas” podem assim, em uma ampla gama de circunstâncias, serem abstraídas como unidades relativamente estáveis. Quando tal simplificação é apropriada, a teoria as reduz à interpretação causal original na qual a função de onda, agora dependente apenas das coordenadas da “partícula”, fornece uma quantidade de informação que fundamentalmente afeta o comportamento de cada “partícula” efetiva através do potencial quântico. Estas “partículas” efetivas podem ser organizadas desse modo em entidades de nível superior, tais como átomos e moléculas. Dessa forma, a atividade de estruturação pode ser vista como sendo sustentada a partir de uma ordem gerativa mais profunda. Esta ordem organiza as partículas de modo que elas dependem crucialmente da quantidade comum de informação na função de onda do sistema todo. Isto, no entanto, não pode ser expresso unicamente em termos de partículas e relações pré-determinadas entre elas. Como resultado, novos tipos de propriedades podem surgir, não antecipadas nas teorias clássicas, nas quais a característica da totalidade na

mecânica quântica [...] têm uma função chave.104

por isso constitui a ordem implícita geral (BOHM; PEAT, 2011, p. 177; BOHM, 1990, p. 273). Holonomia refere-se à lei implícita que rege o todo considerado, no qual as partes têm apenas uma autonomia relativa, pois, num contexto suficientemente amplo, as formas não são vistas como coisas separadas, mas como aspectos de um único fluxo dinâmico da realidade e que continuamente faz surgir totalidades novas (BOHM, 1980, p. 198-199).

103 No original: “Compared to its parts, the whole constituted by them is something quite different, something

creatively new [...].”

104 No original: “Such ‘particles’ can therefore, in a wide range of circumstances, be abstracted as relatively

stable units. When such simplification is appropriate, the theory reduces to the original causal interpretation in which the wave function, now dependent only on the ‘particle’ coordinates, provides a pool of information that fundamentally affects the behavior of each effective ‘particle’ through the quantum potential. These effective ‘particles’ can be organized in this way into higher-level entities, such as atoms and molecules. In this way the activity of structuring can be seen to be sustained from a deeper generative order. This order organizes the particles in ways that depend crucially on the common pool of information in the wave function of the whole system. This, however, cannot be expressed solely in terms of the particles and preassigned

Assim, não é possível considerar uma partícula (ou melhor, um sistema físico) como uma parte independente do todo, de modo que é importante não cair nessa armadilha. Portanto, o mundo seria uma totalidade integrada funcionando, não como um mecanismo com peças rígidas e fixas movidas por causação linear, mas como uma totalidade orgânica,105 na qual o conjunto global das relações determina como as partes comportam/movimentam- se.106 Isso não significa que ocorra uma entificação do todo, mas que não é possível considerar o movimento ou a ação de uma das partes sem considerar o movimento ou a ação de todas as outras.

Dois exemplos usados por Bohm para mostrar que num sistema de muitas partes a interação entre elas depende da quantidade de informação pertencente ao sistema como um todo são a supercondutividade (que ocorre em nível microscópico) e a dança de um grupo de balé (que ocorre em nível macroscópico). No primeiro caso, nota-se que, sob baixas temperaturas, os elétrons movem-se juntos de uma forma organizada e conseguem transpor obstáculos sem dispersarem-se, retornando à forma original do movimento, assim que a temperatura eleva-se novamente (BOHM, 1990, p. 280). Algo similar acontece no segundo caso, com um grupo de dançarinos guiados por uma quantidade de informação comum (BOHM, 1990, p. 281). A informação comum que conecta todas as partículas no caso da supercondutividade é a baixa temperatura e essa informação comum faz surgir outra informação que se expressa no movimento ordenado. No caso dos dançarinos de balé, a informação comum é o ritmo imposto pela música, que gera uma informação relacionada, por exemplo, à marcação do passo. Assim, a ação de cada partícula ou de cada dançarino é indivisível em relação à ação do todo que, por sua vez, segue uma informação comum a todas as partes.107 Assim sendo, isso explicita bem a analogia feita por Bohm de que a realidade tanto micro quanto macroscópica tem características semelhantes.

between them. As a result, new kinds of properties can arise, not anticipated in classical theories, in which the feature of quantum mechanical wholeness [...] plays a key part.”

105 Para Smuts (2010, p. 179), um grupo de pessoas, uma família, sociedades, nações são orgânicos, mas não

organismos.

106 Como veremos no próximo capítulo, essa ideia da totalidade indivisa tem muita semelhança com a

característica dos sistemas dinâmicos de estarem incorporadas/penetradas em seu meio de modo que eles são influenciados por ele, mas também os influenciam (Cf. JUARRERO, 1999, p. 116-117).

