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2 O MOVIMENTO DIALÉTICO DA PESQUISA: (RE)CONSTRUINDO

3.2 O problema do meio e o conceito de vivência

No desenvolvimento de sua obra, Vygotsky (1996) questionava muito as teorias que tentavam explicar o desenvolvimento humano, alegando que serem insuficientes para trazer as respostas satisfatórias que dessem conta da complexidade desse processo. Por ser um pesquisador extremamente criterioso, defendia o rigor nas pesquisas em Psicologia, apontando, na metodologia científica, o caminho para a construção do que ele chamava de Nova Psicologia. Dentre as teorias por ele estudadas de forma rigorosa, destacam-se as teorias40 da Gestalt, Psicanálise e o Behaviorismo, além das ideias do pesquisador suíço Jean Piaget (1896-1980). Essas teorias e autores são citados e comentados nos trabalhos de Vigotski, tendo ele escrito prefácios para algumas das suas traduções ao idioma russo.

Dessa forma, mesmo sendo importantes para a história da constituição da Psicologia como ciência, reconhecidas e respeitadas por Vigotski, elas não superavam, segundo o autor, a perspectiva dualista de homem e não conseguiam explicar de forma rigorosa o desenvolvimento das funções psicológicas superiores. Para Vigotski, era necessário construir uma Psicologia que, de fato, explicasse as formas de desenvolvimento humano, ou

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Não é objetivo do presente texto aprofundar as discussões nas referidas abordagens teóricas, e, sim, contextualizar a perspectiva teórica proposta por Vigotski dentro do desenvolvimento da Psicologia.

seja, as funções psicológicas superiores. Afirmava que qualquer teoria científica psicológica precisava explicar a questão da consciência.

O que Vygotsky procurou foi uma abordagem abrangente que possibilitasse a descrição e a explicação das funções psicológicas superiores, em termos aceitáveis para as ciências naturais. Para Vygotsky, essa explicação tinha o significado de uma grande tarefa. Ela deveria incluir a identificação dos mecanismos cerebrais subjacentes a uma determinada função; a explicação detalhada da sua história ao longo do desenvolvimento, como o objetivo de estabelecer as relações entre formas simples e complexas daquilo que aparentava ser o mesmo comportamento; e de forma importante, deveria incluir a especificação do contexto social em que se deu o desenvolvimento do comportamento. As metas de Vygotsky eram extremamente ambiciosas, talvez até de forma não razoável. Ele não as atingiu (como aliás, estava bem ciente). No entanto, conseguiu, de fato, fornecer-nos uma análise arguta e presciente da psicologia moderna (COLE e SCRIBNER, 1991, p. 6).

Com o objetivo de explicar de forma consistente, assumindo os princípios de uma filosofia materialista histórico-dialética, o desenvolvimento das funções psicológicas superiores dos seres humanos, destacando a diferença deles com os animais, Vigotski iniciou várias frentes de investigação, as quais tiveram continuidade por seus colaboradores em virtude de sua morte muito precoce, em 1934. Vários conceitos foram por ele criados a fim de explicar o desenvolvimento humano a partir da interação social e cultural. São conceitos que nos oferecem possibilidades de compreensão e atuação na área educacional.

Para Vigotski, as experiências de aprendizagem entre os sujeitos geram a consolidação e a autonomização de formas de ação, abrindo zonas de desenvolvimento iminente, as quais constituem a gênese da própria atividade, ou seja, a aprendizagem impulsiona e precede o desenvolvimento.

O autor concebe o desenvolvimento a partir da premissa de movimento dialético, e, embora tenha dedicado parte de seus estudos ao problema da idade, entende que os estágios de desenvolvimento possuem certa sequência no tempo, mas não são estáticos, eles dependem das condições concretas nas quais ocorre o desenvolvimento. Os limites de idade alteram-se com a mudança das condições histórico-sociais, ou seja, dependendo das condições concretas, os sujeitos podem demonstrar

capacidade além ou aquém de sua idade cronológica, pois não é apenas a idade cronológica que determina o desenvolvimento, mas, sim, as relações estabelecidas com/no meio social e histórico. Elkonin (1998, p. 81), pesquisador muito próximo a Vigotski e estudioso do desenvolvimento humano que deu continuidade a estudos na perspectiva histórico-cultural, principalmente com relação ao campo de estudo sobre a idade escolar, levanta a conjectura de que “[...] os processos do desenvolvimento psíquico que se operam em certos períodos da infância aparecerão e mudarão na história”.

