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2.1 FUNDAMENTOS DA TEORIA DA ATIVIDADE DE LEONTIEV

2.1.1 O psiquismo humano, sua lei de desenvolvimento e a estrutura da atividade

Na obra “O desenvolvimento do psiquismo” (LEONTIEV, 2004) é apresentada a análise do percurso do desenvolvimento do psiquismo, que tem início no estudo da forma de psiquismo animal mais simples e avança até chegar ao psiquismo e à consciência humana. Os estudos feitos sobre o desenvolvimento do psiquismo animal são relevantes por destacarem que, mesmo no caso dos animais, é a atividade o motor do desenvolvimento psíquico. Além disso, o estudo do psiquismo animal apresenta os elementos estruturais da atividade animal que também compõem a atividade humana: necessidade, motivo, objeto e operações. Os animais realizam suas atividades para satisfazer uma necessidade biológica, sendo que o

motivo de suas ações coincide com o objeto de sua atividade. No caso de animais mais

desenvolvidos eles passam a responder às condições nas quais o objeto de sua atividade se encontra, passando a realizar processos chamados de operações. Essas operações, quando fixadas no comportamento animal individual, são denominadas hábitos.

Contudo, mesmo no caso de animais que alcançaram complexos níveis de desenvolvimento psíquico, Leontiev (2004) ressalta que esse psiquismo está sujeito às leis da evolução biológica. Essa situação se modifica, radicalmente, quando se passa ao psiquismo dos seres humanos. Ocorre não apenas uma superação do psiquismo animal, mas também uma mudança substancial nas leis que determinam o desenvolvimento de seu psiquismo, visto que: “No mundo animal, as leis gerais que governam as leis do desenvolvimento psíquico são as da evolução biológica; quando se chega ao homem, o psiquismo submete-se às leis do

análoga, a atividade humana não apenas supera a atividade animal como também está submetida às leis do desenvolvimento socio-histórico.

É o desenvolvimento socio-histórico da humanidade, da vida em grupo e da necessidade de se relacionar com seus semelhantes e com a natureza que leva ao surgimento de uma atividade exclusivamente humana: o trabalho. A categoria trabalho remete aos princípios marxianos e pode ser definida como:

[...] um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano, com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza. [...] Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo modifica sua própria natureza. (MARX, 2004b, p. 211).

Para Marx e Engels (2007), o trabalho é o principal elemento que diferencia o homem dos animais, pois é por meio dele que o homem gera seus meios de vida e, consequentemente, sua vida material. Além disso, o trabalho, em sua essência, é uma atividade produtiva: “[...] determinada por seu fim, modo de operar, objeto sobre que opera, seus meios e seu resultado.” (MARX, 2004b, p. 63). Há, portanto, na estrutura do trabalho, um objetivo a ser alcançado, um conteúdo sobre o qual o homem age, diferentes maneiras de alcançar o objetivo em função das condições em que o trabalho é realizado, e seu resultado. É fundamental destacar que, ao realizar um trabalho, o homem o faz em decorrência de alguma necessidade e é capaz de antever, de planejar o resultado de suas ações. Em outras palavras, o resultado esperado do trabalho já existe previamente. Ademais, o trabalho também se caracteriza pelo uso e fabricação de instrumentos e por ocorrer de forma coletiva. É a partir dos estudos de Marx e Engels sobre o trabalho que Leontiev desenvolve seu modelo teórico para a estrutura da atividade.

Como foi exposto previamente, é com o objetivo de satisfazer suas necessidades que o homem realiza o trabalho. No corpo teórico desenvolvido por Leontiev, a necessidade é uma condição necessária para a atividade. Contudo, é preciso que a necessidade seja objetivada, possibilitando que o motivo da atividade seja o próprio objeto dela:

A primeira condição de toda a atividade é uma necessidade. Todavia, em si, a necessidade não pode determinar a orientação concreta de uma atividade pois é apenas no objeto da atividade que ela encontra a sua determinação: deve, por assim dizer, encontrar-se nele. Uma vez que a necessidade encontra a sua determinação no objeto (se “objetiva” nele), o dito objeto torna-se motivo da atividade, aquilo que o estimula. (LEONTIEV, 2004, p. 115).

