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O pretérito perfeito composto no Português e em outras línguas

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 46-53)

2. O PRETÉRITO PERFEITO COMPOSTO

2.3. O pretérito perfeito composto no Português e em outras línguas

A primeira ideia que tive para fazer este trabalho era pesquisar e comparar o uso do PC e os aspectos veiculados a ele no português do Brasil (PB), na variante mexicana e castelhana do espanhol. Entretanto, ao tentar compor o corpus do PB para a pesquisa, não foi possível encontrar ocorrências suficientes do PC para que a pesquisa fosse realizada. Por esse motivo, optamos minha orientadora e eu por retirar o português da análise. Contudo, como este é um

61 Akerberg (2008), Carrasco Gutiérrez (2008). 62 Voltaremos a esse tema mais detalhadamente.

63 É interessante relembrar que segunda a Gramática Gerativa, a Faculdade da linguagem é composta pelo léxico (dicionário mental das formas da língua) e pelo sistema computacional.

trabalho feito no Brasil, é interessante pelo menos na parte teórica expor de forma um pouco mais detalhada o uso do PC em português. Uma das principais causas para isso, é que professores de espanhol como língua estrangeira possam ter mais informações sobre as diferenças e semelhanças desse tempo verbal nas duas línguas, dando foco também às leituras aspectuais veiculadas ao PC.

Sobre o PC no português do Brasil, Cunha (2001) afirma que:

Ao contrário do que ocorre em algumas línguas românicas, há em português clara distinção no emprego das duas formas do PRETÉRITO PERFEITO: a SIMPLES e a COMPOSTA, constituída do presente do indicativo do auxiliar ‘ter’ e do particípio do verbo principal. (...)

A FORMA COMPOSTA exprime geralmente a repetição de um ato ou sua continuidade até o presente em que falamos.

Cunha (ibidem), ao comparar o português com as outras línguas românicas, faz menção àquelas que, atualmente oscilam entre as formas simples e compostas de passado e àquelas onde, inclusive, já houve neutralização dos usos dessas formas, ou seja, que utilizam o PC em contextos em que antes só se usava o pretérito simples, como, por exemplo, no francês falado.

Segundo Ilari (2001),

1. O passado composto português exprime iteração, cf.; (1) Ele tem-nos visitado várias vezes / * uma vez.

2. exprime iteração independentemente de estar presente na oração um advérbio indicando frequência64;

(2) Ele nos visitou. (= uma vez ou várias vezes) (3) Ele nos visitou várias vezes. (= várias vezes) (4) Ele nos tem visitado. (= mais de uma vez)

3. assume eventualmente um valor de continuidade: (5) Tenho estado doente.

4. diz respeito a um período que começa no passado, mas não se conclui no passado; (6) Le Monde tem sido entregue em São Paulo pelo correio aéreo desde 1927. / * desde 1927 até 1968.

5. a distinção de um valor durativo e um valor iterativo tem a ver com características aspectuais do predicado, sendo relevante a Aktionsart (aspecto lexical) do verbo;

64 O autor compara o uso da forma simples com o da forma composta quando há na frase um advérbio indicando freqüência.

(7) O Fernando tem publicado na série “Novos Escritores” da Editora Ática. (8) A este governo tem faltado vontade política para a solução dos problemas.

6. o passado composto é inadequado não só para descrever fatos que ocorreram uma única vez, mas ainda para descrever a repetição, se se quer ao mesmo tempo explicitar quantas vezes o fato se repetiu;

(9) *Eles têm vindo três vezes (cf. fr. Ils sont venus trois fois, it. Sono venuti tre volte). (10) Eles têm vindo muitas vezes / milhares de vezes.

Como é possível observar, em todos os exemplos do autor, nota-se que o PC no português está relacionado à noção de iteratividade ou duratividade.

A perífrase [Ter+Particípio] no presente do indicativo, segundo Travaglia (1981, p.186), através dos exemplos abaixo, é definida como sendo uma construção verbal que marca o aspecto imperfectivo, o não acabado e o iterativo:

a) Meu irmão tem mandado notícias. (imperfectivo, iterativo, não-acabado).

b) Tenho amado você desde que te conheci. (imperfectivo, cursivo, durativo, não-acabado). Ao tentar classificar aspectualmente o PC, Beline (2005 apud Fonseca, 2006) apresenta o quadro abaixo:

Imperfectivo João tem trabalhado pela modernização da área. Critério qualitativo

Perfectivo Acuda-me, senhor! Aliás, estou perdido e Henriqueta imolada! A mãe tem decidido* que receba o Pancrário.

Critério quantitativo Iterativo João tem viajado de carro.

