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1.3 O Programa de Saúde da Família

1.3.1 O processo de trabalho no Programa de Saúde da Família

O processo de trabalho no PSF é organizado a partir da definição do território, onde os profissionais irão desenvolver ações focadas na saúde, dirigidas às famílias e ao seu ambiente, de forma contínua, personalizada e ativa; com ênfase relativa no cuidado promocional e preventivo, mas sem descuidar do curativo-reabilitador; com alta resolubilidade e baixos custos diretos e indiretos, sejam eles econômicos e/ou sociais; articulando-se com outros setores que determinam a saúde. É um trabalho organizado sob a ótica da vigilância em saúde. (MENDES, 1996).

O princípio da vigilância da saúde, segundo este mesmo autor, sustenta-se em três pilares básicos: o território-processo, os problemas de saúde e a intersetorialidade, contribuindo, dessa forma, para a reorientação do modelo assistencial à medida que orienta uma intervenção integral sobre momentos distintos do processo saúde-doença.

Campos (2003), ao refletir sobre o princípio da integralidade na perspectiva da vigilância da saúde e da saúde da família, afirma que o modelo de vigilância da saúde pode ser considerado um eixo reestruturante da maneira de agir em saúde. Seguindo esse modelo, os problemas de saúde passam a ser analisados e enfrentados de forma integrada, por setores que historicamente têm trabalhado de maneira dicotomizada. Consideram-se os determinantes sociais, os riscos ambientais, epidemiológicos e sanitários associados e os desdobramentos, em termos de doença. Ainda segundo esse mesmo autor, esse novo olhar sobre a saúde leva em conta os múltiplos fatores envolvidos na gênese, no desenvolvimento e na perpetuação dos problemas. Propõe ainda o envolvimento de todos os setores inseridos naquela realidade e vê o indivíduo e a comunidade como o sujeito do processo.

O conceito de território deve ser pensado de modo a ultrapassar as delimitações geográficas, contemplando as dinâmicas de organização da população e dos fenômenos sociais, que são fundamentais para a compreensão do processo saúde-doença. A delimitação do território pode ser representada por meio de mapas que demarcam as áreas de atuação das equipes, e constituem uma ferramenta de visualização e identificação das principais situações de saúde na área de abrangência das unidades, de modo dinâmico. A adscrição de clientela, que significa a vinculação de uma população a uma unidade de saúde da família a partir do estabelecimento de uma base territorial, permite delinear, de forma dinâmica, a realidade de saúde da população e organizar a atenção segundo a lógica do enfoque por problemas, atendendo às necessidades de saúde. (BRASIL, 2004).

Alguns autores debatem a efetividade da proposta da ESF enquanto estratégia para mudança do modelo de atenção, apontando fragilidades de algumas ordens que contribuem para a manutenção do modelo biomédico, por exemplo, na organização estrutural, na conformação da dinâmica do processo de trabalho das equipes, na institucionalização da proposta, entre outros.

Franco e Merhy (2006) fazem uma análise crítica sobre a forma e organização do trabalho da equipe do PSF, afirmando que, embora o trabalho esteja direcionado para práticas multiprofissionais, nada garante que haverá ruptura com a dinâmica médico-centrada do modelo hegemônico atual. Para os autores, não há dispositivos potentes para que isso ocorra, porque o Programa aposta em uma mudança centrada na estrutura, ou seja, no desenho no qual opera o serviço, mas não opera de modo amplo nos microprocessos do trabalho em saúde, nos fazeres do cotidiano de cada profissional, que, em última instância é o que define o perfil da assistência.

Ao refletir sobre o momento do encontro entre o profissional de saúde e o usuário, que representa o ato do trabalho em si, Merhy (2004, p.111) afirma que

qualquer abordagem assistencial de um trabalhador de saúde junto a um usuário-paciente produz-se através de um trabalho vivo em ato, em um processo de relações, isto é, há um encontro entre duas “pessoas”, que atuam uma sobre a outra, no qual opera um jogo de expectativas e produções, criando-se intersubjetivamente alguns momentos interessantes, como os seguintes: momentos de falas, escutas e interpretações, nos quais há a produção de uma acolhida ou não das intenções que essas pessoas colocam nesse encontro; momentos de cumplicidades, nos quais há a produção de uma responsabilização em torno do problema que vai ser enfrentado; momentos de confiabilidade e esperança, nos quais se produzem relações de vínculo e aceitação.