O conceito de motivo possui um caráter fundamental na teoria da atividade, visto que é ele o responsável pela articulação entre a necessidade e o objeto: “O motivo nasce do encontro entre a necessidade e o objeto, é ele que impulsiona a atividade, uma vez que objetos e ações por si só não são capazes de iniciá-la.” (LONGAREZI; FRANCO, 2015, p. 101). É importante salientar que, para Leontiev (1983), a atividade é obrigatoriamente polimotivada, ou seja, está relacionada a dois ou mais motivos. A natureza polimotivada da atividade surgiu no decorrer do desenvolvimento histórico e social, visto que o homem e suas ações devem satisfazer as relações do indivíduo com o mundo objetal, com as pessoas ao seu redor, com a sociedade e consigo mesmo (LEONTIEV, 1983). Por exemplo, tem-se que: “[...] a atividade laboral está socialmente motivada, mas também é regulada por motivos como, por exemplo, a remuneração material.” (LEONTIEV, 1983, p. 166, tradução nossa)14. No caso da atividade docente, os professores podem realizá-la não apenas para que os alunos aprendam os conhecimentos historicamente elaborados – o motivo social − mas, também, pela remuneração. Os motivos são categorizados por Leontiev em dois grupos que recebem diferentes denominações em suas obras tais como: a) motivos formadores de sentido e motivos-estímulos; b) motivos dotantes de sentido e motivos-estímulos; c) motivos que agem realmente e motivos apenas compreendidos; d) motivos realmente eficazes e motivos apenas compreensíveis; e e) motivos que agem realmente e motivos apenas compreendidos (LONGAREZI; FRANCO, 2015).

Durante a realização da atividade humana, entretanto, podem ocorrer processos nos quais o objeto não coincide com o motivo que efetivamente leva o indivíduo a agir. Processos dessa natureza são identificados por Leontiev (2014) como ações. A possibilidade de o motivo não coincidir com o objeto de algum processo é fruto do percurso histórico e social da humanidade, como resultado do surgimento e desenvolvimento de uma sociedade baseada no trabalho (LEONTYEV, 2009). Assim, é em função da natureza coletiva do trabalho e de sua divisão de tarefas que emergem os processos conhecidos por ações. A realização de uma atividade por um grupo social faz com que determinados indivíduos desse grupo realizem processos necessários para a conclusão da atividade, mas esses processos têm um objeto distinto daquele da atividade. Seja, por exemplo, um grupo de pessoas que esteja construindo uma casa para residirem. O grupo possui uma necessidade especial, construir uma casa, e, assim, todos os processos que serão realizados se direcionam para um objeto, a casa. Entretanto cada um dos integrantes desse coletivo realizará diferentes processos que, apesar

14 Tradução de “[...] la actividad laboral está socialmente motivada, mas, es también regulada por motivos tales

de terem como motivo a construção da casa, se direcionam para distintos objetos. Uma das pessoas do grupo pode misturar água, cimento e areia para preparar a argamassa que outro indivíduo utilizará para assentar os tijolos de uma parede. O processo de preparar a argamassa teve como motivo a construção da casa, mas seu alvo é a própria argamassa, o que o configura como uma ação. Segundo Leontyev (2009), quando um indivíduo realiza uma ação, ele possui uma meta consciente que está relacionada, de alguma maneira, ao motivo da atividade.

Contudo, as ações também ocorrem quando um indivíduo realiza um processo individual, conforme pode ser visto em Leontiev (2014). Por exemplo, um judoca está se preparando para um campeonato de judô; para isso, passa a realizar uma rotina diferenciada de treinos. O motivo que o leva a desenvolver cada um dos processos que compõe seu treinamento é alcançar a vitória no campeonato. Assim, ao correr, ao levantar pesos (musculação) e ao treinar as técnicas do judô, o atleta realiza diferentes processos que possuem, cada qual, uma meta específica: melhorar a capacidade aeróbica, aumentar a força e a resistência, e aprimorar a eficiência de determinado golpe. Cada um desses processos se configura como uma ação, em relação à atividade de competir no campeonato, visto que seus objetos não coincidem com o motivo original que o levou a realizá-los e, além disso, possuem uma meta que se relaciona com o motivo da atividade de preparação para o campeonato.

