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4 MULTIPARENTALIDADE: A POSSIBILIDADE DO RECONHECIMENTO

5.2 PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE

Com a construção evolutiva da família, do período primitivo ao contemporâneo, o crescimento da importância do afeto nas relações familiares expandiu-se. Alguns movimentos sociais do século XX iniciaram o período de ascensão dos afetos nas relações familiares, levando a algumas alterações no direito de família, a exemplo do surgimento da união estável e de outras entidades familiares.

Impulsionado por esta evolução, surgiu o princípio da afetividade, um princípio jurídico ainda implícito na Constituição Federal Brasileira de 1988131, que foi incentivado juntamente com o princípio da dignidade da pessoa humana. Este princípio acabou se

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COSTA, Arthur de Oliveira Calaça. DIREITO À BUSCA DA FELICIDADE: ANÁLISE DO PRINCÍPIO ENUNCIADO NO JULGAMENTO DA ADPF 132 À LUZ DA TEORIA DE RONALD DWORKIN.

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No espectro legislativo, a Constituição Federal de 1988 foi, sem dúvida, o marco inicial desse novo tema no Direito brasileiro, sendo possível constatar o reconhecimento implícito da afetividade nas suas disposições (arts. 226, § 4º, 227, caput, §§ 5º e 6º). O Código Civil, por sua vez, tutela situações afetivas em diversos dos seus dispositivos (por exemplo: arts. 1.511, 1.583, § 2º, 1.584, § 5º, e 1.593). A legislação esparsa subsequente é recorrente na remissão à afetividade quando da regulação dos conflitos familiares, o que pode ser percebido claramente na “Lei Maria da Penha” (Lei nº 11.340/2006), na Lei da Adoção (Lei nº 12.010/2009), na Lei da Alienação Parental (Lei nº 12.318/2010) e também na denominada “Lei Clodovil” (Lei nº 11.924/2009).

tornando um dos principais elementos na construção doutrinária e jurisprudencial da família plural contemporânea. Demonstrando que a relação familiar não é estabelecida apenas pela união e semelhança genética, mas sim, pelo afeto, convivência família de igualdade entre os cônjuges, companheiros e filhos, que visam a natureza cultural e não somente a biológica da entidade familiar132.

Ademais, o princípio da afetividade faz fortalecer a igualdade entre irmãos, sendo eles biológicos ou não e, o respeito a todos os seus direitos fundamentais, além do forte sentimento de solidariedade recíproca, que não pode ser perturbada pelo prevalecimento dos interesses exclusivamente patrimoniais.

Ricardo Calderón133 esclarece que o princípio da afetividade é um dos principais norteadores para relações humanas contemporâneas, que a sociedade o adotou como meio de estabelecer as relações familiares, principalmente, a partir do final do século XX. Algo contraditório, pois com os avanços tecnológicos, ficou bem mais fácil a apuração do vínculo biológico, através do exame de DNA. Neste passo, ao mesmo tempo em que houve esse avanço quanto a facilitação da descoberta do vínculo genético, a ligação afetiva também se tornou socialmente suficiente e importante para as famílias.

No momento, as situações existenciais caracterizadas pela marca da afetividade, abrolhou a importância da verificação do caso em concreto, o que consequentemente, poderá levar a uma assimilação jurídica. Observando por esse ângulo, no cenário atual, o elemento que tem ênfase no núcleo familiar é o elo afetivo, que se identificado é merecedor de reconhecimento jurídico e tutela. Diferentemente, do que acontecia, anteriormente, em um período não muito distante, onde os critérios que prevaleciam no reconhecimento jurídico de uma relação familiar de conjugalidade ou de parentalidade, os conhecidos vínculos matrimoniais, biológicos e registrais, eram completamente diferentes.

