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2.1 FUNDAMENTOS DA TEORIA DA ATIVIDADE DE LEONTIEV

2.1.2 Objetivação, apropriação, significação social e sentido pessoal

No decorrer da história, o ser humano, por meio de sua atividade criadora, elaborou uma vasta cultura composta por diversos elementos, tais como: instrumentos, conhecimentos, saberes práticos e, também, a linguagem. Essa cultura, que abrange aspectos materiais e imateriais, é transmitida de geração em geração, permitindo que um indivíduo da espécie

homo sapiens se torne um ser humano pleno:

Podemos dizer que cada indivíduo aprende a ser um homem. O que a natureza lhe dá quando nasce não lhe basta para viver em sociedade. É-lhe ainda preciso adquirir o que foi alcançado no decurso do desenvolvimento histórico da sociedade humana. (LEONTIEV, 2004, p. 284, grifo do autor).

A humanização dos homens se dá por meio do processo dialético de objetivação e apropriação (LONGAREZI; FRANCO, 2015). Tanto a objetivação quanto a apropriação ocorrem por meio da atividade humana. A objetivação acontece quando o homem, ao realizar uma atividade, imprime em seu resultado o processo necessário à criação do produto desse ato, seja ele um objeto material ou não. Nos dizeres de Marx (2004, p. 214), “O trabalho está incorporado ao objeto sobre que atuou.”. Uma característica importante do processo de objetivação é ser um fenômeno cumulativo. Assim, em cada produto da atividade humana, cristaliza-se não apenas o trabalho do indivíduo ou grupo que realizou a atividade diretamente responsável pelo produto mas, também, reproduz-se toda uma história anterior (DUARTE, 2004).

Segundo Leontyev (2009), para que o homem possa se apropriar da cultura e do trabalho que estão objetivados em determinado produto – material ou não-material – é preciso que ocorra uma transformação que permita que o resultado e o conteúdo da atividade humana assumam uma “forma ideal”. Essa transformação acontece por meio da linguagem que, sendo produto e meio de comunicação das pessoas envolvidas na atividade, carrega em seus significados certo conteúdo objetivo, mas completamente liberado de sua materialidade. Dessa forma, a linguagem, ao longo do desenvolvimento histórico da humanidade, se torna:

[...] a forma e o suporte da generalização consciente da realidade. Por isso, quando, posteriormente, a palavra e a linguagem se separam da atividade prática imediata, as significações verbais são abstraídas do objeto real e só podem portanto existir como fato de consciência, isto é, como pensamento. (LEONTIEV, 2004, p. 94).

A abstração das características objetivas e gerais dos objetos e fenômenos, aliada ao desenvolvimento da linguagem levaram ao surgimento de um conjunto de significações sociais. Apropriar-se do conjunto de significações elaborados historicamente é o que fará de um homem um ser humano. Conforme Leontiev (2004, p. 102),

A significação [social] é o reflexo da realidade independentemente da relação individual ou pessoal do homem a esta. O homem encontra um sistema de significações pronto, elaborado historicamente, e apropria-se dele tal como se apropria de um instrumento, esse precursor material da significação. O fato propriamente psicológico, o fato da minha vida, é que eu me aproprie ou não, que eu assimile ou não uma dada significação, em que grau eu a assimilo e também o que ela se torna para mim, para a minha personalidade; este último elemento depende do sentido subjetivo e pessoal que esta significação tenha para mim.

O processo de apropriação se dá por meio da atividade, que assume, dessa forma, um caráter duplo: ao mesmo tempo que produz a objetivação, possibilita a apropriação. Entretanto, para que a apropriação ocorra, é preciso que a atividade reconstrua ou reproduza as principais características do trabalho acumulado no objeto ou fenômeno que é o alvo da apropriação, de modo que a significação presente no objeto apareça ao sujeito que realiza a atividade (DUARTE, 2004; LEONTIEV, 2004). Entretanto vale ressaltar que, para um sujeito se apropriar de “algo”, não é obrigatória a reconstrução ou a reelaboração desse objeto cultural, ou seja, não é estritamente necessário refazer a atividade original que resultou naquilo que é o “alvo” da apropriação. É possível apropriar-se de “algo” por meio de

atividades que façam uso do objeto (DUARTE, 2004). Ao apropriar-se das significações sociais, contudo, o ser humano não cria em sua consciência uma cópia das mesmas. Segundo Leontiev (1983), no decorrer da evolução histórica da atividade e da consciência humanas, e em função das condições reais de vida, passa a existir, na consciência de cada indivíduo, uma relação entre a significação social objetivada e o significado que essa tem para o sujeito. A essa “significação pessoal” é dado o nome de sentido pessoal (LEONTIEV, 1983; LEONTYEV, 2009). Em síntese, um sujeito, ao realizar determinada atividade sob determinadas condições, atribui um sentido pessoal às significações sociais, visto que “[...] o sentido é antes de mais nada uma relação que se cria na vida, na atividade do sujeito.” (LEONTIEV, 2004, p. 103).