* Texto de 1925, perífrase [Ter+Particípio] com valor perfectivo, uso antigo e raro na atualidade.

Como é possível notar a partir das citações acima e das exposições acerca dos aspectos perfectivo e Perfeito, o PC do português está veiculado ao aspecto perfeito continuativo, que possui noção aspectual de iteração e, em alguns casos, duração. Na nossa língua, o aspecto resultativo não é mais caracterizado por essa perífrase, a não ser que concordemos o particípio em gênero e número com o objeto (Tenho a roupa lavada).

Ao analisar o uso do PC, Bergareche (2008), defende que a diferença de uso desse tempo verbal entre as línguas românicas baseia-se em três questões: a) a extensão do uso de um auxiliar alternativo esse para verbos intransitivos; b) a concordância do particípio com o

complemento direto (comum da perífrase resultativa original do latim); c) a substituição nos tempos compostos do auxiliar habere por um auxiliar derivado de tenere.

Segundo o autor, a perífrase habere + particípio estava limitada, originalmente, apenas a verbos transitivos e só depois, a medida que se desenvolvia seu valor de aspecto Perfeito, foi ampliando seu uso a outros tipos de verbos. Entretanto, já na Idade Média havia o uso de esse + particípio com verbos intransitivos.

Atualmente, o catalão, romeno, espanhol, os dialetos do sul da Itália utilizam apenas a perífrase com habere. Já em italiano, a construção com habere é reservada às construções com verbos transitivos. Todos os outros tipos de verbos formam o PC com o auxiliar esse (essere). Há um pequeno grupo de verbos que podem estar acompanhados do auxiliar habere ou esse. Observe os exemplos abaixo:

a) He legit un llibre. (Li um livro65.) - Catalão. b) Am cântat. (Cantei.) – Romeno.

c) A murutu. (Morreu.) – Dialetos do sul da Itália66.

d) Non siamo stati troppo gentili. (Nós não fomos muito gentis.) – Italiano uso do auxiliar esse.

e) Ho visto un film. (Eu vi um filme.) - Italiano uso do auxiliar habere.

O francês tem apenas um pequeno grupo de verbos que formam o PC com esse, seriam verbos inacusativos que indicam estado, movimento e mudança de estado. No mesmo grupo estariam incluídos também os verbos pronominais e as construções reflexivas. Nessa língua, assim como no italiano, há também um pequeno número de verbos que admitem os dois auxiliares67. Todo o restante apenas admite habere.

a) Il s'est tué. (Ele se matou.) – Francês verbos que permitem o auxiliar esse.

b) Il a été une grande fête. – (Foi uma grande festa.) Francês verbos que admitem o auxiliar habere.

Já no sardo, apenas os verbos transitivos acompanham o auxiliar habere, os outros vão com esse.

a) Karkunu est arrivatu. (Chegou alguém.)

Em relação à concordância do particípio com o complemento direto, Bergareche

65 As traduções foram feitas livremente por mim, entretanto é importante ressaltar que não mantenho o PC, uma vez que no português do Brasil esse tempo verbal só é usado com o valor de Perfeito continuativo, sendo assim, na hora de traduzir utilizei o pretérito simples. Isso ocorreu porque no PB quando temos o Perfeito experiencial, resultativo ou de passado recente é esse o tempo verbal utilizado.

66 O autor sinaliza que nos dialetos italianos centro-meridionais, é possível encontrar o uso do PC com auxiliar

esse com os verbos transitivos.

67 Os verbos como augmenter (aumentar), baiser (beijar), changer (mudar), vieillir (envelhecer), (...) aceitariam ambos os auxiliares.

(ibidem) informa que em latim a construção precursora das formas românicas compostas, habere + particípio, era uma estrutura transitiva na qual o particípio acompanhava e esse concordava com o complemento direto do verbo habere. Essa concordância pode ser observada no catalão, sardo, no francês standard, no italiano e dialetos do sul da Itália. No galego, português, francês falado, espanhol e romeno, não é possível encontrá-la.

Algumas línguas, portanto, teriam substituído o habere por tenere no uso do PC. Atualmente, encontramos esse uso no galego, português e em alguns dialetos italianos centro- meridionais.

Abaixo segue uma tabela feita por Bergareche (ibidem, p. 90) que trata dos traços formais do PC com habere nas línguas românicas.

