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4 MULTIPARENTALIDADE: A POSSIBILIDADE DO RECONHECIMENTO

4.2 O RECONHECIMENTO PELO STF DA MULTIPARENTALDIADE NO

REPERCUSSÃO GERAL 622

Após se deparar com uma série de decisões sobre a possibilidade ou não do reconhecimento da parternidade socioafetiva, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), realizada em 21 de setembro de 2016, entendeu que a existência de paternidade socioafetiva não exime de responsabilidade o pai biológico. Por maioria de votos, os ministros negaram provimento ao Recurso Extraordinário (RE) 898.060-SC, com repercussão geral reconhecida,

92 Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. 93 PAIANO, Daniela Braga. A Família Atual e as Espécies de Filiação: Da Possibilidade Jurídica da Multiparentalidade, p. 155

em que um pai biológico recorria contra acórdão que estabeleceu sua paternidade, com efeitos patrimoniais, independentemente do vínculo com o pai socioafetivo94.

A conclusão alcançada, pela maioria do STF, foi, altamente, corajosa e ousada, dado que expressou um rompimento com o dogma antiquíssimo segundo o qual cada pessoa só pode ter apenas um pai e uma mãe. Este campo tão delicado como o da família, cercado de tantos “pré-conceitos” de origem religiosa, social e moral, e, por muitas vezes hipócrita, que cerca a sociedade brasileira, demostra a como foi audaciosa a decisão em análise. Portanto, o STF adotou um posicionamento bastante claro e objetivo, em sentido absolutamente oposto ao modelo da dualidade parental adotada e consolidada na tradição civilista e construído à luz da chamada “verdade” biológica95.

No entanto, essa verdade biológica, cada vez mais, encontra-se em decadência, vista aos abandonos afetivos dos pais biológicos, como também, através das atuais configurações de famílias que já existentes ou as que estão sendo criadas com as evoluções da sociedade, dessa forma, há uma maior necessidade de reconhecimentos desses novos pais afetivos, seja por pedido deles ou dos filhos, visto que ambos merecem tratamento igualitário ao ter esse direito autorizado.

Esse fenômeno, portanto, provocou o Supremo Tribunal Federal, que ao julgar o Recurso Extraordinário nº 898.060, que tratava da prevalência socioafetiva em detrimento da paternidade biológicam, fixiou uma tese na Repercursão Geral 622, que assume caráter histórico e, por assim dizer, bastante revolucionário, demonstrando a necessidade do reconhecimento da pluriparentalidade, embasada nos princípios constituicionais dignidade da pessoa humana, da busca a felicidade, a afetividade, da paternidade responsável96

94 CASSETTARI, Christiano. Multiparentalidade e parentalidade socioafetiva: efeitos jurídicos, p. 116 95

TARTUCE, Flávio. STF, Repercussão Geral 622: multiparentalidade e seus efeitos.

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Recurso Extraordinário. Repercussão Geral reconhecida. Direito Civil e Constitucional. Conflito entre paternidades socioafetiva e biológica. Paradigma do casamento. Superação pela Constituição de 1988. Eixo central do Direito de Família: deslocamento para o plano constitucional. Sobreprincípio da dignidade humana (art. 1º, III, da CRFB). Superação de óbices legais ao pleno desenvolvimento das famílias. Direito à busca da felicidade. Princípio constitucional implícito. Indivíduo como centro do ordenamento jurídico-político. Impossibilidade de redução das realidades familiares a modelos pré-concebidos. Atipicidade constitucional do conceito de entidades familiares. União estável (art. 226, § 3º, CRFB) e família monoparental (art. 226, § 4º, CRFB).Vedação à discriminação e hierarquização entre espécies de filiação (art. 227, § 6º, CRFB). Parentalidade presuntiva, biológica ou afetiva. Necessidade de tutela jurídica ampla. Multiplicidade de vínculos parentais. Reconhecimento concomitante. Possibilidade. Pluriparentalidade. Princípio da paternidade responsável (art. 226, § 7º, CRFB). [...] 2. A família, à luz dos preceitos constitucionais introduzidos pela Carta de 1988, apartou-se definitivamente da vetusta distinção entre filhos legítimos, legitimados e ilegítimos que informava o sistema do Código Civil de 1916, cujo paradigma em matéria de filiação, por adotar presunção baseada na centralidade do casamento, desconsiderava tanto o critério biológico quanto o afetivo. 3. A família, objeto do deslocamento do eixo central de seu regramento normativo para o plano constitucional, reclama a reformulação do tratamento jurídico dos vínculos parentais à luz do sobreprincípio da dignidade humana (art. 1º, III, da CRFB) e da busca da felicidade. [...] 5. A superação de óbices legais ao pleno desenvolvimento das famílias construídas pelas relações afetivas interpessoais dos próprios indivíduos é corolário do sobreprincípio da dignidade humana. 6. O direito à