Nesse sentido, para explicar as condições de desenvolvimento, é necessário, segundo Vigotski (2000), considerar a perspectiva de que “tudo o que é interno nas funções superiores ter sido externo: isto é, ter sido para os outros, aquilo que agora é para si. Isto é o centro de todo o problema do interno e do externo” (p. 24), levando-se em conta que os processos vividos pelas crianças na escola passam pelas condições concretas na “trama das relações” significadas pelos sujeitos (SMOLKA, 2004, p. 45).

A partir dos apontamentos de Vigotski no texto “A questão do meio na pedologia”, bem como dos diálogos e desdobramentos de sua concepção teórica desenvolvidos por autores como Toassa e Souza (2010), Pino (2010) e Meshcheryakov (2010), pode-se inferir que as novas formações no processo de desenvolvimento ocorrerão em decorrência das interações vivenciadas pela criança.

Segundo o autor,

o meio desempenha, com relação ao desenvolvimento das propriedades específicas superiores do homem e das formas de ação, o papel de fonte de desenvolvimento, ou seja, a interação com o meio é justamente a fonte a partir da qual essas propriedades surgem na criança (VIGOTSKI, 2010, p. 697).

Portanto, corroboramos as ideias de Vigotski (idem) de que é preciso que ocorra a interação com as formas mais desenvolvidas de ações no meio em que a criança vive para que ela possa desenvolver, por exemplo, o caminhar/andar, o falar, dentre outros, pois, segundo o autor, do contrário, o desenvolvimento não irá ocorrer a contento.

A partir dessa premissa, é fundamental ter atenção ao “meio” em que as crianças estão inseridas. Entretanto, a compreensão que tínhamos acerca da importância das interações para o desenvolvimento das crianças e do papel do meio nesse processo ampliou-se bastante a partir do conceito de vivência apontado por Vigotski (2010). Pensar esse conceito permite angariar para os debates reflexões e, ainda, para os questionamentos que fazemos acerca do trabalho com a Literatura na Educação Infantil, em sua constituição no cotidiano escolar, para além das interações, pois parece dar conta de aspectos mais ampliados do processo vivido.

Buscando entender melhor esse conceito na obra de Vigotski, Toassa e Souza (2010) investigaram e apresentaram a elaboração teórica nas obras do autor bem como as contribuições metodológicas desse conceito para a análise das relações indivíduo-meio no desenvolvimento humano. Para as autoras, quando se analisa toda a etimologia da palavra em alemão e em russo, e, ainda, a presença e o uso do termo nos trabalhos de Vigotski, é possível entender o conceito como “um tipo de apreensão do real que não é mera interpretação, não é mera emoção, mas integra vários aspectos da vida psíquica”. Portanto, o termo “vivência” também é um processo básico da vida humana, é acontecimento profundo na existência da pessoa real ou do personagem na arte (idem, p. 759).

De acordo com as autoras,

As vivências, nos primeiros livros do autor (1916/1999, 1925/2001, 1926/2001), revestem-se de um caráter irracional, marcado por sentimentos e sensações que demandam compreensão após vivenciados. Traduzindo o engolfamento do receptor pela obra de arte (1925/2001), possibilitam que o sujeito mais participe, reaja, do que julgue, com a criação de uma espécie de campo psicológico entre receptor e obra, que contém a ambos e alcança a sua triunfal dimensão catártica no conflito entre forma e conteúdo (TOASSA e SOUZA, 2010, p. 761).

