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3.1 Quais as vantagens e os problemas da totalidade indivisa de David Bohm?

3.1.2 Uma proposta nem monista, nem dualista

Especialmente com base na ideia de interdependência entre propriedades (onda- partícula) dos sistemas físicos e interdependência dessas propriedades dos sistemas físicos com tudo o mais, formando uma totalidade, que consideramos a perspectiva de Bohm holista, contrapondo-a as já bem conhecidas posições monistas e dualistas. Mas, como a interdependência entre essas propriedades dos sistemas físicos pode ajudar-nos a pensar a relação entre os aspectos mental, incluindo o caráter fenomênico da experiência, e material do ser humano?

Para Bohm (1990, p. 272), as propriedades explicitadas pela teoria quântica mostram que a realidade tem qualidades que não são possíveis em termos da física clássica newtoniana e que tais qualidades são muito semelhantes ao aspecto mental e material do ser humano. A semelhança dá-se na medida em que a ‘informação’ ativa existente nos campos quânticos das partículas lembra, em muito, a atividade da ‘informação’ na experiência subjetiva dos seres humanos. Mas Bohm admite que, nos sistemas físicos microscópicos, como elétrons, a qualidade semelhante ao aspecto mental é muito primitiva e, por isso, não expressa consciência.95

A informação existente nos campos quânticos das partículas que, ao comunicarem- se com as informações existentes em outros campos quânticos, guia o movimento do elétron, expressaria um aspecto quase-mental (mind-like) da matéria, visto que a forma como os seres humanos comportam-se guiados por suas crenças, emoções e desejos96 em sua relação com os outros e o mundo é muito semelhante ao processo que produz o movimento da matéria (no nível quântico). Assim, há uma analogia muito forte na forma como se dá o movimento da matéria na realidade micro e como se dá o comportamento do ser humano na realidade

95 Bohm (1990) usa o termo em inglês mind-like para referir-se a essa propriedade das partículas atômicas que

é semelhante à propriedade mental nos seres humanos. Traduziremos essa expressão por ‘quase-mental’.

96 Bohm usa esses termos da psicologia popular sem problematizá-los. Parece que isso não é um problema para

ele, justamente por sua concepção a respeito da percepção da realidade. Devemos perceber os fenômenos de pontos de vistas diversos para ampliar a nossa visão de mundo (KRISHNAMURTI; BOHM, 1999; BOHM, 1992).

macro. Isso relaciona-se com a propriedade fundamental da realidade de ser constituída de informações ativas que se comunicam entre si.

Dessa forma, a perspectiva bohmiana afasta-se de duas das principais visões existentes sobre a realidade e o ser humano. Para Bohm, a realidade não é somente material, nem somente mental, mas ambos os aspectos contribuem para expressar a realidade. Em seu artigo “A new theory of the relationship of mind and matter” (1990), Bohm critica as teorias monistas materialistas que tentam ‘reduzir’ a realidade a alguma substância fundamental, pois, a partir de pesquisas e experimentos em física quântica, pode-se verificar que partículas podem ser criadas, aniquiladas ou transformadas em outras (BOHM, 1980, p. 62). Logo, seria problemático afirmar que a realidade se reduz a uma só substância conhecida (BOHM, 1957, p. 122-123). Ele sustenta que a realidade é ontologicamente inesgotável e, por isso, nunca completamente compreensível, dada a totalidade indivisa que subjaz a realidade que percebemos (BOHM; PEAT, 2011, p. 208-209). Para ele, o que é básico é que todas as coisas previstas por qualquer lei física tratarão de abstrações relativamente independentes (BOHM, 1980, p. 62) e tais abstrações (eventos, objetos, entidades etc.), inclusive, podem apresentar propriedades novas que surgem nesse fluxo universal da totalidade desconhecida.

Apesar de as coisas percebidas na ordem explícita serem consideradas abstrações, isto não impede a possibilidade de criar experimentos capazes de falsear determinadas previsões; portanto, a posição bohmiana está de acordo com a cientificidade exigida das teorias. Diante disso, poderíamos considerá-la, por um lado, como uma proposta não idealista. Entretanto, como as coisas que podem ser conhecidas são sempre abstrações e teorias, ou seja, modos de ver o mundo que podem ser ampliados, poderíamos, por outro lado, considerá-la de caráter idealista. Para o idealismo, de modo geral, o que existe e é conhecido é imaginações do sujeito; portanto, tem um caráter subjetivo (ABBAGNANO, 2000, p. 524). Mas idealismo é um termo inadequado para Bohm, pois, para ele, as percepções não são estritamente subjetivas, elas podem ser compartilhadas.