Perf. com habere + Perf. com esse

Concordância com particípio / CD Tenere X habere Galego-português - - + Espanhol - - - Catalão - + - Ocitano + + - Francês + + - Retorromânico + + - Sardo + + - Italiano + + - Dialetos do sul da Itália + + - Romeno - - -

Bergareche (ibidem) também analisa o valor aspectual do PC em diversos idiomas. Ele defende que esse tempo verbal pode estar veiculado ao aspecto Perfeito ou aoristo. O autor define o aspecto Perfeito como aquele que descreve os casos em que se focalizam os resultados de um evento já concluído, mas que o estado resultante dessa ação pode chegar até o presente e inclusive estar situado no momento de enunciação. O aspecto aoristo apareceria quando o evento fosse visto como concluído, o foco estaria em sua totalidade, desde o seu início até o fim. Segundo Bergareche (ibidem), o PC com leitura de aspecto aoristo está particularmente veiculado com a referência temporal de passado e por isso seu uso estende-se

a contextos próprios do pretérito simples. O autor ressalta que em alguns casos esse tipo de PC poderia chegar a eliminar o pretérito simples em algumas línguas.

Ao caracterizar o valor aspectual do PC em diversas línguas, o autor as divide em grupos que apresentam o valor de Perfeito experiencial, outros de Perfeito inclusivo e outros de Perfeito de passado recente. Ressalta, no entanto, que as línguas podem ter o PC com mais de um tipo de leitura dependendo do contexto.

O perfeito experiencial se referiria a estados que são resultados de repetições de uma mesma ação e da experiência gerada por eles. Os exemplos dados por Bergareche (ibidem, p.93) estão em calabrês (dialeto italiano meridional):

a) Aju jutu. (Fui.) b) L''aju fattu. (Fi-lo)

Ao tratar do Perfeito inclusivo, o autor expõe que o crucial, nessa leitura aspectual, é que o evento descrito alcance o seu desenvolvimento até o momento presente. O português estaria dentro do grupo que tem o PC com esse tipo de Perfeito. Segundo Squartini/Bertinetto (2000, apud Bergareche 2008), nessa língua, a forma composta só se combinaria com predicados durativos e algum predicado télico suscetível de interpretações iterativas, dotado, portanto, em certo modo, de duratividade. Veja os exemplos dados por Bergareche (ibidem, p.94):

a) Tenho estudado inmenso desde que decidi fazer o exame68. b) Nos últimos dias o João tem chegado tarde.

c) *O João tem chegado às quatro da manhã.

d) *Ultimamente o João tem lido um romance de Eça de Queiroz.

Ao analisar os exemplos, o autor defende que, em (a) e (b), têm-se exemplos de atividades ou predicados télicos de leitura iterativa e por isso são possíveis no português. Os outros dois exemplos seriam agramaticais, pois apresentariam predicados télicos não durativos.

Entretanto, em orações como – O João tem chegado às quatro da manhã., podem ser possíveis no português no Brasil, a partir do momento que o contexto indique que essa ação do João esteja se repetindo diariamente, semanalmente, etc, – O João tem chegado às quatro da manhã todos os dias.

Ao tratar da leitura aspectual de Perfeito de passado recente, Bergareche (ibidem) afirma que o uso do PC para descrever eventos situados em um passado recente cria de algum

modo uma ponte entre o uso de PC com valor de Perfeito e o uso do PC com valor aorístico. Segundo o autor, o espanhol peninsular moderno tende a ampliar o uso do PC em passados recentes que ultrapassam o limite de vinte e quatro horas que é o que se denomina passado hodiernal. O espanhol peninsular, seria pois, um exemplo do início do deslocamento do PC com valor de Perfeito para usos aorísticos típicos do pretérito simples. Squartini/Bertinetto (2000, apud Bergareche 2008) defendem que frases como Esta noche me he despertado a las cuatro de la mañana, tem o valor aspectual de aoristo. A proposta feita por esses autores também é assumida nesta dissertação, uma vez que se um evento está marcado como finalizado e não há nenhuma marca de estado resultante no momento presente, esse não pode ser analisado como Perfeito, devendo portanto, ser identificado como sendo de leitura aspectual perfectiva (aorística). A frase dada como exemplo pelos autores poderia ser classificada como Perfeito se houvesse uma consequência da ação de acordar às quatro da manhã, como por exemplo, o falante em seguida dizer que é por esse motivo que ele está muito cansado.

Abaixo segue o quadro sobre os valores aspectuais do PC em algumas variedades românicas proposto por Bergareche (ibidem).

Perfeito inclusivo Perfeito Experiencial Perfeito + passado hodiernal Perfecto + Aoristo Galego-português X Espanhol da América X Espanhol peninsular X Catalão X Ocitano X Francês X Retorromânico X Sardo X Italiano X Calabrês X Siciliano X Romeno X

variantes desse idioma, para em seguida analisar o uso desse tempo verbal no espanhol do México que é foco desta dissertação.

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 46-53)

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