• Nenhum resultado encontrado

5.2 O que estamos compreendendo por sistema?

5.2.1 Qual o tipo de conexão entre os níveis num sistema?

Temos sugerido que a consciência fenomênica estaria relacionada a um nível de organização (ordem implícita) mais complexo e sutil que surge a partir de um nível de organização menos complexo denominado protofenomênico. Mas a que se referem esses níveis?

Segundo Bohm (1990, p. 282-283, tradução nossa, grifo nosso),

É interessante nesse contexto considerar o significado de sutil, que, de acordo com o dicionário, é ‘rarefeito, altamente refinado, delicado, elusivo, indefinível’. Mas ainda mais interessante é considerar sua raiz latina, sub-texere, que significa ‘finamente tecido’. Isso sugere uma metáfora para o pensamento como uma série de redes mais e mais justamente tecidas. Cada uma pode ‘apanhar’ um certo conteúdo de uma ‘fineza’ correspondente. As redes mais finas podem não apenas mostrar os detalhes da forma e estrutura do que é ‘apanhado’ nas redes mais grossas; elas também podem reter um conteúdo adicional que está implícito nestas últimas. Com isso, nós ampliamos a noção de ordem implícita, como abrangendo

uma série de níveis inter-relacionados nos quais os níveis mais sutis - isto é, ‘mais

finamente tecidos’, incluindo pensamento, sentimento e reações físicas - tanto

envolvem quanto desdobram aquelas que são menos sutis (isto é, ‘mais

grosseiramente tecidas’).164

Consideramos que o nível menos sutil seria o nível protofenomênico, enquanto o nível de maior sutileza estaria relacionado ao nível fenomênico. Mas poderíamos considerá- lo como a mente e aquele como o cérebro? Não, pois apesar de Bohm afirmar que “Nesta série, o lado mental corresponde, é claro, ao que é mais sutil e o lado físico ao que é menos

164 No original: “It is interesting in this context to consider the meaning of subtle which is, according to the

dictionary ‘rarefied, highly refined, delicate, elusive, indefinable’. But it is even more interesting to consider its Latin root, sub-texere, which means ‘finely woven’. This suggests metaphor for thought as a series of more and more closely woven nets. Each can ‘catch’ a certain content of a corresponding ‘fineness’. The finer nets cannot only show up the details of form and structure of what is ‘caught’ in the coarser nets; they can also hold within them a further content that is implied in the latter. We have thus been led to an extension of the notion of implicate order, in which we have a series of inter-related levels in which the more subtle—i.e. ‘the more finely woven’ levels including thought, feeling and physical reactions—both unfold and enfold those that are less subtle (i.e. ‘more coarsely woven’).”

sutil”, ele, em seguida, acrescenta: “E cada lado mental por sua vez torna-se um lado físico na medida em que se move em direção a uma maior sutileza.”165

É importante notar que os níveis mais sutis referem-se ao lado mental porque a informação ativa encontra-se em ‘potência’, enquanto os menos sutis referem-se ao lado material, uma vez que se refere à informação ativa em estado atual. Mas, como vimos, uma vez que uma potencial atividade da informação pode atualizar-se, um lado mental pode tornar-se um lado físico. Para Bohm, quando tratamos de pensamentos, sentimentos, reações físicas, etc. estamos nos referindo a ordens implícitas que têm aspectos mental e material.

Entretanto, parece plausível supor que o cérebro organizado de uma determinada forma complexa no ser humano é o aspecto material entrelaçado ao aspecto mental da consciência, seja ela psicológica ou fenomênica. Sendo assim, para esse nível mais complexo existir, é necessário um nível menos complexo, tal como a organização das células (nesse caso, dos neurônios), que constituiriam o nível protofenomênico.

Na perspectiva que estamos defendendo, o que seria imprescindível, portanto, para existir consciência, seria um nível de organização complexo. Assim sendo, o corpo biológico humano seria uma organização muito complexa constituída pelo entrelaçamento de um cérebro e uma mente igualmente complexos.166 Mas, aqui, é importante perceber a mudança na forma de conceber a conexão mente-corpo, consciência-cérebro. Nas perspectivas reducionistas, a mente emerge ‘do’ corpo, a consciência sobrevém ‘ao’ cérebro; mas, na perspectiva não-reducionista que estamos defendendo, a mente emerge ‘com’ o corpo e a consciência fenomênica sobrevém, não ao cérebro, mas de um nível de organização menos complexo que seria dos neurônios (incluindo todas as partículas e subpartículas atômicas) e a sua conexão com outras estruturas do corpo e com o mundo.167

Voltando à menção feita na citação anterior sobre o tipo de relação de envolvimento e desdobramento entre os níveis, Bohm (1990, p. 283-284, tradução nossa, grifo nosso) acrescenta:

165 Conforme o original: “In this series, the mental side corresponds, of course, to what is more subtle and the

physical side to what is less subtle. And each mental side in turn becomes a physical side as we move in the direction of greater subtlety.”

