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ECONOMIA SOLIDÁRIA

3- Educação Popular: para novos conhecimentos e sujeitos políticos 3.1 A educação não escapa à globalização

3.2.6. O que de popular existe na Educação Popular?

Anteriormente, discutimos o popular de forma mais abrangente, utilizando o adjetivo para mediar os contextos históricos em que a expressão “Educação Popular” aparece com diversos significados. Não se trata de redundância, mas de sermos mais específicos, ao afirmar o popular que adjetiva a Educação Popular que aqui referenciamos.

Melo Neto (2004, p. 60)90, apresenta um extenso trabalho sobre a abordagem do popular

em diversos contextos latino americanos. Entretanto, nos detemos na sua leitura interpretativa de Paulo Freire, considerando que este associa o popular ao significado de oprimido.“Trata-se daquele que vive sem as condições elementares para o exercício de sua cidadania, considerando que também está fora da posse e uso dos bens materiais produzidos socialmente.”. Esta visão amplia-se a partir das reinterpretações do oprimido realizadas pelo próprio Freire, em que o fator de opressão está relacionado à dominação cognitiva, valendo-se esta da expansão dos valores e comportamentos disseminados pela ideologia dominante.

Paludo (2006, p. 48) explica que, historicamente, a partir do projeto da modernidade, o “popular” foi e continua a ser “o povo”. No inverso, os “não-povo” são sempre os com dinheiro e os com poder e cultura. No projeto hegemónico, conserva-se “o povo” como o particular do universal político, concebido como o conjunto dos cidadãos. Tal se evidencia na proposta atual do projeto hegemónico “de elevar o popular (também chamado de 'excluído' ou 'em zona de risco') à categoria de cidadão.”.

Temidos quando organizados, em movimento e em luta, elogiados nos discursos em épocas de eleição, o popular é plural, complexo, multifacetado, apresentando marcas de conformismo, mas também de resistência e rebeldia. Uma multidão de pessoas exploradas, dominadas, não valorizadas, sem teto, sem terra, sem alimentação adequada, sem trabalho ou com trabalho precarizado, sem acesso aos bens culturais, desvalidos (idosos e crianças abandonadas), mas, também, lutadores e lutadoras individuais para poder sobreviver que, quando se articulam, se organizam e se põem em movimento contra a violência segregadora, porque sabem ser segregados, tornam-se [...] o “povo político”, conformam o que se chama de classe popular – de potencial para real, porque em movimento e em luta – e possuem, como diz Freire (1987), potencial de (re)fundação social. (Ibid. p. 49)

90 Vale ressaltar que, nesta obra, o autor apresenta uma revisão do conceito de popular a partir de experiências diversificadas, como a da Frente Popular do Chile e, no mesmo país, na composição entre o MIR (Movimento de Esquerda Revolucionária) e a Unidade Popular, após à vitória de Salvador Allende. Também no âmbito da criação do PT, no Brasil, e de movimentos como o Exército Zapatista de Libertação Nacional.

É a articulação das diversas organizações do povo político, com seus aliados (ONGs, parte das Igrejas, partidos, personalidades, intelectuais comprometidos...) que configuram o que Paludo (Ibid.) denomina de campo popular que, apesar dos seus dilemas e controvérsias “é plural e tem como referencial a transformação das sociedades”.

Segundo à investigadora, um elemento que surge atualmente e torna complexa a definição do popular é decorrente da ressignificação do que deve ser transformado para além da esfera económica (que remete à divisão de classe social) e engloba outros referenciais como as relações de género, éticas, étnicas/raciais, geracionais, entre outras, transversais às classes. Sendo assim, a emancipação humana pode estar a decorrer a partir de outros lugares sociais que não apenas das classes.

“Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”. Com esta célebre frase, que marca a sua postura político- pedagógica, Freire (1987, p.39) considera o diálogo a essência da educação orientada para a libertação dos sujeitos, compreendido como o “encontro dos homens, mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo, não se esgotando, portanto, na relação “eu- tu.” (Ibid.).

Por isso, torna-se impossível estabelecê-lo entre os/as que desejam intervir no mundo para modificá-lo e os que não querem; entre os que retiram aos/às outros/as o direito de pronunciar a palavra e os/as que têm negados este direito. É preciso primeiro que, os/as que possuem este direito sequestrado reestabeleçam-no, contrariando esta lógica.