Nesta continuidade, a exteriorização das manifestações de afeto, poderia ser captada pelos filtros do Direito, pois fatos jurídicos representativos de uma relação afetiva são assimiláveis. Em contrapartida, é notório que o afeto em si é efetivamente um sentimento que por muitas vezes é incompreensível, imensurável, fato que é desaconselhado aos juristas que se aventurem nessa apuração. Consequentemente, resta tratar juridicamente apenas das

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Lôbo esclarece que o princípio da afetividade é o que “fundamenta o direito de família na estabilidade das relações socioafetivas e na comunhão de vida. Recebeu grande impulso dos valores consagrados na Constituição de 1988 e resultou da evolução da família brasileira, nas últimas décadas do século XX refletindo-se na doutrina jurídica e na jurisprudência dos tribunais. O Princípio da afetividade entrelaça-se com os princípios da convivência familiares da igualdade entre cônjuges, companheiro e filhos, que ressaltam a natureza cultural e não exclusivamente biológica da família”. LÔBO, Paulo. Direito Civil – Famílias. Volume 5, p. 72-73

condutas que são exterioriza em relação ao afeto (afetividade), afastando-se da temática do amor. Nesta perspectiva, distinguir os significados de amor, de afeto, afetividade e socioafetividade, é importante para um melhor tratamento jurídico do tema,

Dessa forma, o amor para o Direito é um estranho; o afeto é um sentimento que diz respeito a sua própria alma, tendo um aspecto subjetivo, que não tem como ser compreendido de forma direta pelo direito; no entanto, quanto a afetividade, esta é a atividade que exterioriza o afeto, em atos concretos de sentimento afeito por outrem, esses atos representativos, são captáveis pelo Direito, e, por consequência, são usuais como meio de prova; e, a socioafetividade é o reconhecimento social de uma dada manifestação de afetividade, e a visão da coletividade sobre uma relação afetiva, esta repercussão também é absorvida pelo direito, podendo ser usada igualmente como meio de prova134.

Já para Lôbo135, o principio da afetividade não se confunde com afeto, pois o afeto, como fato psicológico ou anímico, ou seja, um sentimento da mente e da alma, conquanto, a afetividade é obrigação atribuída aos pais em relação aos filhos e destes em relação àqueles, para tal, o jurista, ainda entende que mesmo que haja desamor ou desafeição entre eles. O princípio jurídico da afetividade entre pais e filhos apenas deixa de ocorrer com a morte de um dos sujeitos ou se houver perda da autoridade parental.

Na esteira do que vem sendo exposto, o atual grande vetor das relações familiares é a afetividade, todavia, o direito deve atribuir distinções entre ele e aos demais conceitos de outras áreas, como a Psicologia, a Psiquiatria , Psicanálise, dentre outras. Ou seja, ainda que se tenha uma análise transdisciplinar, é inarredável aportar em uma tradução jurídica, que não

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CALDERÓN, Ricardo. Princípio da Afetividade no Direito de Família.

135 A afetividade, como princípio jurídico, não se confunde com o afeto, como fato psicológico ou anímico, porquanto pode ser presumida quando este faltar na realidade das relações; assim, a afetividade é dever imposto aos pais em relação aos filhos e destes em relação àqueles, ainda que haja desamor ou desafeição entre eles. O princípio jurídico da afetividade entre pais e filhos apenas deixa de incidir com o falecimento de um dos sujeitos ou se houver perda da autoridade parental. Nas relações entre cônjuges e entre companheiros o princípio da afetividade incide enquanto houver afetividade real, pois esta é pressuposto da convivência. Até mesmo a afetividade real, sob o ponto de vista do direito, tem conteúdo conceptual mais estrito (o que uni as pessoas com objeto de constituição familiar) do que o empregado nas da psique, na filosofia, nas ciências sociais, que abrange tanto o que uni quanto o que desune (amor e ódio, afeição e desafeição, sentimentos de aproximação e de rejeição). Na psicopatologia, por exemplo, a afetividade e estado psíquico global com que a pessoa se apresenta e vivem em relação às outras pessoas e aos objetos, compreendendo o estado de ânimo ou humor, os sentimento, as emoções e as paixões e reflete sempre a capacidade de experimentar sentimentos e emoções. Evidentemente essa compreensão abrangente do fenômeno é inapreensível pelo direito, que opera selecionando os fatos da vida que devem receber a incidência da norma jurídica. Por isso, sem qualquer contradição, poder referir a dever jurídico de afetividade oponível a pais e filhos e aos parentes em si, em caráter permanente, independentemente dos sentimentos que nutram entre si e aos cônjuges e companheiros enquanto perduram a convivência. No caso dos cônjuges e companheiros , o dever de assistência, que e desdobramento do princípio jurídico da afetividade (e do princípio fundamental da solidariedade que perpassa ambos), pode projetar seus efeitos para além da convivência, como prestação de alimentos e o dever de segredo sobre a intimidade e a vida privada. LÔBO, Paulo. Direito Civil – Famílias. Volume 5, p. 72-73