166 Essa perspectiva parece ter alguns pontos em comum com uma proposta funcionalista, que compreende a

mente como uma organização, que diante de certos inputs, e das relações com outras partes internas, produz determinados outputs. A diferença é que, para a nossa perspectiva, tal organização não se refere apenas à mente, mas ao ser humano como um todo. Além disso, assim como os inputs, a partir de suas relações com outros estados internos, determinam os outputs, eles, por sua vez, interfeririam nas relações internas e nos inputs futuros, através de causação circular. Mas isso pode ser melhor explorado em outro momento.

O conteúdo de nossa própria consciência é então alguma parte de todo esse processo. Ele está implícito de tal forma que uma qualidade quase-mental [mind-

like] rudimentar está presente até mesmo no nível das partículas físicas, e à medida

que nós vamos para níveis mais sutis, esta qualidade quase-mental torna-se mais forte e mais desenvolvida. Cada tipo e nível de mente pode ter uma relativa autonomia e estabilidade. Pode-se descrever o modo essencial de relacionamento

de tudo isso como participação, lembrando que esta palavra tem dois significados

básicos, participar de e tomar parte em. Através do envolvimento, cada tipo e nível

de mente relativamente autônomo, em um ou outro grau, participa do todo. Por

meio disso, participa de todos os outros [tipos e níveis de mente] ‘coletando’ informação. E através da atividade desta informação, eles [cada tipo e nível de mente] de modo semelhante tomam parte no todo e em cada parte. É neste tipo de atividade que o conteúdo dos níveis mais sutis e implícitos é desdobrado (por exemplo, como o movimento da partícula que desdobra o significado da informação que está implícito no campo quântico e como o movimento do corpo que desdobra o que está implícito em níveis mais sutis de pensamento e

sentimento, etc.).168

Bohm considera que existem tipos e níveis diferentes de mente, relacionadas aos graus de sutileza e complexidade da informação ativa e, apesar de ele reconhecer que existe uma relativa autonomia entre esses níveis, existe o mesmo tipo de conexão de participação entre os níveis e entre os aspectos mental e material na informação ativa (participação em um mesmo nível). Consideramos isso um ponto fraco de sua proposta, pois se existe uma autonomia maior entre os níveis, talvez seja melhor caracterizar o envolvimento que se dá entre eles de uma forma um pouco diferente. Ainda que, na realidade, segundo a perspectiva holista de Bohm, tudo esteja envolvido em tudo, se existe um grau de independência um pouco maior entre algumas coisas, parece válido caracterizar como um tipo diferente de envolvimento.

Talvez o melhor esclarecimento feito por Bohm (1980, p. 227) sobre o processo de ‘envolvimento e desdobramento’ que existe das coisas no todo seja um exemplo de um dispositivo composto por dois cilindros de vidro concêntricos, um dentro do outro, com um fluido altamente viscoso (como glicerina) entre eles. O cilindro de fora gira lentamente de modo que a difusão do líquido viscoso pode ser negligenciada. Uma gota de tinta insolúvel depositada no fluido, à medida que o cilindro externo é acionado numa direção, transforma-

168 No original: “The content of our own consciousness is then some part of this over-all process. It is thus

implied that in some sense a rudimentary mind-like quality is present even at the level of particle physics, and that as we go to subtler levels, this mind-like quality becomes stronger and more developed. Each kind and level of mind may have a relative autonomy and stability. One may then describe the essential mode of relationship of all these as participation, recalling that this word has two basic meanings, to partake of, and to take part in. Through enfoldment, each relatively autonomous kind and level of mind to one degree or another partakes of the whole. Through this it partakes of all the others in its ‘gathering’ of information. And through the activity of this information, it similarly takes part in the whole and in every part. It is in this sort of activity that the content of the more subtle and implicate levels is unfolded (e.g. as the movement of the particle unfolds the meaning of the information that is implicit in the quantum field and as the movement of the body unfolds what is implicit in subtler levels of thought, feeling, etc.).”

se num segmento de linha que eventualmente torna-se invisível. Nesse momento, a gota de tinta é considerada uma ordem envolvida, implícita. Porém, quando o cilindro é girado na direção oposta, a forma de linha surge novamente e de repente torna-se visível como uma gota. Para Bohm, ela é essencialmente a mesma que foi colocada no fluido no início do experimento, a mesma ordem que foi envolvida e ficou invisível (mas não deixou de existir), depois foi desdobrada e tornou a ficar visível. Nesse caso, o sistema todo do experimento poderia ser considerado uma ordem mais sutil e complexa capaz de envolver, mas também de desdobrar ordens menos sutis, como a gota de tinta insolúvel.

