• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 1. Um Panorama da Educação de Jovens e Adultos no Brasil

1.4 O que dizem os documentos legais sobre a EJA?

Alguns marcos na legislação educacional brasileira podem ser considerados essenciais para que se compreenda melhor a trajetória e as lutas pelo reconhecimento e consolidação da Educação de Jovens e Adultos nas políticas públicas do país. Para Lopes (2009), quando pensamos na realidade da EJA vemos que poucas mudanças legislativas ocorreram desde a criação da lei 5692/71.

De acordo com Haddad (2002b), apesar das discussões sobre a educação de jovens e adultos ser reconhecida como direito ocorrerem desde a década de 1930 no Brasil, somente através da LDB de 1971 que a escolarização daqueles que não puderam frequentar a escola durante a infância e a adolescência foi declarada um direito de cidadania. No entanto, o Estado ainda limitava seu dever em atender somente a faixa etária dos sete aos catorze anos (HADDAD, 2002b).

A Constituição Federal de 1988 ampliou o dever do Estado ao garantir o ensino fundamental público e gratuito para todos aqueles que não concluíram a escolaridade básica, independentemente da idade. Para Haddad (2002b), a nova Constituição além de reconhecer que a sociedade foi incapaz de garantir ensino básico para todos na idade considerada adequada, ela firmou uma intencionalidade política ao declarar a necessidade de propor meios para superar esta injustiça social.

Em relação ao ensino médio, a Emenda Constitucional nº 14/96 declarou a “progressiva universalização do ensino médio gratuito”, de forma que apesar deste nível de ensino não ser obrigatório para as pessoas, é dever do Estado oferecê-lo a todos que o desejarem (BRASIL, 2000a).

Logo após a promulgação da Constituição de 1988 um projeto de lei4 para a elaboração das Diretrizes e Bases da Educação Nacional foi submetido à discussão nos mais diversos fóruns educacionais do país, no qual se fizeram representar diversas entidades da sociedade civil, refletindo o jogo de interesses que a educação desperta (ROMÃO, 2007a).

Em decorrência da ampla contribuição recebida para a elaboração do projeto de lei e numa tentativa de conciliar as propostas, foi apresentado em 1989 o Projeto Octávio Elísio, posteriormente ampliado pelo senador Jorge Hage. Segundo Haddad (2002b), o Projeto buscou superar a ideia de conceber uma educação para pessoas jovens e adultas tendo como referência o ensino fundamental regular, além disso,

[...] evitou utilizar o termo Ensino Supletivo e a ideia de reposição do currículo voltado para a educação fundamental das crianças, a ser cumprido por todos aqueles que não puderam realizá-lo na idade própria. Procurou estabelecer uma concepção peculiar de educação, voltada para o universo do jovem e do adulto trabalhador que possui uma prática social, um modo de conceber a vida, uma forma de pensar a realidade. Mais do que isso, o projeto definiu que o Estado deveria criar as condições para que esse trabalhador pudesse frequentar a escola, não só abrindo horários específicos no local de trabalho, mas também garantindo escolas noturnas, após as dezoito horas, instituindo bolsas de estudos e outros direitos, como merenda escolar, livros didáticos, etc. Portanto, o Estado deveria ter uma atitude indutora, convocatória, e criar as condições para que ocorresse uma educação para o jovem e o adulto trabalhador, reconhecido como sujeito de direitos idênticos aos do restante da população. (HADDAD, 2002b, p.112- 113).

Estas considerações refletiram certa preocupação da legislação brasileira em considerar as especificidades dos jovens e adultos e suas reais possibilidades de frequentar

4

uma escola, além de manifestar um caráter democrático, visto que incorporou as sugestões da comunidade educativa brasileira (ROMÃO, 2007a).

Contudo, o discurso de desinteresse e desqualificação da educação de jovens e adultos ainda se encontrava bastante presente no governo. Isto fica evidente quando em 1995 o senador Darcy Ribeiro5 foi designado para relatar a nova LDB e, através de um golpe de relatoria, eliminou o projeto elaborado em discussão democrática ao longo de oito anos (HADDAD, 2002b; ROMÃO, 2007a).

De acordo com Haddad e Di Pierro (2000), a nova LDB aprovada em fins de 1996 resultou curta e pouco inovadora. Para os autores, as únicas novidades que seus dois artigos trazem é a integração da educação de jovens e adultos ao ensino básico comum, pois em relação à legislação anterior o ensino supletivo era considerado um sistema independente do ensino regular; e a redução das idades mínimas para a realização dos exames supletivos6.