Levando em consideração que essa concepção baseia-se em pressupostos da física quântica e que a propriedade que as partículas têm de serem guiadas pelas informações contidas nos campos quânticos assemelha-se a uma qualidade mental, (nesse caso, um aspecto quase-mental) poderíamos considerar essa proposta como sendo de caráter fisicalista na medida em que se baseia nas propriedades fundamentais dos sistemas físicos apresentados pela teoria física mais atual. Contudo, deveríamos considerar que, nessa nova concepção de

fisicalismo,97 diferente de outras perspectivas que consideram que tudo o que existe é físico no sentido material, os sistemas físicos apresentariam tanto o aspecto material quanto o aspecto mental ou quase-mental, compreendendo-o como a potência de ação de uma informação.

De certa forma, a perspectiva bohmiana assemelha-se a um pampsiquismo,98 já que, para ele, a ordem implícita geral ou holomovimento é um fluxo de informação que está em potência e, neste sentido, refere-se ao aspecto mental ou quase-mental da realidade. Porém, esse aspecto mental não existe por si só, a não ser de forma entrelaçada com o aspecto material da realidade que é a atualização do que estava em potência. Essas semelhanças e diferenças em relação às perspectivas idealistas, pampsiquistas e fisicalistas parecem derivar da própria característica holista da proposta que estamos investigando de que tudo está envolvido em tudo.

Agora, consideramos a seguinte passagem:

[...] a realidade mais abrangente, profunda e intrínseca não é nem a mente nem o corpo, mas sim uma realidade de dimensão mais elevada, que é a base comum de ambos e cuja natureza está além de ambos. Cada um deles é então apenas uma subtotalidade relativamente independente, sendo que essa relativa independência deriva da base de dimensão mais elevada na qual a mente e o corpo são essencialmente um só (assim como verificamos que a relativa independência da ordem manifesta [explícita] deriva da base da ordem implicada [implícita]).

(BOHM, 1980, p. 265)99

A uma primeira vista, essa passagem leva-nos a ver a proposta bohmiana como um tipo de monismo neutro. Entretanto, ele alerta que se compreendermos a distinção formal mente-matéria como uma distinção de propriedades de uma mesma substância, devemos

97 Segundo Osvaldo Pessoa Júnior, em sua conferência “The colored-brain thesis” no XVIII Colóquio de

Filosofia: Filosofia e Cognição, proferida na Universidade do Vale do Rio dos Sinos, em São Leopoldo/RS,

no dia 21 de outubro de 2015, pode-se diferenciar Fisicalismo (ou Fisicismo) de Materialismo. O pressuposto básico do materialismo é que quando o corpo morre, a mente consciente desaparece; enquanto que se pode assumir como pressuposto básico do fisicalismo, a noção mais ampla que tudo o que ocorre no espaço e no tempo é físico. Diante disso, é possível ter uma posição fisicalista e não materialista, segundo a qual depois da morte do corpo, exemplo usado por Pessoa Júnior, uma fumacinha que habitava o corpo vai para Saturno (a fumacinha como uma alma/mente continuaria existindo no espaço e no tempo). Também é possível assumir uma posição materialista e não fisicalista, segundo a qual enquanto o ser humano está vivo, compreende-se que a sua mente pode viajar por outras dimensões, mas depois da morte física, ela desaparece. Essa distinção parece-nos muito apropriada e interessante. Inclusive, a posição holista de Bohm seria fisicalista desde esse modo de compreender, porque, para ele, as propriedades mentais existem no tempo e no espaço, na medida em que existem entrelaçadas as propriedades físicas dos sistemas, guiando o seu movimento/comportamento. Como se dá tal entrelaçamento, explicaremos a seguir.

98 Atmanspacher (2014, p. 265) afirma que a perspectiva bohmiana pode ser relacionada com o pampsiquismo,

assim como a perspectiva de Chalmers e outras.