Há, entre a atividade e a ação duas relações. A primeira é constitutiva, visto que uma atividade só pode ser realizada por meio das ações que a constituem (LEONTIEV, 2014). A segunda é de transformação, pois a dinamicidade da atividade humana possibilita que uma ação possa se tornar uma atividade e vice-versa (LEONTIEV, 1983, 2014; LONGAREZI; FRANCO, 2015). Uma atividade pode se tornar uma ação caso o motivo que a desencadeou mude ou se perca, fazendo com que o motivo e o objeto do processo não mais coincidam. Para que uma ação se torne uma atividade, é necessário que o motivo inicial da atividade se desloque para o objeto (alvo) da ação, ou seja, que a ação passe a ter um motivo que coincida com o seu objeto (alvo). No caso do judoca, caso o motivo que o leve a fazer o treinamento de uma técnica específica deixe de ser a preparação para o campeonato e passe a ser o de alcançar um nível de excelência na aplicação do golpe, tem-se que o processo, que inicialmente era uma ação, passou a se configurar como uma atividade para o atleta. O motivo de realizar o treinamento se tornou o objeto do treinamento. Simultaneamente, o motivo inicial, que era a preparação para o campeonato, pode deixar de existir.

A transformação da ação em atividade é a base psicológica principal do desenvolvimento, pois pode levar ao surgimento de atividades de outro nível de desenvolvimento, por exemplo, a necessidade de conhecimento:

O conhecimento, como fim consciente de uma ação, pode ser estimulado por um motivo que responde à necessidade natural de qualquer coisa. Mas a transformação deste fim em motivo é também a criação de uma necessidade nova, neste caso de uma necessidade de conhecimento. (LEONTIEV, 2004, p. 115-116).

A mudança no motivo que estimula a realização de determinado processo e a transformação de ações em atividades são analisadas por Leontiev (2014) como o processo de transformação de motivos apenas compreensíveis em motivos realmente eficazes. O motivo

realmente eficaz é o que possui eficácia psicológica, ou seja, é aquele motivo que faz com

que o indivíduo realize determinado processo. Contudo, esse motivo pode ou não coincidir com o objeto do processo, configurando, em caso afirmativo, uma atividade e, em caso negativo, uma ação. Já o motivo apenas compreensível existe na consciência do indivíduo, mas não é capaz de, efetivamente, levá-lo à realização do processo. Para Leontiev (2014, p. 70), a transformação de motivo apenas compreensível em motivo realmente eficaz: “É uma questão de o resultado da ação ser mais significativo, em certas condições, que o motivo que realmente a induziu”. Quando há essa mudança nos motivos que levam um indivíduo a realizar determinado processo, tem-se que uma ação se transformou em uma atividade.

Tome-se outro exemplo da metamorfose de uma ação em uma atividade: seja o caso de uma pessoa que, em virtude de estar obesa, recebe uma orientação médica de que precisa praticar exercícios físicos regularmente. Esse indivíduo, que já se matriculou diversas vezes em academias de natação e de musculação, decide agora se aventurar em uma academia de judô e passa a frequentá-la três vezes por semana. Ele sabe que os exercícios físicos e a prática das técnicas realizadas durante as aulas se destinam a prepará-lo para ser um bom judoca. No entanto, o motivo que o faz realizar os exercícios e o treinamento é a perda de peso. Em sua consciência coexistem o motivo apenas compreensível de ser um bom judoca e o motivo realmente eficaz, que é perder o excesso de peso. Nessas condições, o judô e as partes que compõem o treino se configuram, para esse indivíduo, como ações. No decorrer do tempo, entretanto, pode ocorrer que o motivo de treinar judô passe a ser a própria prática da arte marcial. Assim, ocorre o surgimento de uma nova atividade, pois um motivo que era apenas compreensível se tornou um motivo realmente eficaz.