Haddad (2002b) afirma que a LDB só veio completar um movimento de transformar a educação de jovens e adultos numa modalidade de segunda linha. O autor também aponta os seguintes aspectos que já vinham sinalizando para uma desqualificação da área:

x Alteração no inciso I do artigo 208 da Constituição, do qual retira a obrigatoriedade do poder público oferecer educação pública para jovens e adultos; x Veto do presidente da República em 1996 à consideração das matrículas das

classes de EJA das redes de ensino fundamental nos estados e municípios para recebimento dos recursos do recém criado Fundo de Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério (FUNDEF);

x Veto do presidente da República em 1996 à Lei nº 107/94 que criou o Programa Empresarial de Alfabetização de Adultos que estabelecia que empresas e órgãos públicos com mais de cem funcionários analfabetos aderissem ao Programa e instituísse classes de alfabetização no local de trabalho;

x Nenhuma menção à questão do analfabetismo, “como em um passe de mágica, o tema passou despercebido, como se a lei tratasse de uma realidade que não é a nossa” (HADDAD, 2002b, p.118).

Dessa forma, para Haddad (2002b), a LDB aborda a temática da educação de jovens e adultos de maneira parcial e sob uma ótica que prioriza a educação fundamental das crianças. O autor ainda afirma que, apesar da redação final do documento citar a consideração pelas

5 Darcy Ribeiro: antropólogo e político brasileiro que em 1977 em discurso realizado na 29ª reunião da SBPC, publicado no ano seguinte na revista Encontros com a Civilização Brasileira, sob o título de Sobre o Óbvio, expressou seu ponto de vista sobre a educação de jovens e adultos afirmando que quem acaba com o analfabetismo é a morte, tendo em vista que a maior parte dos analfabetos está concentrada nas camadas mais velhas e mais pobres da população. Dessa forma, é preciso se preocupar apenas com a educação infantil para que não se produzam novos analfabetos (ROMÃO, 2007a).

6 Fixadas em 15 anos para o ensino fundamental e 18 anos para o ensino médio. Anteriormente a esta legislação, estas idades estavam estabelecidas em 18 e 21 anos respectivamente.

características específicas da modalidade, esta atenção existe apenas para facilitar a assimilação de conteúdos selecionados a partir do modelo de ensino regular. Assim, podemos entender que nem sempre a atenção pelas especificidades dos educandos jovens e adultos representa a busca por uma concepção que tenha a intenção de romper com a organização escolar tradicional e pensar uma estrutura e modelo próprio para a EJA.

Além da LDB destacamos também algumas considerações trazidas pelo Parecer CEB 11/2000 que estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos e pode ser entendido como principal referência normativa da modalidade. O documento retoma e discute diversos pontos colocados pela LDB de 1996, além de reforçar uma concepção de EJA como representativa de uma dívida social que deve ser reparada para aqueles que não tiveram acesso e domínio da escrita e da leitura. Segundo o documento “fazer a reparação desta realidade, dívida inscrita em nossa história social e na vida de tantos indivíduos, é um imperativo e um dos fins da EJA porque reconhece o advento para todos deste princípio de igualdade” (BRASIL, 2000b, p.06).

O Parecer reconhece a EJA como parte da educação nacional e que deve possuir finalidades e funções específicas, do qual se destacam três principais: reparadora, equalizadora e qualificadora. A função reparadora significa a restauração do direito negado de acesso e permanência a uma escola de qualidade, além do reconhecimento de igualdade entre todo e qualquer ser humano deste bem real, social e simbolicamente importante que é a educação. Em diversos momentos ao longo do texto, o Parecer manifesta preocupação quanto às características específicas da modalidade, inclusive ao vincular a função reparadora como “uma oportunidade concreta de presença de jovens e adultos na escola e uma alternativa viável em função das especificidades sócio-culturais destes segmentos para os quais se espera uma efetiva atuação das políticas sociais” (BRASIL, 2000b, p.09). Diante de tais considerações, o documento sugere que seja formulado um modelo próprio para a EJA que atenda às necessidades de aprendizagem de jovens e adultos.

A função equalizadora pode ser entendida como o estabelecimento de oportunidades iguais, tanto nas inserções do mundo do trabalho como no meio social e em outras esferas de participação, readquirindo um ponto igualitário no jogo de conflito da sociedade. Para Rodrigues (2008) esta função visa também contrapor a discriminação sofrida pelos indivíduos que possuem baixa escolaridade.

Por fim, a função qualificadora visa proporcionar a todos uma atualização de conhecimentos ao longo da vida seja através de meios escolares ou não. Esta função é o próprio sentido da EJA, pois indica que:

[...] em todas as idades e em todas as épocas da vida, é possível se formar, se desenvolver e constituir conhecimentos, habilidades, competências e valores que transcendam os espaços formais da escolaridade e conduzam à realização de si e ao reconhecimento do outro como sujeito. (BRASIL, 2000b, p. 12)

Dessa forma, a função qualificadora se refere ao caráter permanente da EJA e tem como base o caráter incompleto do ser humano. É o que Freire (1987) denominava de “ser mais”, ou seja, a consciência que os homens têm de sua inconclusão e constante busca pelo conhecimento de si mesmo e das relações que os homens estabelecem no mundo e com o mundo.