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3. MÁQUINAS E EQUIPAMENTOS DISPONÍVEIS: FUNDAMENTAÇÃO

3.3. Afrodescendência

3.3.4. O racismo no Brasil

contemporaneidade, intitulado “‘Negro’, ‘Preto’, ‘Mulato’ e ‘Afrodescendente’ e o silenciamento dos sujeitos nos discursos sobre as ações afirmativas”, pontua:

Poderíamos pensar na Cartilha do Politicamente Correto como uma forma de fazer calarem-se as vozes sociais que buscam seu lugar nos discursos atuais.

Ela busca silenciar os sentidos que existem por meio de um apagamento de certas formas históricas existentes na língua portuguesa, uma forma que o Estado tem para extinguir certas identidades em detrimento da afirmação de outras. Procuram-se apagar as identidades mestiças, fruto da miscigenação ocorrida no processo sócio histórico da constituição do brasileiro, buscando a afirmação formas-sujeitos individuadas como puras (LUZ, 2012, p. 17).

Apesar das colocações de Luz (2012), e da posição do Movimento Negro, e de algumas discussões feitas em sala de aula de nosso doutoramento, acreditamos que o nome afrodescendente é o mais pertinente, tendo em vista ser um nome que não é depreciativo, por abarcar muitas nuances, por ser uma nomeação que, embora não seja livre das questões de poder, é um poder que não emana do colonizador, por ser um termo que oportuniza a desconstrução do pejorativo: imaginemos a reação de alguém que, para desqualificar outro alguém, grite em alto e bom som “negro chato”!, e o outro responde calmamente: “negro não, afrodescendente!” Tal palavra, por dispensar termos intermediários usados no processo de embranquecimento, colocaria todos em pé de igualdade, bastaria para isso que você se conscientizasse que somos um povo descendente de africanos escravizados, de índios e europeus. Entretanto, para uma mudança dessa monta, se faz necessário um longo processo de discussões na sociedade até que se esgotem todas as discordâncias e se chegue a um lugar comum.

As discordâncias não são o único problema com relação à nomeação dos africanos e de seus descendentes, pois esse processo tão utilizado de abafar, acomodar, e naturalizar as situações para que não haja momentos de reflexão, é uma postura, no mínimo, duvidosa. Vamos deixar como está, fingir que tudo está bem, quando, na realidade, são situações de acomodação nas quais um grupo está confortável enquanto o outro está muito adoecido, adoecido ao ponto de não enxergar com nitidez a situação na qual foi colocado. São situações, são formas de agir que se estabelecem em tudo que diga respeito, tanto ontem quanto hoje, à relação entre colonizador e colonizado e que se perpetuam em sociedades fruto desse processo. Daí a importância de assuntos como esse serem discutidos nas escolas, nas associações de bairro etc.

O racismo, especialmente esse racismo brasileiro, precisa ser trabalhado, discutido para que possa ser combatido.

Em 2020, às vésperas do Dia Consciência Negra – 20 de novembro, o cidadão negro João Alberto Silveira Freitas é espancado até a morte nas dependências da loja do hipermercado Carrefour no bairro Passo D'Areia, em Porto Alegre. Ainda impactados pelo slogan que percorreu o mundo logo após a morte do norte americano George Floyd – “Vidas negras importam”, brasileiros foram às ruas protestar contra o ocorrido. Esse é mais um exemplo dos muitos que colocam por terra o mito da democracia racial no Brasil, sonho ainda encrustado na cabeça de muitos brasileiros que apregoam que no Brasil não existe racismo. Dois dias depois do ocorrido, o Presidente da República, Jair Bolsonaro, sem falar explicitamente do ocorrido, durante a abertura da reunião do G20, pontua:

Somos um povo miscigenado. Foi a essência desse povo que conquistou a simpatia do mundo. Contudo, há quem queira destrui-la, e colocar em seu lugar o conflito, o ressentimento, o ódio e a divisão entre raças, sempre mascarados de ‘luta por igualdade’ ou ‘justiça social’ (BOLSONARO, em 21/11/2020 apud DW Made for Minds, 2020, n. p.)

Apesar da fala do presidente, estamos cientes que o racismo existe nesse país, que ele está impregnado em nossa sociedade, está nas entranhas, faz parte do dia a dia do povo brasileiro, e nos deparamos com ele em todos os segmentos de nossa vida pessoal e social.