Porém, apesar desse exemplo ser muito esclarecedor para compreender o que é uma ordem implícita/envolvida e uma ordem explícita/desdobrada, tal exemplificação parece sugerir que as coisas existentes na realidade são reversíveis. A ideia de reversão, embora pareça adequada para descrever alguns tipos de fenômenos, tal como o apresentado anteriormente, não serve para referir-se a fenômenos complexos que não podem ser completamente separados do processo histórico, tal como o caso do universo como um todo e, em especial, dos organismos vivos. Notamos, quanto a isso, um ser humano adulto, por exemplo, só chega a ser o que é se passar pelo processo de crescimento que começa no embrião, passa pela infância e adolescência, até chegar a fase adulta (BOHM, 1957, p. 161- 164). Tal processo, na medida em que se desenvolve, torna-se mais complexo tanto

quantitativa quanto qualitativamente. Portanto, o processo de envolvimento e

desdobramento que faz surgir um ser humano não pode ser compreendido como reversível, tal como o exemplo da gota de tinta.

Bohm (1980, p. 74-75) explica que o processo no qual o pensamento e o meio ambiente em geral estão indissoluvelmente conectados é de natureza cíclica que se abre em

espiral. Tal movimento espiralado da conexão entre pensamento (memória) e meio ambiente

geral “[...] inclui também a comunicação entre as pessoas (que fazem parte do ambiente umas das outras), aprofundando-se indefinidamente no passado.”169 O processo do pensamento não pertence a nenhuma “[...] pessoa, lugar, tempo ou grupo de pessoas em particular”,170 mas a todo o processo. Essa referência a um movimento cíclico/espiralado do processo de envolvimento entre pensamento e ambiente natural e cultural parece ser o mais

169 Conforme o original: “This cyclical (or spiral) movement, in which thought has its full actual and concrete

existence, includes also the communication of thoughts between people (who are parts of each other’s environment) and it goes indefinitely far into the past.”

170 Conforme o original: “Thus, at no stage can we properly say that the overall process of thought begins or

ends. Rather, it has to be seen as one unbroken totality of movement, not belonging to any particular person, place, time, or group of people.”

próximo que Bohm chega de explicitar melhor a relação entre diferentes níveis de sutileza de ordem.

Para refletir sobre isso, podemos pensar qual a relação desse movimento espiralado/cíclico na conexão entre pensamento e meio ambiente na proposta de Bohm (1980) com a causalidade circular entre os níveis num sistema dinâmico de que tratam Haselager e González (2002).

5.2.1.2 Causalidade circular entre os níveis de organização em um sistema

Juarrero (1999, p. 130) afirma que, na Teoria dos Sistemas Dinâmicos, cunhou-se o termo heterarquia para referir-se às relações interníveis fluindo em ambas as direções, da parte para o todo (bottom-up) e do todo para as partes (top-down). Essas relações diferenciam-se daqueles tipos de causação ascendente em contextos reducionistas, pois, nesse caso, considera-se apenas a ação dos componentes do nível microscópico em relação ao resultado final no plano macroscópico e exclui-se a possibilidade de uma ação retroativa do efeito sobre a causa. Da mesma forma, elas diferenciam-se da causação descendente que desconsidera a influência do nível micro em relação ao macro (Cf. HASELAGER; GONZÁLEZ, 2002, p. 227).

As relações interníveis nos sistemas dinâmicos, de acordo com Haselager e González (2002, p. 226-227), são um tipo de causalidade circular que

[...] caracteriza aqueles processos em que: (a) o efeito de uma causa afeta a sua própria causa, alterando-a e sendo alterado por ela simultaneamente e, mais importante, (b) existe uma interação coletiva entre os elementos básicos, no plano microscópico, a qual possibilita a emergência de um padrão no plano macroscópico denominado parâmetro de ordem das variáveis coletivas.