Como exigência da própria existência humana, o diálogo não pode reduzir-se a um ato de transmissão e absorção de ideias de um sujeito para o outro, nem à mera troca de ideias a serem consumidas, nem polémicas entre sujeitos que não aspiram a comprometer-se, nem com o intuito de impor a sua verdade ao outro. Ele expressa um ato de criação.

É uma relação horizontal de A com B. Nasce de uma matriz crítica e gera criticidade (Jaspers). Nutre -se de amor, de humanidade, de esperança, de fé, de confiança. Por isso, somente o diálogo comunica. E quando os dois pólos do diálogo se ligam assim, com amor, com esperança, com fé no próximo, se fazem críticos na procura de algo e se produz uma relação de “empatia” entre ambos. Só ali há comunicação. “O diálogo é, portanto, o caminho indispensável”, diz Jaspers, “não somente nas questões vitais para nossa ordem política, mas em todos os sentidos da nossa existência. […] Diálogo – Horizontal – Relação Eu – Tu – dois sujeitos. (Ibid., 1979, p. 39)

Como tal, admite duas dimensões como os seus principais elementos constitutivos: a ação e a reflexão. Estas, manifestando-se através da palavra de forma solidária, de tal maneira que, sacrificada uma delas, ainda que parcialmente, a outra se ressente de imediato. Portanto, “não há palavra verdadeira que não seja práxis”. Daí, que dizer a palavra verdadeira seja transformar o mundo.

Esta conceção atribui à palavra uma potência maior do que a simples intermediação para que ocorra o diálogo, pois é plena do exercício da práxis. Uma vez desprovida de autenticidade, sem a qual não se pode transformar a realidade, resulta da separação que se estabelece ambas as dimensões constituintes. Assim é que,

esgotada a palavra de sua dimensão de ação, sacrificada, automaticamente, a reflexão também, se transforma em palavreria, verbalismo, blablablá. Por tudo isto, alienada e alienante. É uma palavra oca, da qual não se pode esperar a denúncia do mundo, pois que não há denúncia verdadeira sem compromisso de transformação, nem este sem ação. Se, pelo contrário, se enfatiza ou exclusiviza a ação, com o sacrifício da reflexão, a palavra se converte em ativismo. Este, que é ação pela ação, ao minimizar a reflexão, nega também a práxis verdadeira e impossibilita o diálogo. (Ibid, 1987, p. 44)

Esta perceção do diálogo se traduz, na Educação Popular, pela problematização da realidade dos educandos, de forma a propiciar a sua intervenção no mundo. A Educação Popular, desta forma, tem como um dos seus fundamentos a dialogicidade. O conhecimento é, então, construído e reconstruido à partir do desvelar do mundo. Uma aposta no “vir a ser” na construção do saber, realizado no processo de consciencialização e na condição de seres históricos e inacabados, como defende Freire.

Com a introdução desta categoria na educação coloca-se não só a possibilidade de construção coletiva dos conhecimentos, mas eleva a condição dos educandos a sujeitos da produção dos conhecimentos, num processo de criação de autonomia.

Assim, é pelo diálogo que se busca construir um pensamento crítico, ético, numa ação educativa que parte da realidade social, tendo em conta que esta é sempre diversa, assim como os sujeitos, os meios, as interpretações e as circunstâncias. Por essa razão, também as práticas e os modelos não são estáticos, devendo existir um esforço por parte dos/as educadores para que sejam recontextualizadas de acordo com os sujeitos, grupos, lugares e instituições. (Cetrulo, 1995; Brandão, 1986, citados por Mejía, Ibid.).

Ao ter em conta a dificuldade de ler as realidades, cada vez mais complexas e emanadas dos centros de poder e por teorias únicas, a tentativa operada desde a Educação Popular

é de ajustar as ações às condições particulares dos grupos que com esta se relacionam, buscando superar os olhares fragmentados e atomizados da realidade. Desta forma, busca-se que a problematização do mundo seja assumida como um procedimento constante e que o diálogo seja integrado como parte das metodologias que caracterizam a Educação Popular.

3.2.7- A epistemologia freireana: unidade dialética e rupturas com as dicotomias

A consciência crítica elaborada no decorrer dos processos históricos ocupa um dos lugares centrais na teoria do conhecimento elaborada por Freire, em que a educação é assumida como ato político e de libertação. Entendemos que os seus fundamentos teóricos e metodológicos apresentam-se, parafraseando Santos, como um “pensamento alternativo de alternativas”91, em especial, quando à luz de novos paradigmas

“provocadores” abrem-se as portas para compreender “Paulo Freire para além de Freire”.