Nessa esteira, por maioria de votos, o STF fixou a tese de Repercussão Geral 622 no Recurso Extraordinário RE 898.060/SC, em que ficou definido que a existência de paternidade socioafetiva não exime de responsabilidade o pai biológico. Sendo fixada a tese que estabelece: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios97”.

Assim, o STF reconheceu de uma só vez o instituto da paternidade socioafetiva mesmo à falta de registro, tema esse que ainda encontrava resistência em parte da doutrina; afirmou que a paternidade socioafetiva não é uma paternidade de segunda categoria diante da paternidade biológica; e abriu as portas para a chamada “multiparentalidade” no sistema jurídico brasileiro98.

Por esse motivo esse entendimento deve ser adotado em todo o país, sem rediscussão do caso já pacificado pelo STF.

busca da felicidade, implícito ao art. 1º, III, da Constituição, ao tempo que eleva o indivíduo à centralidade do ordenamento jurídico-político, reconhece as suas capacidades de autodeterminação, autossuficiência e liberdade de escolha dos próprios objetivos, proibindo que o governo se imiscua nos meios eleitos pelos cidadãos para a persecução das vontades particulares. [...] 7. O indivíduo jamais pode ser reduzido a mero instrumento de consecução das vontades dos governantes, por isso que o direito à busca da felicidade protege o ser humano em face de tentativas do Estado de enquadrar a sua realidade familiar em modelos pré-concebidos pela lei. [...] 10. A compreensão jurídica cosmopolita das famílias exige a ampliação da tutela normativa a todas as formas pelas quais a parentalidade pode se manifestar, a saber: (i) pela presunção decorrente do casamento ou outras hipóteses legais, (ii) pela descendência biológica ou (iii) pela afetividade. [...] 12. A afetividade enquanto critério, por sua vez, gozava de aplicação por doutrina e jurisprudência desde o Código Civil de 1916 para evitar situações de extrema injustiça, reconhecendo-se a posse do estado de filho, e consequentemente o vínculo parental, em favor daquele utilizasse o nome da família (nominatio), fosse tratado como filho pelo pai (tractatio) e gozasse do reconhecimento da sua condição de descendente pela comunidade (reputatio). 13. A paternidade responsável, enunciada expressamente no art. 226, § 7º, da Constituição, na perspectiva da dignidade humana e da busca pela felicidade, impõe o acolhimento, no espectro legal, tanto dos vínculos de filiação construídos pela relação afetiva entre os envolvidos, quanto daqueles originados da ascendência biológica, sem que seja necessário decidir entre um ou outro vínculo quando o melhor interesse do descendente for o reconhecimento jurídico de ambos. 14. A pluriparentalidade, no Direito Comparado, pode ser exemplificada pelo conceito de “dupla paternidade” (dual paternity), construído pela Suprema Corte do Estado da Louisiana, EUA, desde a década de 1980 para atender, ao mesmo tempo, ao melhor interesse da criança e ao direito do genitor à declaração da paternidade. Doutrina. 15. Os arranjos familiares alheios à regulação estatal, por omissão, não podem restar ao desabrigo da proteção a situações de pluriparentalidade, por isso que merecem tutela jurídica concomitante, para todos os fins de direito, os vínculos parentais de origem afetiva e biológica, a fim de prover a mais completa e adequada tutela aos sujeitos envolvidos, ante os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e da paternidade responsável (art. 226, § 7º). 16. Recurso Extraordinário a que se nega provimento, fixando-se a seguinte tese jurídica para aplicação a casos semelhantes: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”96

. BRASIL, Supremo Tribunal Federal, Recurso Extraordinário

nº 898069, Relator: Min. Luiz Fux. 21 setembro, 2016.

