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O quadro normativo da Lei Federal n 9.784/99

No documento Aplicabilidade da lei federal 9.784/99 (páginas 37-41)

O status constitucional do processo administrativo no Brasil, em si, não é novidade trazida pela atual Constituição de 5/10/1988. De fato, a Constituição pretérita98 já fazia alusão ao processo administrativo, em seu viés notadamente defensivo, quando instaurava as hipóteses de demissão de membros do Ministério Público (art. 95, § 1º) e de funcionários públicos em geral (art. 105, II).99

Mais do que isso – e como reforço histórico ao que se pretende debater –, é possível vislumbrar em duas de nossas Constituições passadas uma nítida menção à

96 Veja-se que o assunto da necessária processualização da atividade administrativa será retomado adiante quando da análise da posição adotada neste trabalho acerca da extensão da Lei Federal n. 9.784/99 para os entes subnacionais. Em suma, retomar-se-á o tema sob o prisma do chamado devido procedimento equitativo, a ser oportunamente minudenciado.

97 CUNHA, 1987, p. 60. 98

Adota-se aqui, como Constituição anterior à de 1988, o quadro jurídico-normativo fundado a partir da edição da Emenda Constitucional n. 1, de 17/10/1969, sobre a Constituição de 1967.

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De igual maneira, a Constituição de 1946 alinhava o processo administrativo ao regime disciplinar dos membros do Ministério Público (art. 127). Assim é que Romeu Felipe Bacellar Filho aduz que “o „processo administrativo‟ ingressou nos textos constitucionais mediante a consagração de um regime processual disciplinador da perda do cargo dos servidores públicos” (BACELLAR FILHO, 2012, p. 58).

30 processualidade administrativa no que concerne especificamente à agilidade de tramitação dos expedientes no âmbito administrativo.100 É o caso, por exemplo, do art. 141, § 36, I, da Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 18/9/1946101 e do art. 113, 35, da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 16/7/1934.102

Em que pese o que até aqui exposto – e, sobretudo, as injunções de rapidez e agilidade na tramitação de feitos acima expostas –, é inegável que se reconheça nas menções constitucionais à processualidade uma expressiva vinculação ao processo disciplinar, a implicar visão reducionista.103

Diante de tal quadro – e conforme já versado no presente estudo –, é no bojo da Constituição Federal de 1988 que se vislumbra uma ultrapassagem do viés eminentemente disciplinar no campo processual administrativo, na medida em que a positivação expressa do processo administrativo no art. 5º, LV, da CF/88, em leitura cruzada com o anterior inciso LIV do mesmo artigo, acaba por instaurar genuína cláusula de devido processo legal para a Administração, no sentido de instrumentalizar a maneira ou forma ideal de agir administrativo em relação aos fins manejados pela Administração e aos administrados.

Irradia de tais dispositivos, em específico, verdadeiro mandamento geral de juridicidade para a Administração Pública, a informar não apenas as atuações processuais em sentido estrito (processualidade relacional). É que o devido processo legal administrativo, como imperativo constitucional a partir da conjugação do que dispõem os incisos LIV e LV do art. 5º da CF/88, lança luzes sobre todas as manifestações do exercício de função administrativa (a incluir a aqui aludida processualidade funcional), atingindo tanto a forma quanto o conteúdo das decisões administrativas em geral.104

100 E veja-se, aqui, um nítido antecedente constitucional do hoje legitimamente proclamado direito fundamental à razoável duração do processo administrativo, instaurado a partir da Emenda Constitucional n. 45/2004 como inciso LXXVIII do art. 5º da CF/88.

101 Art 141 – A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, a segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: §36 – A lei assegurará: I – o rápido andamento dos processos nas repartições públicas;

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Art 113 – A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: 35) A lei assegurará o rápido andamento dos processos nas repartições públicas, a comunicação aos interessados dos despachos proferidos, assim como das informações a que estes se refiram, e a expedição das certidões requeridas para a defesa de direitos individuais, ou para esclarecimento dos cidadãos acerca dos negócios públicos, ressalvados, quanto às últimas, os casos em que o interesse público imponha segredo, ou reserva.