Para que se possa descobrir qual é o sentido pessoal que determinada atividade ou significação social assume para um indivíduo, é preciso analisar qual é o motivo que leva o sujeito a agir, visto que são os motivos que determinam o sentido pessoal, como é apontado por Leontiev (2004, p. 104): “[...] para encontrar o sentido pessoal devemos descobrir o motivo que lhe corresponde.”. Dessa forma, o sentido pessoal não é algo imutável mas, ao contrário, se modifica em função do motivo que leva um sujeito a agir. Por exemplo, o sentido pessoal da prática do judô para o indivíduo que iniciou a realização dessa arte marcial em função de uma recomendação médica se modifica quando ele passa a ter como motivo a própria prática do judô. De modo semelhante, diferentes indivíduos podem ter em suas respectivas consciências distintos sentidos pessoais acerca das mesmas significações sociais.

A possibilidade de pessoas distintas possuírem diferentes sentidos pessoais sobre uma mesma significação e de que o sentido pessoal sobre algo pode se modificar permite uma via alternativa para a análise do conhecimento que foi apropriado por um sujeito. Nessa perspectiva, o conhecimento pode ser considerado sob dois prismas: o conhecimento que se tem sobre algo, e o sentido pessoal que esse conhecimento tem para o indivíduo. Considere- se, por exemplo, um indivíduo que, durante sua vida escolar, tenha se apropriado de alguns dos conhecimentos sistematizados sobre a síndrome de Down, tais como a causa genética, as características físicas mais comuns e os cuidados especiais que se deve ter com um recém- nascido portador da síndrome. Suponha, agora, que essa pessoa se casou e teve um filho com síndrome de Down. Mesmo que tenha se esquecido de alguns dos conhecimentos que foram anteriormente apropriados, esse novo fato em sua vida fez com que o conhecimento adquira um novo sentido pessoal para ele. Em casos dessa natureza, quando há a elaboração de um novo sentido pessoal sobre determinado conhecimento, pode-se dizer que “[...] seu conteúdo foi revelado de forma mais completa. Ele tornou-se diferente, mas não do ponto de vista do

conhecimento que se tem dele, mas a partir do ângulo de seu sentido para o indivíduo; o fato adquiriu novo sentido.” (LEONTIEV, 2014, p. 73).

Ainda no que se refere à relação entre a significação social e o sentido pessoal é preciso destacar que apenas nos estágios iniciais de constituição da consciência é que havia uma coincidência entre ambos. Com o desenvolvimento histórico e do modo de produção capitalista, o sentido pessoal e a significação social passaram a não mais coincidir, podendo, em alguns casos, chegar a uma situação de oposição radical, ou mesmo de alienação (LEONTIEV, 1983; LEONTYEV, 2009).

Para a TA, a alienação ocorre quando há uma dicotomia entre o sentido pessoal e a significação social de determinada atividade humana, especialmente o trabalho. Essa alienação é fruto da divisão social do trabalho e do desenvolvimento do modo de produção capitalista, que engendraram a separação entre a atividade prática e a atividade intelectual teórica, além de afastar boa parte da população dos meios de produção, levando os trabalhadores a vender sua força de trabalho (LEONTIEV, 2004). A alienação, segundo a ótica marxiana, é um fenômeno que perpassa todo o modo de produção capitalista. Contudo, no que se refere especificamente às relações entre o trabalhador, o trabalho e seus produtos, a alienação possui como o primeiro traço característico o fato de que:

[...] o trabalho é externo (äusserlich) ao trabalhador, isto é, não pertence ao seu ser, que ele não se afirma, portanto, em seu trabalho, mas nega-se nele, que não se sente bem, mas infeliz, que não desenvolve nenhuma energia física e espiritual livre, mas mortifica sua physis e arruína o seu espírito. [...] O trabalho não é, por isso, a satisfação de uma carência, mas somente um meio para satisfazer necessidades fora dela. [...] tão logo inexista coerção física ou outra qualquer, foge-se do trabalho como de uma peste. (MARX, 2004a, p. 82-83, grifo do autor).

Assim, o trabalho se torna alienado ao trabalhador, que passa a ter naquele apenas o meio para obter o salário e, assim, satisfazer suas necessidades biológicas, tais como alimentar-se ou possuir um abrigo. Dessa forma, e como segunda característica da alienação do trabalho, o homem passa a se alienar da própria atividade, visto que a necessidade atendida pela atividade é exterior a esta) (MARX, 2004a). Por fim, o trabalhador acaba por se alienar do gênero humano, já que aquilo que o determina como ser humano – o trabalho enquanto atividade criadora – se torna apenas um meio de subsistência.