Teixeira, Paim e Vilasboas (2002) destacam que a dinâmica do trabalho nesta abordagem pressupõe o desenvolvimento de um processo de produção de conhecimentos e de intervenção sobre os problemas e necessidades de saúde da população do território, de forma a “vigiar” e “controlar” os fatores determinantes e condicionantes do nível de saúde da população, ao mesmo tempo em que se difundem informações e conhecimentos que permitam às pessoas e grupos assumirem cada vez mais a defesa e promoção de sua saúde na dimensão individual e coletiva. Percebe-se que esses aspectos nos remetem à identificação da necessidade dos profissionais de se apropriarem de ferramentas que favoreçam o desenvolvimento dessas ações, que vão se materializar na educação em saúde desenhada de forma a promover a saúde e construir, em conjunto com a comunidade, elementos fomentadores da organização social.

Para Ayres (2003), os profissionais de saúde precisam ser capazes de perceber como a população compreende suas práticas de saúde. É nesse encontro de sujeitos que se faz a

construção conjunta, onde, enquanto profissionais, não devem apressar a construção do objeto da intervenção: é o encontro que diz quais são os objetos.

Para o acompanhamento contínuo das ações e avaliação das atividades desenvolvidas pelas equipes do PSF, utiliza-se o Sistema de Informação da Atenção Básica (SIAB), que agrega os dados e processa as informações sobre a população acompanhada, servindo como uma importante ferramenta para o planejamento das ações das equipes (BRASIL, 2004).

O SIAB foi elaborado à semelhança dos princípios do SUS, com o objetivo de Soares, Gomes e Moreno (2007):

Monitorar e avaliar as atividades desempenhadas pelas equipes do Programa de Saúde da Família (PSF) nos municípios e nos estados;

Agilizar o processo de produção dos dados e das informações;

Instrumentalizar os gestores do SUS no planejamento das ações e dos serviços de saúde locais, a partir do conhecimento e análise da situação de saúde registrada no PSF implantado nos municípios.

A produção dos indicadores e, consequentemente, a qualidade das informações produzidas permitem a análise das condições de vida e a identificação dos principais agravos à saúde que ocorrem na área possibilitam a construção de marcadores para avaliação e posterior reorganização do trabalho.

Avaliando atentamente o SIAB, percebe-se que, ainda que contemple o registro de ações de caráter educativo, o sistema concentra as informações relativas às produções de atividades e procedimentos ligados aos programas de saúde, tais como atendimentos e encaminhamentos médicos, solicitação de exames, procedimentos de enfermagem (curativos, retirada de ponto, aplicação de injeções, etc). A ficha para registro de atividades, procedimentos e notificações (ficha D) é utilizada por todos os profissionais, com exceção do ACS. O item “atendimento de grupo – educação em saúde” refere-se ao registro do número de atendimentos em grupo para o desenvolvimento de atividades de educação em saúde, considerando como “grupo” aquele formado com, no mínimo, dez participantes e duração mínima de trinta minutos, podendo ser realizado por profissional de nível superior ou médio, sem considerar as atividades educativas realizadas pelo ACS (BRASIL, 2003). A avaliação da atividade educativa se restringe à quantidade de grupos realizados, sem apresentar uma proposta de avaliação da qualidade dessa prática. Chama a atenção o fato das práticas educativas realizada pelos ACS não serem contempladas.

Percebe-se que o SIAB, embora criado para o acompanhamento do trabalho desenvolvido pelos profissionais do PSF, concentra as informações no aspecto biológico da

atenção à saúde, como se tivesse sido desenvolvido para ser usado em unidades básicas de saúde que atuavam na lógica dos programas de saúde. As características específicas do PSF, que propõem outras formas de atenção, buscando o desenvolvimento de qualidades nas dimensões subjetivas do trabalho dos profissionais não são contempladas pelo sistema de informação.

A obrigatoriedade de apresentação mensal das informações contidas nos relatórios do SIAB também pode contribuir no sentido de impor aos profissionais uma organização do trabalho com atividades que contemplem essas informações, visto que a interrupção no fornecimento desses dados implica na suspensão do repasse de recurso financeiro pelo MS ao município.