O conceito de vivência está intimamente inter-relacionado ao desenvolvimento cultural dos sujeitos nos aspectos filogenéticos e ontogenéticos, pois,

No decorrer da ontogênese, as vivências adquirem o papel de unidade dinâmica da vida consciente. Passa a articular-se em

dois núcleos: interno (que, como podemos deduzir, abrange corpo, representações e ideias; fantasias, lembranças e outros processos mentais singulares ligados ao eu que não estão presentes na realidade objetiva), e externo (principalmente as percepções de objetos) (TOASSA e SOUZA, 2010, p. 768).

Nesse processo, a linguagem ocupa um lugar central, pois se constitui como o laço que possibilita estabelecer as relações entre os conceitos.

A linguagem é o laço que relaciona os conceitos de tomada de consciência (no sentido da relação de compreensão que estabelecemos com algo) e vivência. Expliquemos: a generalização das vivências na linguagem é central para a tomada de consciência, ou seja, o fato de se tornarem objeto da linguagem é um aspecto novo emergente no desenvolvimento, e que exerce uma transformação significativa nas relações sociais, pois a criança torna-se consciente não apenas dos objetos e das outras pessoas, mas também de si mesma. Atribui sentido e adquire conceitos sobre seus afetos peculiares, e, na perspectiva histórico-cultural, esse é o principal fundamento do processo de tomada de consciência (TOASSA, 2010, p. 7).

Segundo Toassa, (idem) o sentido do termo “perejivânie” para Vigotski abriria uma ferramenta metodológica fundamental na análise do desenvolvimento de adultos e crianças.

Outro autor que também discute o conceito de vivência em Vigotski e ajuda-nos a aprofundar a compreensão sobre ele é Meshcheryakov (2010). Conforme esse autor, é possível abarcar tal conceito de forma concreta por meio da observação e análise do comportamento, pois,

De todo modo, a vivência pode ser expressa no “mundo exterior”, em vários níveis de comportamento – através de reações espontâneas e impetuosas; uma confissão, longas conversações pessoais com um amigo, algumas ações (por exemplo: escrever uma carta, fazer caridade, ir ao teatro, ao estádio, a um encontro, a uma loja e assim por diante), organização e planejamento de uma atividade de longo prazo, que muda completamente a representação e o estilo de vida (ibidem, p.715).

Associando tal aspecto do desenvolvimento com as possibilidades desencadeadas nas inter-relações entre as crianças e a literatura infantil,

anunciamos nossa inquietação para esse processo vivido na escola de Educação Infantil considerando o meio. Aqui, privilegiando-se as vivências a partir da/com a Literatura Infantil como palco de observação, análise e elaboração teórica, a fim de dar corpo à empreitada a que nos propusemos enfrentar, desenvolver uma pesquisa que contribua para apontar os elementos do desenvolvimento infantil anunciados nas vivências com a literatura infantil. Entender tais conceitos torna-se fundamental na medida em que, para nós, o cotidiano escolar da Educação Infantil pode ser considerado o “meio”, tais como as definições apontadas por Vigotski (2000, 2010) e, ainda, que o desenvolvimento humano ocorre em situações sociais.

A partir da perspectiva de que o meio, a partir do conceito de vivência, pode auxiliar-nos a discutir e a compreender as inter-relações entre a literatura e o desenvolvimento infantil, nosso objeto de estudo, indagamo-nos e focamos nossa atenção para o trabalho de duas profissionais com a literatura na escola e para as inter-relações estabelecidas, considerando a como parte da cultura da humanidade.

A partir dessa percepção, focamos nossa atenção nos modos como as crianças estão participando com/da literatura na escola, nos elementos desencadeados pela interação com as histórias, na forma como as histórias repercutem nas percepções e criações de adultos e crianças. “O impacto, a apreensão” (MESHCHERYAKOV, 2010), ou seja, as “vivências” de adultos e crianças com as obras literárias será o foco de nosso estudo, buscando a compreensão desse complexo processo de significação nas inter-relações estabelecidas com a Literatura Infantil.