Como fomos criados dentro de um sistema racista, inúmeras vezes somos racistas sem sentir, sem perceber. Djamila Ribeiro, discutindo sobre isso, fala da dificuldade de enxergarmos esse problema estrutural. Ela nos informa que mesmo para ela, filha de um militante negro, em cuja casa essas questões sempre foram debatidas, é difícil de serem percebidas com nitidez, se faz necessário pensarmos criticamente sobre o assunto e entendermos que mesmo pessoas que abominam o racismo, muitas vezes compactuaram com ele. Ela pontua:

O primeiro ponto a entender é que falar sobre racismo no Brasil é, sobretudo, fazer um debate estrutural. É fundamental trazer a perspectiva histórica e começar pela relação entre escravidão e racismo, mapeando suas consequências. Deve-se pensar como esse sistema vem beneficiando economicamente por toda a história a população branca, ao passo que a negra, tratada como mercadoria, não teve acesso a direitos básicos e à distribuição de riquezas (RIBEIRO, 2019, p. 5).

Já pontuamos acima que o processo de escravização de africanos, do ponto de vista econômico, para o processo de colonização e para o sistema capitalista que se implantava com toda força, foi muito importante. Preservar esse sistema escravocrata exigia mão firme e astúcia.

Esses escravizados precisavam se sentir enfraquecidos, diminuídos, e este é um processo que

perdura até hoje, pois o sistema capitalista precisa de mão de obra barata e de pessoas conformadas, que não questionem absolutamente nada. Esse comportamento precisa ser estimulado e, para que ele seja estimulado, se faz necessário o aniquilamento do outro. Sílvio Almeida nos conclama a entendermos que todo racismo é estrutural, é uma amálgama da sociedade, ele a sedimenta, lhe dá consistência. Ele pontua:

O racismo fornece o sentido, a lógica e a tecnologia para a reprodução das formas de desigualdade e violência que moldam a vida social contemporânea.

De tal sorte, todas as outras classificações são apenas modos parciais – e, portanto, incompletos – de conceber o racismo. Em suma, procuramos demonstrar neste livro que as expressões do racismo no cotidiano, seja nas relações interpessoais, seja na dinâmica das instituições, são manifestações de algo mais profundo, que se desenvolve nas entranhas políticas e econômicas da sociedade (ALMEIDA, 1999, p. 21).

Em Racismo Recreativo, Adilson Moreira chama a nossa atenção para o uso, com o objetivo de preservação do racismo, com o intuito de desvalorizar o negro, de piadas, brincadeiras praticadas, por brancos ou não, que fazem com que essas pessoas se divirtam às custas da mágoa e do sofrimento de outros. Quando questionados e/ou acionados juridicamente, são unânimes em informar que se tratava apenas de uma brincadeira com o intuito de diversão, e não com a intenção de machucar, desqualificar etc... Adilson Moreira, explicando os exemplos citados por ele, afirma:

Ao contrário do que as pessoas envolvidas nos casos aqui descritos argumentam, nós defenderemos a hipótese de que o humor racista não possui uma natureza benigna, porque ele é um meio de propagação de hostilidade racial. Ele faz parte de um projeto de dominação que chamaremos de racismo recreativo. Esse conceito designa um tipo específico de opressão racial: a circulação de imagens derrogatórias que expressam desprezo por minorias raciais na forma de humor, fator que compromete o status cultural e o status material dos membros desses grupos. Esse tipo de marginalização tem o mesmo objetivo de outras formas de racismo: legitimar hierarquias raciais presentes na sociedade brasileira de forma que oportunidades sociais permaneçam nas mãos de pessoas brancas (MOREIRA, 2019, p. 24).

O racismo é muito eficiente quando o objetivo é desqualificar o outro, legitimar estruturas hierárquicas, não importa a maneira como ele se apresente, pois, em qualquer situação, em todos os casos, esse racismo funcionará, sempre, como mecanismo de exclusão social das negras e negros.

O afrodescendente, nascido na Martinica, no Caribe, em 1925, Frantz Fanon, em sua obra Pele Negra, Máscaras Brancas, publicada na França em 1952, e só publicada em português em 2008, isso é, 56 anos depois, o que demonstra o pouco interesse da grande maioria

de intelectuais brasileiros pela temática do racismo, nos mostra, de forma cristalina: os efeitos maléficos na psique do homem negro e da mulher negra causados pelo racismo; o complexo de inferioridade; e a necessidade emocional do embranquecer-se. O autor caribenho indica caminhos para reverter esse processo, em uma outra obra sua, “Os condenados da Terra”, na qual pontua que: “Descolonizar é criar homens novos, modificar fundamentalmente o ser, transformar espectadores em atores da história” (FANON, 1968, p. 52). Ele acreditava piamente que esse processo de descolonização era possível, e mais adiante aponta: “A luta dos negros deve estar alinhada com a luta anticapitalista, e contra todas as formas de opressão existentes”

(FANON, 1968, p. 267).