É com base nessa perspectiva que, em situações de ensino e aprendizagem, escolares ou não, se deve fazer com que os aprendizes passem a ter o conhecimento como o motivo da execução dos processos que são realizados, tornando-os, assim, atividades. As tarefas formativas devem ser organizadas, portanto, de modo que os estudantes, mesmo que iniciem a

realização desses processos por outros motivos), tais como corresponder a uma expectativa dos pais ou obter uma certificação, consigam, durante o desenvolvimento do processo, fazer com que o motivo passe a ser o objeto da ação, no caso, o conhecimento.

Ainda no que se refere às transformações pelas quais as ações podem passar, é preciso abordar a metamorfose das ações em operações, que são “[...] o modo de execução de um ato.” (LEONTIEV, 2014, p. 74). Para Leontiev (2004), a crescente complexidade da atividade faz com que ocorra a transformação de ações em operações, ou seja, ações que inicialmente tinham uma meta passam a atuar, dentro de um processo complexo, como condições de sua realização. Em outras palavras, passam a ser operações que são denominadas por Leontiev (2014) de operações conscientes. Isso significa que, no caso de um processo complexo, é necessário que cada uma das etapas seja realizada, inicialmente, como uma ação para, só depois, passar a ser operações constituintes da ação mais complexa.

O surgimento das operações conscientes é decorrente do desenvolvimento e da complexidade da atividade laboral:

[...] as operações de trabalho que se formaram inicialmente no decurso de uma simples adaptação às condições exteriores conhecem uma nova gênese: quando o fim de uma ação entra numa segunda ação, enquanto condição de sua realização, ela transforma-se em meio da realização da segunda ação, por outras palavras, torna-se operação consciente. (LEONTIEV, 2004, p. 112).

Entretanto, as operações conscientes podem ou não estar presentes diretamente na consciência, ou seja, pode-se ter ou não consciência de sua realização. No caso em que não estão presentes diretamente na consciência, podem vir a se tornar presentes nas situações em que as condições materiais de realização da ação complexa impliquem mudanças da execução normal da operação: “Ao tornar-se uma operação, ela sai do círculo dos processos conscientes, mas retém os traços gerais de um processo consciente e, a qualquer momento, por exemplo, com uma dificuldade, pode tornar-se novamente consciente.”. (LEONTIEV, 2014, p. 81). Quando um indivíduo consegue realizar as diferentes operações que compõem uma ação complexa sem diferenciar as metas de cada uma delas, diz-se que ele dominou a habilidade relacionada àquela ação.

Tome-se, novamente, o exemplo do atleta iniciante no judô. Para ser capaz de aplicar determinado tipo de queda em seu oponente, o praticante precisa realizar uma série de movimentos corporais, acompanhados de posições específicas dos braços, das pernas e do quadril. Considere-se que esse treinamento se configure como uma atividade, visto que o

objetivo do atleta é alcançar um bom nível técnico na aplicação do golpe que está treinando. Inicialmente, o judoca precisa estar atento e realizar cada etapa do golpe como uma ação com uma meta específica. Assim, segurar o quadril e o braço do seu oponente tem como objetivo segurar o quadril e o braço do oponente, e não o de realizar a técnica por completo. Em cada passo para a execução da técnica, o atleta procederá da mesma forma, atribuindo um objetivo específico a cada etapa. Com o passar do tempo e com seu treinamento, as ações se tornarão operações. Ao atingir esse estágio, o judoca executa a técnica como uma unidade, não pensando nas etapas que compõem o golpe. Nesse momento, pode-se dizer que o judoca domina a técnica ou, em outras palavras, possui a habilidade de aplicá-la. Entretanto, caso ocorra alguma alteração nas condições de realização do golpe, determinada operação pode voltar à esfera do consciente.