Quando assim referimos, significa que ampliamos a nossa imaginação para pensar a sua epistemologia num diálogo com outros paradigmas que perspetivam um momento de transição que, como refere Santos, é uma evidência do que ainda não sabemos o que pode “vir a ser”. Entendemos que a episteme freireana convoca-nos, enquanto educadoras/es e invertigadoras/es, a confrontar as dicotomias e rupturas produzidas pelo pensamento hegemónico desde o surgimento da modernidade, estimulando-nos, assim, a recuperar a unidade dialética entre as noções que permeiam a produção do conhecimento moderno e, obviamente, recriá-las numa via paradigmática de transição.

Sabemos que o legado de Freire é denso e profundo. Destacá-lo aqui é uma tarefa incómoda, por ser inevitavelmente redutora do seu pensamento e ação enquanto educador popular, filósofo, académico, intelectual e um dos mais proeminentes arquitetos do pensamento latino americano e caribenho contemporâneos. Para além do que, ele próprio sempre convidou-nos a não aceitá-lo, mas reinventá-lo, confrontá-lo, refazê-lo e ir além dele.

Sendo assim, escolhemos introduzir alguns dos pressupostos que conformam a sua obra, e que se encontram na base de novos olhares para a produção do conhecimento, auxiliando-nos no exercício militante da educação como prática de liberdade (como o próprio salienta e que vamos encontrar a sua influência no capítulo IV, na proposta do CTC), na medida em que confronta a hierarquia perpetrada pelos paradigmas científicos

da modernidade e propõe novas relações entre subjetividade - objetividade, teoria - prática, sujeito - objeto, educador - educando.

Mais ainda, convoca-nos a desafiar à globalização hegemónica, que tendencialmente padroniza o pensamento e a ação nas sociedades modernas, a criar, incluir e lidar com a diversidade de conhecimentos produzidos, ausentes e descredibilizados, que engendram possibilidades de emancipação social (conceito e perspetiva que retomamos no final deste capítulo).

Sendo assim, entendemos que Freire concebe a objetividade e a subjetividade numa relação intrínseca, interdependente, de tal forma que uma não existe sem a outra. Esta conceção justifica-se pelo facto da objetividade dos objetos estar alicerçada na intencionalidade da consciência que atinge, no objetivado, o que ainda não se objetivou, ou seja, o objetimável. Por isso, argumenta que o objeto não é só objeto, sendo simultaneamente problema, ou seja, é

o que está em frente, como obstáculo e interrogação. Na dialética constituinte da consciência, em que esta se perfaz na medida em que faz o mundo, a interrogação nunca é pergunta exclusivamente especulativa: no processo de totalização da consciência é sempre provocação que a incita a totalizar-se. O mundo é espetáculo, mas sobretudo convocação. E, como a consciência se constitui necessariamente como consciência do mundo, ela é, pois, simultânea e implicadamente, apresentação e elaboração do mundo. (Freire, 1987, pp. 7-8)

Com esta elaboração, Freire avança no sentido de que a

intencionalidade transcendental da consciência permite-lhe recuar indefinidamente seus horizontes e, dentro deles, ultrapassar os momentos e as situações, que tentam retê-la e enclausurá-la. Liberta pela força de seu impulso transcendentalizante pode volver reflexivamente sobre tais situações e momentos, para julgá-los e julgar-se. Por isto é capaz de crítica. A reflexividade é a raiz da objetivação. Se a consciência se distancia do mundo e o objetiva, é porque sua intencionalidade transcendental a faz reflexiva. Desde o primeiro momento de sua constituição, ao objetivar seu mundo originário, já é virtualmente reflexiva. É presença e distancia do mundo: a distancia é a condição da presença. Ao distanciar-se do mundo, constituindo-se na objetividade, surpreende-se, ela, em sua subjetividade.(Ibid., p. 8)

Nesta via, reflexão e mundo, subjetividade e objetividade, são inseparáveis, pertencendo ao mesmo campo, em que a sua contraposição ocorre na implicação dialética.

Distanciando-se de seu mundo vivido, problematizando-o, “descodificando-o” criticamente, no mesmo movimento da consciência o homem se re-descobre como sujeito instaurador desse mundo de sua experiência. Testemunhando objetivamente sua história, mesmo a consciência ingênua acaba por despertar criticamente, para identificar-se como personagem que se ignorava e é chamada a assumir seu papel. (Ibid.)

