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1.1 O que caracteriza a mente?

1.1.4 Que propriedades os estados mentais têm que resistem à redução ontológica?

David Chalmers, em seu livro The conscious mind: in search of a theory of conscious

experience, publicado originalmente em 1995, esclarece com maestria o que, de fato, está

em jogo quando nos questionamos sobre a mente. A sua preocupação é distinguir a questão filosófica de fundo de questões filosófico-científicas, sem perder de vista a relação entre elas. Para ele, investigar (1) como surgem as sensações e (2) qual o seu papel funcional no comportamento são investigações sobre a mente, porém sob o ponto de vista filosófico- científico. Em grande parte, as Ciências Cognitivas, a Psicologia, as Neurociências etc.

conseguiram grandes progressos nessas pesquisas. Porém, investigar (3) a razão de toda estimulação associada com a dor ser acompanhada por uma experiência de dor é algo diferente… é investigar a mente de um ponto de vista filosófico-metafísico. E é aí que está o ‘problema difícil da consciência’ ou o real problema a investigar sobre a relação mente- corpo (CHALMERS, 1996, p. 23). Para Chalmers (1996), é óbvio que emoções e crenças estão relacionadas com o nosso comportamento, mas o problema maior é explicar por que nossas emoções, crenças, sensações etc., por exemplo, são acompanhadas por uma experiência qualitativa subjetiva consciente, ou seja, pelos qualia.33

Poderíamos complementar esse problema difícil com a questão:34 há uma explicação para os qualia terem uma influência nas nossas escolhas, nos nossos comportamentos em geral?, haja vista que a intensa experiência prazerosa durante a apreciação de uma música provavelmente faz com que eu busque escutar a mesma música novamente na tentativa de repetir a mesma experiência prazerosa. O contrário também se verifica, por exemplo, quando experimento um alimento amargo demais para o meu paladar ocorre uma experiência ruim que provavelmente fará com que eu evite comer o alimento novamente. O que explicaria a suposta influência desses qualia no meu comportamento?35

33 Segundo Tye (2016), o uso mais amplo do termo qualia deriva da noção de quale apresentada por Peirce,

em 1866, para se referir a um caráter fenomênico que pressupõe focar a atenção, estar consciente (aware) de certas qualidades experienciadas. Mas existem ainda outros três usos mais restritos do termo: 1. Qualia como propriedades dos dados sensórios, influenciado pelo uso desse termo por Lewis, em 1929, para se referir a propriedades dos dados dos sentidos que são intrínsecas, acessadas conscientemente, características não- representacionais dos dados dos sentidos e de objetos fenomênicos não-físicos; 2. Qualia como propriedades intrínsecas não-representacionais, semelhante à 1, mas que não pressupõem o endosso de uma Teoria dos Dados dos Sentidos; Nagel (1974) e Block (1990) são autores que seguem esse uso; e 3. Qualia como propriedades intrínsecas, não-físicas e inefáveis, que seria o conceito criticado por Dennett (1988; 1991) ao defender que existem experiências conscientes, mas não qualia neste sentido. Relacionado a esses usos podemos considerar, portanto, que existem, em geral, três perspectivas à respeito dos qualia: as reducionistas, as eliminativistas e as não-reducionistas. Diversos autores, tal como Place (1956), Smart (1959), Ryle (2001), Dennett (1988; 1991), tentam reduzir estados mentais aos estados físicos, incluindo aí os qualia. Já o casal Churchland defende a eliminação completa de todo e qualquer conceito mental, enquanto que diversos outros autores defendem que os conceitos mentais relacionados aos qualia sejam irredutíveis — ver Block (1980), Shoemaker (1982), Jackson (1986) e Chalmers (1996). Veremos que Kim (2000), apesar de propor uma perspectiva não-reducionista do mental, ainda é um eliminativista quanto aos qualia. A perspectiva que será defendida nesta tese, com base na concepção de Bohm (1980; 1990) sobre a participação mente-corpo, caracteriza-se por ser não-reducionista também, mas compreende que os qualia só são irredutíveis porque eles emergem de um nível de organização que já apresenta aspecto mental irredutível.

34 A ser investigada no segundo e terceiro capítulos desta tese.

35 Poder-se-ia questionar sobre a diferença de experiências subjetivas que nos fazem reagir como, por exemplo,

quando suamos e não temos consciência da febre, e experiências subjetivas conscientes que estariam mais relacionadas aos qualia, enquanto um conteúdo consciente de nossas experiências. Como argumentaremos, não parece haver, desde a perspectiva de Bohm, uma diferença de natureza entre essas experiências privadas, elas parecem se diferenciar em questão de grau de complexidade.