Esse processo, assim como o movimento cíclico/espiralado do qual trata Bohm, permite a emergência de novidades qualitativas. Para Haselager e González (2002, p. 227), a causalidade circular171 explicaria “[...] ‘como a mente adquire seus músculos’ [...] e se corporifica no sujeito da auto-organização”. Essas expressões refletem uma interação entre mente e corpo semelhante tanto na proposta holista que estamos apresentando, quanto na teoria dos sistemas dinâmicos. Conforme Bohm, há a ideia que o movimento é espiralado e

171 É importante notar a diferença desse tipo de determinação para a determinação estrutural ou totalista, que

citamos no capítulo 4, que sustenta a determinação das partes pelo todo; nesta última, parece que as partes não determinam o todo, de modo que ele pode retroagir sobre elas sucessivamente.

a justificativa disso parece ser o fato que esse processo complexifica-se - o que também está implicado na ideia da causalidade circular. Portanto, não parece haver divergência significativa entre essas perspectivas.

Sobre a relação interníveis, Bohm afirma, conforme já se mencionou, que existe uma “[...] realidade de dimensão mais elevada (higher-dimensional) que se projeta em elementos de dimensão menos elevada (lower-dimensional) [...]”172 (BOHM, 1980, p. 265, grifo nosso). Essa “projeção” relaciona-se com a sua ideia de que o todo está contido nas partes e que cada parte está relacionada as outras de modo que a melhor representação de uma totalidade indivisa, ou de um sistema, é a imagem produzida por um holograma. Esse instrumento ‘escreve o todo’ em cada parte dele próprio, de modo que se cada parte desse todo for iluminada, será possível visualizar a estrutura do todo novamente, de forma menos nítida e detalhada (Cf. BOHM, 1980, p. 183-184). A ideia de holograma é interessante, mas não pode ser compreendida de uma perspectiva reducionista, segundo a qual se o todo for destruído, como cada parte contém o todo, tal parte poderá ser usada para criar o todo novamente. Quando o todo desintegra-se, as partes simultaneamente modificam-se. Como vimos anteriormente, para Bohm, alguns fenômenos parecem ser reversíveis, mas seria mais adequado considerá-los irreversíveis. Isso porque partes que se entrelaçam e constituem sistemas, depois de desintegradas, continuarão a influenciar-se por um tipo de conexão não- local existente entre elas, ainda que de forma não considerável de um ponto de vista prático.

Juarrero (1999, p. 240) afirma que a melhor forma de explicar as relações entre parte- todo e todo-parte é por meio da hermenêutica, pois embora ela não explique por dedução, pode, ainda assim, fornecer alguma clareza sobre o modo como algo aconteceu em sua dinâmica das interações confusas. A hermenêutica parece realmente ser muito adequada para explicar a ação humana, uma vez que, conforme expõe Juarrero (1999, p. 240, tradução nossa),

Tais explicações esclarecem e dão sentido ao comportamento por meio do suprimento de descrições ricas e vívidas de toda a trajetória precisa e detalhada todo-parte e parte-todo que o comportamento do agente toma, incluindo o contexto temporal, físico, social, cultural no qual o agente estava incorporado e no qual sua

ação ocorreu.173

172 Esta citação foi extraída da página 225 da tradução de Mauro de Campos Silva.

173 No original: “Such explanations explain and make sense of behavior by supplying rich, vivid descriptions

A hermenêutica, portanto, parece ser um recurso metodológico interessante para explicar, num plano epistemológico ou linguístico, como se dá a ação humana. Mas, de modo semelhante a Juarrero (1999), em seu livro Dynamics in action,174 no qual analisa como se dá a ação humana, a investigação feita nesta tese sobre a relação mente-corpo e um suposto poder causal dos qualia no comportamento humano dá-se de um ponto de vista ontológico.

Outro ponto interessante apresentado por Juarrero (1999, p. 132) é que há um controle distribuído no sistema nervoso central. Não há uma unidade que controla o todo, o que existe é uma estrutura de processo, de redes autocatalíticas175 que são padrões distribuídos de relações dinâmicas. Isso sugere que o sistema nervoso central como um todo é que dirige os processos auto-organizados mais complexos do ser humano.176 Segundo Juarrero (1999, p. 143), a hierarquia neurológica se auto-organiza progressivamente em níveis mais elevados de organização autoarranjada. A autoconsciência e a ação intencional refere-se a constrangimentos de segunda-ordem impostos pelos níveis superiores sobre os níveis inferiores.

Tais constrangimentos constituiriam informações ativas compartilhadas pelos níveis inferiores e superiores de modo que haveria uma relativa autonomia entre eles. Esta relativa autonomia estaria relacionada às informações ativas não compartilhadas entre si, mas ainda assim compartilhadas com outras ordens, o que lhes proporcionaria novidades em suas organizações. Parece que quanto mais informações compartilhadas entre ordens diferentes, maior pode ser a diversidade dos padrões existentes e, consequentemente, maior a possibilidade de algum deles se atualizar.

Documentos relacionados