97Ainda que o Tribunal não tenha utilizado a expressão “parentalidade socioafetiva”, a alusão à “paternidade

socioafetiva” deve ser entendida como abrangente da maternidade socioafetiva. A exclusão da maternidade socioafetiva importaria tratamento desigual para situações equivalentes do mundo da vida, o que contrariaria os pressupostos sobre os quais o Tribunal decidiu. Portanto, há seu reconhecimento implícito.

O IBDFAM - Instituto Brasileiro de Direito de Família, entidade com supremacia com relação ao estudo desse direito, atuou na qualidade de amicus curiae (amigo da corte), durante o julgamento supramencionado, e, sustentou que a igualdade de filiação – a distinção entre filhos legítimos e ilegítimos – deixou de existir com a Constituição de 1988. O instituto defende que as paternidades, socioafetiva e biológica, sejam reconhecidas como jurídicas em condições de igualdade material, sem hierarquia, em princípio, nos casos em que ambas apresentem vínculos socioafetivos relevantes. Considera, ainda, que o reconhecimento jurídico da parentalidade socioafetiva, consolidada na convivência familiar duradoura, não pode ser impugnada com fundamento exclusivo na origem biológica99.

Tal fato, não é visto como uma novidade, no sentindo que, o IBDFAM no IX Congresso Brasileiro de Direito de Família, em Araxá, em 22 de novembro de 2013, reconheceu o instituto multiparentalidade e seus efeitos jurídicos, em seu enunciado nº 9100.

Porém, mesmo diante de todo um entedimento jurisprudencial e dessa decisão do Supremo Tribunal de Justiça, a jurisprudência ainda não é pacificada quanto à possibilidade ou não da aplicação concomitante da paternidade socioafetiva e biológica, por enteder que não tem previsão expressa em lei. Vejam-se, nessa tocada, ementa de decisão da Corte de Justiça Gaúcha:

APELAÇÃO. DIREITO CIVIL FAMÍLIA. AÇÃO DE

RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE. ANULAÇÃO DE

REGISTRO CIVIL. MULTIPARENTALIDADE. IMPOSSIBILIDADE. Em que pese tenha o STF, ao analisar a Repercussão Geral 622, admitido a possibilidade do reconhecimento da multiparentalidade, a alteração no registro civil de uma criança constando o nome de dois pais é situação não prevista em lei, o que impossibilita o reconhecimento da pretensão recursal. RECURSO DESPROVIDO. 101

Assim, é possível verificar que o tema da multiparentalidade ainda gera uma insegurança jurídica, pois a falta de legislação, para os juízes positivistas, provocando um problema quanto a sua configuração e reconhecimento.

Há várias circunstâncias cabíveis que podem dar ensejo à ocorrência da

99 CASSERATTI, Christiano. Multiparentalidade e parentalidade socioafetiva: efeitos jurídicos, p. 117 100

Os Enunciados serão uma diretriz para a criação da nova doutrina e jurisprudência em Direito de Família, já que existe deficiência no ordenamento jurídico brasileiro. A votação foi promovida pela diretoria da entidade junto a seus membros. De acordo com os diretores do Instituto, que tem entre seus integrantes os juristas Giselda Hironaka, Luis Edson Fachin, Maria Berenice Dias, Paulo Lôbo, Rodrigo da Cunha Pereira, Rolf Madaleno, Zeno Veloso, dentre outros inúmeros especialistas.

101 BRASIL. Apelação Cível Nº 70073977670, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Liselena Schifino Robles Ribeiro, Julgado em 16/08/2017

multiparentalidade, um exemplo, é o fenômeno das famílias recompostas, ou seja, famílas formadas por casais que trouxerem filhos de casamentos ou uniões anteriores, sendo essa uma das causas mais corriqueiras formas de família multipla. Porém, nem todas as circunstâncias familiares estão abarcadas pela multiparentalidade.

Portanto, reconhecer a simultaneidade dos vínculos biológicos e afetivos através da Repercussão Geral 622 foi um grande no ordenamento jurídico pátrio, todavia, um regramento mais específico pode gerar uma maios segurança para os possíveis casos, trazendo benefícios, como garantir o direito a dignidade da pessoa humana, da busca da felicidade, da igualdade, da afetividade, que é vista como o principal fundamento das relações familiares, compondo um instrumento de realização pessoal de seus integrantes, formando raízes, inclusive, na Constituição Federal.