Thomas Nagel (1974, p. 435-436) já havia mostrado que, para refletirmos sobre as questões realmente interessantes sobre a mente, não podemos deixar de considerar a ‘consciência’ no sentido de investigar ‘como é ser como algo’. Isso refere-se ao caráter subjetivo da experiência consciente, ponto de vista acessado apenas em primeira pessoa. Com base nisso, para Chalmers (1996, p. 4-5), ser consciente é ter qualia, ou seja, é ter um sentimento qualitativo em relação à experiência associada. O problema que ainda precisamos responder, retomando a questão (3) anteriormente citada é: por que os processos físicos são acompanhados por uma experiência consciente? Essa questão refere-se à investigação sobre o aspecto fenomênico da mente, o qual caracteriza a mente pelo que ela sente36 ou como as coisas se parecem para nós. Isso implica explicar por que as experiências visuais, auditivas, táteis, olfativas, gustativas, de dor, de quente, de frio, de imaginações, de emoções, por exemplo, são acompanhadas por experiências qualitativas subjetivas.

Para Chalmers, a Psicologia, as Ciências Cognitivas, entre outras, já dedicaram-se a investigar a mente, mas até então apenas debruçaram-se a investigar o aspecto psicológico sobre o processo causal do comportamento, caracterizando a mente pelo que ela faz. O que implica explicar objetivamente, por exemplo, os estados de alerta, de atenção, de introspecção, de reportabilidade, de autoconsciência, de controle voluntário e de estar ciente de algo, questões semelhantes às (1) e (2) já mencionadas. Esse aspecto psicológico da mente é importante, segundo Chalmers (1996, p. 11; p. 22), porém não é tudo que precisamos saber sobre a mente; pois os aspectos fenomenais e psicológicos juntos é que ajudam a explicar o mental37 e, por enquanto, ainda não temos uma teoria fundamental que explique satisfatoriamente o aspecto fenomênico da mente.

36 Conforme argumentaremos no terceiro capítulo desta tese, a partir da perspectiva de Bohm, podemos

compreender os qualia como a consciência de um conteúdo da percepção que se refere a uma ordem implícita

imediatamente “sentida” (Cf. BOHM, 1980, p. 253; 2011, p. 213). Mas diferentemente de outras perspectivas,

a partir da perspectiva holista de Bohm, defenderemos que os qualia seriam uma característica do mental que não é independente da matéria, ela manteria apenas uma relativa independência dos processos corporais. Como esclareceremos adiante, Bohm não trata da consciência fenomênica ou dos qualia, mas a partir de seus escritos é possível perceber que ele trata de algo que tem características que seriam atribuídas aos qualia quando trata da percepção da música e da visão. A perspectiva defendida por nós a respeito dos qualia, a partir da perspectiva de Bohm sobre a participação mente-corpo e a totalidade indivisa, teria algumas semelhanças com a perspectiva representacionalista fraca de Chalmers sobre a consciência fenomênica. Para ele, os qualia referem-se a um conteúdo representacional que se dá na medida em que o indivíduo está inserido num meio ambiente (Cf. TYE, 2016). E a conexão do indivíduo com seu meio influencia no conteúdo experienciado, que, a partir da perspectiva de Bohm (1980, p. 261), não seria apenas representativo do mundo, mas também o constituiria, além de ser importante na determinação do comportamento e constituição humana. Chalmers (1996) não se compromete com o poder causal da consciência fenomênica, enquanto que a posição que estamos defendendo, a partir da perspectiva de Bohm, compreende os qualia como tendo poder de interferir no comportamento e constituição do ser humano.

37 Concordamos com Chalmers que a consciência fenomênica é o aspecto mental por excelência, mas

continuaremos tratando da mente em geral, pois, como defenderemos no capítulo 3, existe um aspecto mental que existe em toda a realidade e que é irredutível.

Assim, para Chalmers, a mente caracteriza-se pelo conjunto de estados relacionados a desejos, emoções, crenças, autoconsciência, estados de alerta, de atenção etc. que podem ser investigados por seu aspecto psicológico relacionado ao seu papel causal no comportamento; geralmente, baseado em investigação científica que reduz a mente a processos físicos do corpo. Além do aspecto psicológico, a mente caracteriza-se por seu papel fenomênico relacionado ao aspecto qualitativo subjetivo da consciência e do por que esses aspectos acompanham os processos mentais-físicos do corpo, investigação filosófico- metafísica que compreende a mente como um processo não redutível aos processos físicos do corpo.

Diante da avaliação de que as propostas reducionistas e eliminativistas não lograram êxito completo e supondo, com Chalmers, que o ser humano possui um aspecto mental irredutível ao físico, a presente tese sobre o problema mente-corpo pretende, primeiramente, apresentar, por meio da análise da posição de Bohm, uma possível resposta para a pergunta: de que maneira os diversos processos psíquicos são acompanhados por experiências qualitativas? A partir dessa resposta, propomos refletir como poderíamos responder à pergunta: o que explicaria a suposta influência dos qualia no comportamento humano?38

No entanto, será que realmente existe esse aspecto da mente que estamos chamando de consciência fenomênica relacionada aos qualia?

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