107 Há um vídeo produzido pelo Museu de Ciência Online que retrata muito bem essa analogia da

supercondutividade e do grupo de balé (Fonte: <https://www.youtube.com/watch?v=O6sukIs0ozk>). Para compreender bem a comparação feita no vídeo, é importante atentar para o termômetro no canto esquerdo da tela que retrata a variação de temperatura e o movimento ordenado ou não das partículas (dançarinos) (SUPERCONDUCTIVITY, 2016).

O movimento de uma multidão de pessoas ocorre de forma diferente na medida em que cada indivíduo move-se de acordo com a sua própria quantidade de informação (BOHM, 1990, p. 281). Em grande escala, o número de relações é tão grande que os processos podem ser tratados quase como divisíveis, como o movimento das pessoas em uma multidão desordenada. No entanto, ainda assim não como totalmente divisíveis, pois se considerarmos que as pessoas que caminham nessa multidão compartilham algumas informações (por exemplo, ter de desviar de alguns buracos, poder buscar a sombra de algumas marquises, estar sob a ação da gravidade, ter de parar no sinal verde para os carros passarem etc.), podemos concluir que elas podem agir de forma mais ou menos ordenada, mesmo em meio às diferenças possíveis em seus comportamentos. Da mesma forma, quando pensamos no comportamento típico de grupos, culturas, por mais que algumas pessoas observem e afirmem diferenças entre si, ainda assim há um conhecimento comum compartilhado.108 Todos esses exemplos parecem servir como evidências de que existe uma totalidade, na qual as coisas não podem ser analisadas como ‘completamente’ independentes de tudo o mais (BOHM, 1990, p. 275).

Nessa perspectiva, os aspectos mental e material refletem o mesmo processo de movimento que nós experienciamos como a nossa mente. Por exemplo, a percepção de algumas sombras numa noite escura, somada à informação de que existem assaltantes na vizinhança, pode fazer surgir uma sensação de perigo que será não somente um processo mental, mas também material das alterações orgânicas e fisiológicas envolvendo mudanças hormonais, neuroquímicas e o aparecimento de tensões físicas. Na mente, a informação é ativa em suas formas química (alterações hormonais e de outras substâncias), elétrica (sinapses nervosas) e física (contrações musculares voluntárias e involuntárias). Tudo isso é um mesmo processo na realidade, que apenas teoricamente pode ser separado e analisado. Portanto, apenas na perspectiva da ordem explícita (teoricamente), poderíamos afirmar que a nossa mente (compreendida como crenças, desejos e emoções) causa mudança no comportamento ou afeta o corpo.109 Na realidade, as crenças, desejos, emoções etc., ao estarem entrelaçadas com a matéria, fazem parte de um mesmo processo indivisível.110

108 Bohm (1990, p. 284) aponta para uma semelhança da sua concepção com a ideia desenvolvida por Jung do

inconsciente coletivo, pois a participação existente entre as pessoas geraria algo como que uma mente coletiva mais ampla.

109 Como veremos no capítulo 4, essa noção de causação implica que causa e efeito sejam externos e

independentes entre si. Mas, como defenderemos, existe outro modo de compreender esse conceito, o qual não implica essa noção de externalidade.

110 Por isso, é possível conceber, a partir dessa perspectiva, os qualia como uma propriedade mental não

No entanto, poderíamos questionar: se só é possível distinguir os aspectos mental e material teoricamente, o que garante que eles realmente existem? É bom lembrar que, na perspectiva ontológica considerada, tais aspectos existem, assim como qualquer outro evento físico conhecido, como abstrações feitas a partir da ordem implícita geral. Os aspectos mental e material são dois aspectos importantes para Bohm, pois estão presentes nas nossas experiências cotidianas e cada um contribui para explicar a realidade de uma maneira que torna a nossa compreensão sobre ela mais abrangente. Por exemplo, para o autor, a inteligência é um processo incapaz de ser explicado pela física e biologia. Ela requer um novo modo de explicar a interação entre as coisas que não se dá de forma mecânica, mas criativa, na medida em que permite perceber novas ordens que não estavam explícitas.

A perspectiva da totalidade indivisa no movimento fluente apresentada por Bohm, e caracterizada aqui como holista, é uma perspectiva não redutiva da realidade e do ser humano. Nela, são considerados importantes tanto o aspecto material quanto o mental para explicar o comportamento humano. Um não pode ser reduzido ao outro, porque um não pode ser caracterizado como mais básico ou primordial em relação ao outro, justamente porque existem de modo entrelaçado tanto na realidade microscópica quanto na macroscópica.111 Diante disso, o problema de explicar a característica da subjetividade e da consciência do ser humano pode antever uma resposta sem necessariamente cair no problema do epifenomenismo, por um lado, ou no problema de não conseguir explicar a interação entre mente e corpo, por outro.

Mas como Bohm explica o entrelaçamento entre os aspectos mental e material da realidade?

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