103 MEDAUAR, 1998, p. 12. Sobre o apego inicial da processualidade administrativa ao processo disciplinar, interessante é o chamado de Guimarães Menegale, ainda sob a égide da Constituição de 1946: “Ao elaborar-se uma teoria do processo administrativo, importa escoimá-la da noção parcial e restritiva de direito disciplinar, quer dos funcionários, quer mesmo dos infratores” (MENEGALE, 1957, p. 488). 104

31 Assim – e de acordo com Cármen Lúcia Antunes Rocha –,

o devido processo legal administrativo compreende mesmo os princípios que informam a feitura do ato administrativo, tais como o da razoabilidade e da proporcionalidade, de tal modo que ele não traz apenas a principiologia do processo, mas extrapola a forma e compromete a substância do provimento administrativo. Afinal, o que é reto e justo constitui a essência da legitimidade de qualquer comportamento, seja ele havido numa relação ou num ato administrativo unilateral. [...] O que é certo é que a cláusula do devido processo legal, em sua concepção substantiva e não apenas formal, integra a principiologia que informa a atividade administrativa de qualquer entidade e de qualquer dos ramos do Poder Público.105

É certo, pois, que a atmosfera constitucional acima referida – para além dos próprios dispositivos processuais administrativos positivados106 – indica uma tendência de processualização, em sentido amplo, da atividade administrativa, de modo a configurar o processo administrativo, agora sim, como veículo para a concretização de pautas e valores fundamentais constitucionais a partir da Administração, legitimando a própria ação estatal.

Chega-se, então, ao ambiente propício para um tratamento sistematizado da processualidade administrativa, ainda que caracteres específicos de tal expressão jurídica já se encontrassem reunidos em corpos legislativos próprios.107

Assim, em que pese o fato de não se pretender adentrar na celeuma relativa às codificações jurídicas108 – e abstraindo-se, por ora, das questões subjacentes à competência para regulamentação do processo administrativo, que serão discutidas em Capítulo próprio –, é de se notar que a experiência brasileira houve por retardar a edição de um código de processo administrativo, a representar verdadeira lei geral sobre a matéria como aqui se expõe.

De toda sorte, muito embora a matéria da referida codificação já viesse sendo tratada há algum tempo no Brasil109, somente com o advento da Constituição de 1988 é que

105 ROCHA, 1997, p. 205-206.

106 Para uma conferência das menções constitucionais e legais à processualidade administrativa, veja-se: MEDAUAR, 2008, p. 45-46.

107 Exemplos notórios são as disposições relativas ao processo administrativo disciplinar de servidores públicos encartadas em seus respectivos estatutos e, ademais, as disposições concernentes aos processos licitatórios, que de há muito encontravam sistematização legal em diplomas próprios.

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Para tal sorte de análise, abrangendo as codificações em geral, no direito administrativo e no processo administrativo, veja-se: CUNHA, 2011, p. 214-218.

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Em apertada síntese – e no tocante às experiências pioneiras no âmbito nacional –, vale apontar a insistência de Themistocles Cavalcanti na edição de uma lei de processo administrativo. Em termos de documentos enviados ao legislativo, impende ressaltar os Projetos n. 1.419 e 1.491, ambos de junho de 1956, disciplinando, respectivamente, as normas gerais de procedimento no inquérito administrativo e o procedimento normativo no recurso administrativo. No entanto, e no dizer de Manoel de Oliveira Franco Sobrinho, “não estava o legislativo federal brasileiro preparado para receber e completar um trabalho de unidade, tão grande se faziam os interesses locais, tão enormes eram os interesses da política sectária, tão

32 se instaura, como visto, uma base constitucional ampliada para a processualidade, abrangendo, longe de dúvidas, as atividades de cunho processual desempenhadas no âmbito da jurisdição, da legislação e da administração.

É nesse contexto, pois, que se iniciam as discussões acerca de uma normatividade processual administrativa capaz de irradiar seus preceitos, em perspectiva unitária, ao complexo rol de atuações da Administração (função administrativa), em leitura cruzada com a atuação processual unitária referente às funções jurisdicional e legislativa.