99 Essa passagem encontra-se na página 225 da versão traduzida, por isso o uso da expressão ‘ordem implicada’

considerar de que maneira esses aspectos relacionam-se. Se considerarmos que um aspecto causa o outro, então, no fundo, estaríamos compreendendo um como primário em relação ao outro (BOHM; PEAT, 2011, p. 198). Mas, para Bohm, não haveria um aspecto mais básico, os aspectos mental e material coexistem, na realidade, de forma entrelaçada, ou seja, um depende do outro para existir. Essa perspectiva não pode ser compreendida como um tipo de monismo neutro, justamente porque, apesar da semelhança entre as propostas de que a realidade última é neutra e tem propriedades mentais e materiais, na perspectiva da totalidade indivisa, tal realidade não se reduz a uma única substância, cujas características já são completamente conhecidas e, diferentemente, na perspectiva bohmiana, poderiam surgir em qualquer momento sistemas físicos desconhecidos e/ou propriedades diversas das que existem hoje, mas que, ainda assim, contribuiriam para o modo de ser do todo considerado, pois as informações de seu campo quântico interfeririam nas informações das coisas ao seu redor. A realidade não se reduz, desse modo, a algo determinado, sendo compreendida como a totalidade de tudo o que existe no fluxo constante de movimento, considerando também que cada parte desse todo contém em si novamente o todo.100

Além disso, e mais fortemente, Bohm critica o dualismo cartesiano, pois, nessa concepção, seria impossível entender como pode haver uma interação entre mente e corpo, uma vez que as características mentais e materiais seriam completamente distintas. Para ele, uma vez concebida uma distinção entre mente e matéria, se ela for substancial, fica impossível supor uma relação entre elas. Assim, a nova teoria da relação mente e matéria apresentada por Bohm diverge radicalmente da concepção dualista cartesiana, pois os aspectos mental e material da realidade não existem de forma independente um do outro. Para ele, tais aspectos existem como partes de um mesmo processo e só teoricamente podem ser analisados separadamente. Quando considerados na ordem explícita, os aspectos mental e material podem até ser concebidos como diferentes, mas ainda assim devem ser entendidos como interdependentes ou entrelaçados (BOHM, 1980, p. 68). Isso se dá, pois ambos compartilham a característica da ‘informação’ que expressa uma determinada ordem, o que permite compreendê-los como semelhantes entre si e, portanto, aceitar o fato que um participa da existência do outro.101

100 Isso é o que caracteriza a perspectiva holográfica de sua teoria. Sobre o que significa ‘holograma’, ver nota

102 a seguir.

101 Vale considerar que Osvaldo Pessoa Júnior (2016a), em “Por que há tantas interpretações da teoria

quântica?”, interpreta a proposta de Bohm como ontologicamente dualista, pois a sua interpretação da teoria quântica considera como entidades básicas que constituem a realidade tanto as partículas, quanto as ondas.

Outra interpretação um pouco divergente da nossa é a de Harald Atmanspacher (2014), como já adiantamos na nota 87, que considera a proposta de Bohm um monismo de aspecto holístico. Atmanspacher (2014) faz uma clara e sintética apresentação da proposta de Bohm como uma versão do naturalismo que vai além da dualidade do mental e do físico, caracterizada como um monismo holístico, no qual a base fundamental não é tanto a substância, mas o processo (ATMANSPACHER, 2014, p. 256-257). Concordamos perfeitamente com essa ênfase dada ao modo de constituição do que existe. Atmanspacher (2014, p. 257) ressalta muito bem ainda que os diversos níveis de ordem implícita são dinâmicos e, em si mesmos, neutros; a ordem implícita não é nem mental nem material, mas esses aspectos emergem dela na ordem explícita. O caráter holista aparece como um adjetivo do monismo de aspecto, para caracterizar o tipo de relação entre níveis. Porém, como na proposta da totalidade indivisa, o todo constituído por um fluxo constante de envolvimento é a realidade que subjaz, essa concepção é melhor caracterizada como holista do que monista. O que é enfatizado, aqui, não é a noção de ‘unidade’ do ser indiviso, mas de “totalidade” que se constitui no envolvimento e desdobramento. Compreendê-la como um monismo de aspecto holista é colocar a ênfase em algo diferente; não é um equívoco total, certamente, mas também não é a melhor forma de apresentar a proposta bohmiana.

Dessa forma, para Bohm, os aspectos mental e material da realidade são essencialmente um só e não podem ser compreendidos como coisas completamente distintas, independentes e existindo separadamente um do outro. Ao contrário, um e outro só existem quando considerados em contraponto, no sentido de que um contribui para a existência do outro.

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