Todavia, alerta sobre a confusão que se estabelece entre a subjetividade e o subjetivismo92, diferenciando, sim, o ser que sonha do ser que sonha ingenuamente.

Igualmente, a objetividade que nega a existência da subjetividade, na análise e interpretação da realidade ou na ação sobre esta, é objetivismo93.

Nem objetivismo, nem subjetivismo ou psicologismo, mas subjetividade e objetividade em permanente dialeticidade. (Ibid., 1987). Para Freire, incorrer nesta confusão significa negar a importância da subjetividade na transformação do mundo. É “cair num simplismo ingênuo. É admitir o impossível: um mundo sem homens, tal qual a outra ingenuidade, a do subjetivismo, que implica homens sem mundo”. (Ibid., p. 20)

Ressalta, ainda, que apesar da importância da subjetividade ser aparentemente inadequada, dada a praticidade objetivista em que nos encontramos imersos/as, entende que enquanto indivíduos, em processo contínuo de troca, as relações entre indivíduo e mundo são imperativas nesta análise, em especial a consciencialização desse “eu” e de seu valor no mundo.

É o saber da História como possibilidade e não como determinação. O mundo não é. O mundo está sendo. Como subjetividade curiosa, inteligente, interferidora na objetividade com que dialeticamente me relaciono, meu papel no mundo não é só o de quem constata o que ocorre, mas também o de quem intervém como sujeito de ocorrências. Não sou apenas objeto da História mas seu sujeito igualmente. No mundo da história, da cultura, da política, constato não para me adaptar mas para mudar. No próprio mundo físico minha constatação não me leva à impotência. (Ibid., 1996, p. 30)

Assim, defende que a autêntica práxis, enquanto reflexão e ação do ser humano no mundo para transformá-lo, só é possível na “solidariedade” objetividade-subjetividade, em que uma unidade dialética se forma entre ambos. Sem ela, é impossível a superação opressor-oprimido. (Ibid., 1986, p.26), uma vez que para que esta superação ocorra torna-se necessária

a inserção critica dos oprimidos na realidade opressora, com que, objetivando-a, simultaneamente atuam sobre ela. Por isto, inserção crítica e ação já são a mesma coisa. Por isto também é que o mero reconhecimento de uma realidade que não leve a esta inserção critica (ação já) não conduz a nenhuma transformação da realidade objetiva, precisamente porque não é reconhecimento verdadeiro. Este é o caso de um “reconhecimento” de caráter puramente subjetivista, que é antes o resultado da arbitrariedade do subjetivista o qual, fugindo da realidade objetiva, cria uma falsa realidade “em si mesmo”. E não é possível transformar a realidade concreta na realidade imaginária. (Ibid., p. 21)

92 Subjetivismo, tal como refere o autor, “[…] esgotando-se na mera denúncia verbal das injustiças sociais prega a transformação das consciências, deixando porém intactas as estruturas da sociedade.” (Ibid., 1981, p. 109)

93 O autor emprega o termo “objetivismo” associado à dicotomia entre objetividade e subjetividade, quer na análise da realidade ou na ação sobre esta. Para outros desdobramentos acerca desta reflexão ver: (Freire, 1987, p. 20)

Tal também acontece quando a realidade objetiva se altera, indo contra os interesses individuais ou de classe de quem estabelece o reconhecimento. Enquanto na primeira situação não se dá a inserção critica na realidade, sendo esta ficção, na segunda, a inserção põe em causa os interesses de classe do reconhecedor.

Assim, coloca-se uma situação concreta, em que existe um facto, mas tanto este em si como o seu possível resultado podem provocar adversidades. Daí a necessidade de “racionalização”, como refere o autor, não numa perspetiva de negá-lo, mas de distorcer as suas verdades. Neste caso, “a 'racionalização' 'retira' as bases objetivas do mesmo. O fato deixa de ser ele concretamente e passa a ser um mito criado para a defesa da classe do que fez o reconhecimento, que, assim, se torna falso.” (Ibid.)

Neste sentido, a “racionalização” surge como mecanismo de defesa, aproximando-se do subjetivismo. Por essa razão, a “inserção critica” é impossível, só podendo configurar-se na unidade dialética objetividade- subjetividade.