Para os fins do presente trabalho, importa ressaltar a edição da Lei de Processo Administrativo Federal (LPAF – Lei Federal n. 9.784/99) como uma das precursoras110 no tratamento da matéria após a Constituição de 1988, indicando tendência já alastrada pelos mais variados entes da federação brasileira.

Como já visto acima – e focando-se, por ora, no ambiente federal –, a LPAF não se limita às tratativas do processo administrativo em sentido estrito, eis que abrange a já pontuada processualidade administrativa relacional, de caráter mais restrito e indicando a necessária incidência da participação em contraditório, e a processualidade funcional, mais ampla e a indicar o exercício natural da função administrativa em cotidiana atividade decisória. Mais do que isso – e enquanto fonte normativa –, traz um quadro amplo de ordenação da atuação administrativa com princípios e regras processuais e não processuais. É nesse tom, pois, que surge válida a menção esclarecedora de Maria Sylvia Zanella Di Pietro acerca do âmbito de aplicação da LPAF. Questionando-se sobre o alcance da referida lei somente aos processos litigiosos ou a todos os tipos de processos que tramitam perante a Administração Pública e, ademais, levando em consideração as distintas acepções havidas entre processo e procedimento, a autora coloca-se “entre os que utilizam a expressão processo administrativo em sentido bem amplo, para abranger o conjunto de atos coordenados que levam a uma decisão final; nesse sentido, abrangem-se, com a expressão, todos os tipos de processos, litigiosos ou não”.111

Assim, a LPAF é tida como verdadeira ordenadora, em sentido ampliado, da marcha de atuação administrativa, pautando requisitos mínimos para instauração, instrução

demorados os trabalhos de aferição do mérito dos projetos e das proposições apresentadas” (FRANCO SOBRINHO, 1971, p. 64-65).

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É de se ressaltar, ao lado da lei federal, a edição da Lei n. 10.177/98, do Estado de São Paulo, anterior à normativa federal geral e fruto de comissão formada em 1990 sob a presidência de Carlos Ari Sundfeld. Assim, embora a lei federal seja posterior (de 29 de janeiro de 1999, com vigência a partir de 1º de fevereiro do mesmo ano), sua vigência se deu antes da lei paulista, que somente veio a produzir seus efeitos em 1/5/99.

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33 e decisão relativos à formação e posterior execução da vontade funcional da Administração Pública. Em síntese, regulamenta o modus operandi da função administrativa, tutelando a consecução das finalidades da ação administrativa.

Em outras palavras, é de ver-se que a LPAF cuida da regulamentação do modo de execução das tarefas públicas, com uma missão que não se limita ao preenchimento de condições formais de atuação administrativa (exigências de legalidade formal), mas também condições de índole material alinhadas ao interesse público e à própria conformação constitucional da função administrativa.112

Trata-se, pois, de verdadeiro diploma instaurador dos princípios gerais da atuação administrativa, que busca, entre outras finalidades: a) disciplinar a organização e o funcionamento da Administração Pública, procurando racionalizar suas atividades; b) regular a formação de sua vontade, de forma que sejam tomadas decisões justas, legais, úteis e oportunas, legitimando o exercício de função administrativa; c) assegurar a informação dos interessados e a sua participação na formação das decisões que lhes digam respeito; d) garantir a transparência da ação administrativa e o respeito pelos direitos e interesses legítimos dos cidadãos; e) evitar a burocratização e aproximar a Administração de seus destinatários; f) ampliar a possibilidade e o espectro de controle da atuação administrativa, dando-lhe conformação constitucional adequada.113

De fato – e na linha da Márcia Maria Tamburini Porto Saraiva –, o que a LPAF fez foi proteger, por intermédio do processo administrativo, a relação havida entre Administração e administrado de pressões ilegítimas ou de arranjos comprometedores do interesse público. Assim, pretendeu-se assegurar aos destinatários em geral da atuação administrativa as mesmas garantias de juridicidade ou a mesma aplicação justa do direito administrativo material.114

No documento Aplicabilidade da lei federal 9.784/99 (páginas 37-41)