A alienação do trabalho faz com que ele não mais se caracterize como uma atividade na perspectiva da TA, pois o motivo que impulsiona o indivíduo a realizá-lo não é mais o

objeto do trabalho. Por exemplo, para o caso de um padeiro, o motivo de produzir os pães não é mais fabricar um alimento e sim o de receber um salário, ou seja, o motivo (salário) não coincide com o objeto (pão). As relações que se estabelecem, no sistema capitalista, entre trabalho, salário, trabalhadores, capitalistas e capital penetram na consciência humana e tem, psicologicamente, o efeito de “[...] „desintegração‟ da sua estrutura geral que caracteriza uma relação de alienação entre os sentidos e as significações, nas quais o seu mundo e a sua própria vida se refratam para o homem.” (LEONTIEV, 2004, p. 133). Assim, a alienação que surge na consciência humana significa um estranhamento radical entre o sentido e a significação de determinada atividade e é o fruto da alienação do trabalho enquanto atividade humana. Mesmo que a alienação ou a oposição radical entre a significação social e o sentido pessoal fosse eliminada da consciência de um indivíduo – em virtude de mudanças profundas nas condições reais de vida e nos motivos do sujeito − não há possibilidade de um retorno à condição de coincidência que existiu nos primórdios da humanidade. Isso se deve ao fato de que, em virtude da dinamicidade da atividade e da consciência humana, os motivos e os objetivos das ações dos indivíduos entram em discordância (LEONTIEV, 1983).

No que se refere à atividade docente, tem-se que sua significação social pode ser definida como:

[...] proporcionar condições para que os alunos aprendam, ou melhor, engajem-se em atividades de aprendizagem. Para tanto, o professor é responsável por organizar situações propiciadoras da aprendizagem, levando em conta os conteúdos a serem transmitidos e a melhor maneira de fazê-lo. (ASBAHR, 2005, p. 113).

Tendo em vista que a atividade pedagógica é, portanto, socialmente significada por sua responsabilidade em garantir que os alunos aprendam os conhecimentos historicamente elaborados, sua alienação ocorre, por exemplo, quando o sentido atribuído pelo professor à sua atividade passa a ser o de, unicamente, receber um salário. De maneira análoga, a alienação também pode ocorrer na atividade de formação continuada. Para Franco e Longarezi (2011, p. 563), esse tipo de alienação ocorre quando o docente

[...] participa de cursos de formação continuada docente, unicamente para atender necessidade e exigências mercadológicas, cedendo à competitividade exacerbada, à incorporação de atualização das informações, com intuito de agregar cada vez mais valor à sua carreira, como um produto que só vai ser valorizado se for usufruído pelo mercado.

Assim, a alienação de uma formação continuada docente, para os autores mencionados anteriormente, ocorre quando o sentido que a formação tem para o professor não é o de melhorar o que é feito em sala de aula, de modo a contribuir para o desenvolvimento e a aprendizagem dos discentes, entendido aqui como a significação social da formação continuada. Assim, neste caso, o sentido pessoal se encontra em situação de alienação em relação à significação social da formação continuada.

De modo geral, para Leontiev (2004), a superação do processo de alienação faria com que, na consciência humana, o sentido pessoal e a significação social não mais apresentassem uma divergência tão acentuada. No caso da formação continuada de professores, para que a alienação seja superada e para que a formação se constitua em uma atividade que possibilite o desenvolvimento profissional do docente, é preciso que as ações formativas permitam “[...] construir coletivamente caminhos, alternativas, propostas de ação que estejam integradas às necessidades da atividade docente e à complexidade do desenvolvimento humano pessoal e profissional.” (FRANCO; LONGAREZI, 2011, p. 579). Para essas autoras, as pesquisas sobre formação continuada que desenvolvem esse tipo de ação formativa se pautam nos interesses e necessidades dos docentes, bem como consideram os conhecimentos e práticas dos participantes.

Contudo, merece ser ressaltado que, apesar de a superação da alienação representar uma atribuição de sentidos à formação continuada e à atividade docente que se aproxime da significação social dessas atividades, a nova relação entre o sentido pessoal e a significação social “Não é de modo algum um retorno à sua coincidência inicial à sua fusão pura e simples. Esta nova relação conserva a forma desenvolvida de passagens complexas de uma para a outra.” (LEONTIEV, 2004, p. 145).

O que foi apresentado até o momento, sobre a TA, pode dar a impressão de que ela se refere apenas a processos exteriores ao sujeito que os realiza. Entretanto as atividades teóricas, ou atividades internas ao indivíduo, são parte integrante do corpo teórico da TA. Para Leontiev (2004), as atividades teóricas e práticas possibilitam a relação entre o homem e o mundo, comungam da mesma estrutura e uma atividade inicialmente exterior pode se tornar interior, e vice-versa. No que se refere à relação entre atividades práticas e teóricas, é importante destacar, também, que “A forma geneticamente inicial e básica da atividade humana é a atividade externa, a atividade prática.” (LEONTYEV, 2009, p. 398, tradução

nossa)15. Isso significa que, para surgir como uma atividade interna, é preciso, inicialmente, que exista uma apropriação da atividade externa.

Para esse autor, as atividades interior e exterior revelam a unidade da vida humana que, atualmente, configura-se para a maioria da população apenas como uma possibilidade, pois a divisão social do trabalho e o surgimento e o desenvolvimento do modo de produção capitalista levaram a uma ruptura e uma posterior oposição entre as atividades interior teórica e exterior prática (LEONTIEV, 2004).