Por falar em formas de opressão, elas podem ser identificadas em vários formatos e versões, pelo apagamento, pelo esmaecimento, por não ser dada a essa forma de opressão que é o racismo, isso em várias partes do mundo. Grada Kilomba, quando incitada a falar sobre o racismo, nos diz: “Dizendo o indizível” (KILOMBA, 2019, p. 71). Por fim, ela define o racismo apontando três de suas características: 1) a construção da diferença – o sujeito é diferente, mas diferente de quem? Do branco, o branco é a norma. Será? 2) essas diferenças construídas estão inseparavelmente ligadas a valores hierárquicos – não só o indivíduo é visto como diferente como se articulam todos os estigmas contra ele: problemático, preguiçoso. Isso gera o Preconceito; 3) por fim, o poder – político, social, econômico. É a junção do preconceito e do poder que leva ao racismo (KILOMBA, 2019). Por fim, ela define:

O racismo é revelado em um nível estrutural, pois pessoas negras e People of Color estão excluídas da maioria das estruturas sociais e políticas. Estruturas oficiais operam de maneira que privilegia manifestadamente seus sujeitos brancos, colocando membros de outros grupos racializados em uma desvantagem visível, fora da estrutura dominante. Isso é o que chamamos racismo estrutural (KILOMBA, 2019, p. 77).

Esse racismo, que provoca um estrago tão grande no indivíduo, uma desestruturação no ser, é o que Boaventura Sousa Santos cunhou de epistemicídio (grifo nosso), assunto tão bem elucidado por Suely Carneiro em sua Tese de Doutorado. Ela afirma, se apoiando no pensamento de Boaventura, que o epistemicídio se constituiu em uma das formas mais eficazes e longevas de dominação, por esconder, por abafar, por negar o conhecimento do outro, do dominado. É um processo de destruição da cultura e civilização do outro. Esse foi o modo empreendido pelo colonialismo capitalista que, precisando de mão de obra barata para que seus lucros aumentassem cada vez mais, empreendeu o processo de escravização do povo africano na maior tragédia vista pela humanidade – a diáspora negra (CARNEIRO, 2005).

As consequências dessa diáspora no Brasil são enormes e nefastas para nossa população, com um percentual em torno de 56,0% de negros, conforme tabela do Programa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (IBGE, 2020). Cumpre aqui ressaltar que negros, para o IBGE, é a soma de pretos e pardos, que são, portanto, a maioria da população. Entretanto, a superioridade numérica não se reflete na sociedade brasileira.

Somos a maioria da população brasileira, mas não somos a maioria de alfabetizados, não somos a maioria dentro das universidades, não somos a maioria na representação política, não somos a maioria a receber melhores salários. Muito pelo contrário, somos a maioria vivendo em favelas, somos a maioria dos assassinados, somos a maioria dos que recebem menores salários, somos a maioria dos desempregados, e tudo isso é fruto do processo de escravização que perdurou no Brasil por quase 400 anos, fruto nefasto do colonialismo/capitalismo, assentado no conceito de raça.

Por tudo o que foi dito acima é que temos que comungar com as ideias de Djamila Ribeiro, para quem não basta não ser racista, é preciso ser antirracista. Ela nos conclama a nos informarmos mais sobre o racismo; a enxergarmos a negritude; a reconhecermos os privilégios da branquitude; a percebermos o racismo internalizado em cada um de nós; a apoiarmos políticas educacionais afirmativas; a transformarmos o nosso ambiente de trabalho; a lermos autores negros; a nos questionarmos em relação à cultura que estamos consumindo; a conhecermos nossos desejos e afetos; a combatermos a violência racial; enfim, a que sejamos todos antirracistas (RIBEIRO, 2019).

Conscientes dos malefícios do racismo é que, em 2019, como professora de um Curso Superior em Tecnologia do Design de Moda, enxergando a fresta existente, propusemos à Diretoria de Extensão do Campus Teresina Zona Sul-CTZS do Instituto Federal do Piauí – IFPI um curso de extensão intitulado “Atelier de Práticas Educativas: o que se aprende com um desfile de moda afro?” O curso foi aceito e ministrado nas dependências do Memorial Esperança Garcia.