Outra dicotomia produzida na modernidade e criticada por Freire diz respeito à teoria e prática. O reverso desta lógica encontramos na proposta da Educação Popular, na América Latina e Caribe, em que se busca estabelecer a unidade dialética entre ambas para a construção de processos educativos a partir das práticas. São estas que determinam a compreensão da realidade, como deve ser abordada e como se inscrevem no tecido social. Neste sentido, o pensamento freireano é contundente, afirmando que “[…] A reflexão crítica sobre a prática se torna uma exigência da relação teoria/prática sem a qual a teoria pode ir virando blablablá e a prática, ativismo.” (Freire, 1996, p. 12)

No conjunto da obra de Freire, este afirma que a teoria está na prática, ou seja, no mesmo campo epistemológico. Como enfatizam Assumpção, Notari e Vilutis (2009, p. 153)

toda ação intencionada se baseia em conhecimentos que se expressam nela mesma, dando- lhe sentido e significado. Os novos conhecimentos produzidos a partir da práxis (ação-reflexão- ação) têm sua validação ao compreender a relação entre o universal e o particular, para explicar as situações concretas e orientar a ação.

Considerando que a práxis, enquanto prática teorizada, envolve a abordagem da teoria e prática numa unidade dialética, o novo entendimento de que “pensar e fazer” são indissociáveis nas ações que interferem e transformam a realidade

envolve o movimento dinâmico, dialético, entre o fazer e o pensar sobre o fazer. O saber que a prática docente espontânea ou quase espontânea, “desarmada”, indiscutivelmente produz é um saber ingênuo, um saber de experiência feito, a que falta a rigorosidade metódica que caracteriza a curiosidade epistemológica do sujeito. (Freire, 1996, pp. 17-18)

Esta noção de práxis, profundamente enraizada na postura de Freire como filósofo-- pedagogo-educador, é uma marca do seu discurso insistente e provocador de que

[é] preciso insistir: este saber necessário ao professor – que ensinar não é transferir conhecimento – não apenas precisa de ser apreendido por ele e pelos educandos nas suas razões de ser – ontológica, política, ética, epistemológica, pedagógica, mas também precisa de ser constantemente testemunhado, vivido. Como professor num curso de formação docente não posso esgotar minha prática discursando sobre a teoria da não extensão do conhecimento. Não posso apenas falar bonito sobre as razões ontológicas, epistemológicas e políticas da teoria. O meu discurso sobre a teoria deve ser o exemplo concreto, prático, da teoria. Sua encarnação. Ao falar da construção do conhecimento, criticando a sua extensão, já devo estar envolvido nela, e nela, a construção, estar envolvendo os alunos. (Ibid., p. 21)

Outra preocupação que está na base da epistemologia do autor diz respeito às relações entre sujeito e objeto, reconhecendo-as como uma das preocupações fundamentais da filosofia, em especial da filosofia moderna, assim como aquelas relacionadas com as abordagens da consciência e realidade; pensamento e ser; teoria e prática, em que toda tentativa de compreensão de tais relações, negligenciando a sua unidade dialética, torna- se insuficiente para explicá-las de maneira consistente.

A ruptura da unidade dialética sujeito-objeto, conducente a uma visão dicotómica, leva ora à negação da objetividade, subordinada que está aos poderes de uma consciência que a concebe ao seu agrado, ora à negação da realidade da consciência, que se transforma, assim, numa réplica da objetividade. (Freire, 1981)

Enquanto no primeiro caso, incorremos no erro subjetivista ou psicologista, (de um idealismo antidialético, nos termos pré-hegelianos) no segundo, imergimos no objetivismo mecanicista94, também antidialético.

Na verdade, nem a consciência é exclusiva réplica da realidade nem esta é a construção caprichosa da consciência. Somente pela compreensão da unidade dialética em que se encontram solidárias subjetividade e objetividade podemos escapar ao erro subjetivista como ao erro mecanicista e, então, perceber o papel da consciência ou do “corpo consciente” na transformação da realidade. […] O objetivismo mecanicista é uma distorção grosseira da posição marxista quanto à questão fundamental das relações sujeito-objeto. Para Marx estas relações são contraditórias e dinâmicas. Sujeito e objeto não se encontram dicotomizados nem

94 O termo “mecanicismo”, aplicado por Freire neste contexto, diz respeito ao seu caráter “voluntarista e [que], desprezando a rigorosa e permanente análise científica da realidade objetiva, se faz igualmente