deve restar atrelada a aspectos inapreensíveis concretamente. Tendo em vista que o Direito labora com fatos jurídicos concretos, esses devem ser os alicerces que demarcarão a significação jurídica da afetividade.

Destarte, a visão jurídica da afetividade deve ser feita por uma lente objetiva, ou seja, na averiguação ao fato concreto, não podendo ser só levado em conta o afeto em sim, mas a exteriorização dele, a afetividade, sendo esta a que será capitada pelo sistema jurídico atual.

A partir dessas observações, Calderón em seu estudo, destacou que o princípio da afetividade jurídica possui duas dimensões: a subjetiva, que se refere ao afeto anímico em si, o sentimento propriamente dito, e a objetiva, que é retratada pela presença de eventos que demonstram a exteriorização da afetividade, isto é, fatos sociais que indiquem a presença de uma manifestação afetiva; percebe-se que a verificação dessa dimensão subjetiva certamente foge ao Direito, e, portanto, será sempre presumida, permitindo dizer que, uma vez constatada a presença da dimensão objetiva da afetividade, restará desde logo presumida a sua dimensão subjetiva136.

Neste interim, sustenta-se que o reconhecimento da afetividade, ou da socioafetividade, é representando pelo reconhecimento de manifestações afetivas concretas no meio social. Mesmo, que inicialmente possa parecer uma tarefa complica para o Direito lidar, posto é um tema um tanto subjetivo, outros temas igualmente subjetivos são apurados de maneira similar pelos sistemas jurídico.

Para ajudar quanto ao estudo do tema, o Instituto Brasileiro de Direito de Família- IBDFAM137, aprovou diversos enunciados, com vários deles trazendo relações afetivas subjacentes ao seu conteúdo. Confiram-se:

No que concerne às jurisprudências, o Superior Tribunal de Justiça, na sua função constitucional de zelar pela melhor aplicação da lei e de harmonização a interpretação do ordenamento jurídico, esteve debruçado em várias oportunidades ao tratar da afetividade. Notou-se, no entanto, que a definição de afetividade poderia variar conforme a função que o princípio desempenha, mudando, de acordo com o tipo de processo judicial que será julgado. Nas ações judiciais que tratam de relações familiares entre pais e filhos138, o tribunal associa a

136 CALDERÓN, Ricardo. Princípio da Afetividade no Direito de Família.

137 Enunciado6 - Do reconhecimento jurídico da filiação socioafetiva decorrem todos os direitos e deveres inerentes à autoridade parental.

Enunciado7 - A posse de estado de filho pode constituir paternidade e maternidade. Enunciado8 - O abandono afetivo pode gerar direito à reparação pelo dano causado. Enunciado9 - A multiparentalidade gera efeitos jurídicos.

Enunciado 10 - É cabível o reconhecimento do abandono afetivo em relação aos ascendentes idosos.

138Ação de negatória de paternidade, sob alegação de erro por ocasião do Registro Civil, o tribunal entendeu que no caso em concreto o vínculo socioafetivo já tinha se configurado e considerou prescindível a comprovação da

expressão afetividade como sinônimo de vínculo afetivo. Por outro lado, ao tratar do abandono afetivo no campo da responsabilidade civil139, a afetividade assume contornos de dever de cuidado.

Dados os argumentos apresentados, vislumbra-se que a afetividade assumiu a centralidade como elemento nuclear no Direito de Família brasileiro contemporâneo, com projeções legislativas, doutrinárias e jurisprudenciais. Importa assimilar essa amplitude e, em paralelo, avançar no sentido de uma adequada verticalização na sua tradução jurídica, tornando a afetividade como um dos melhores indicadores para soluções nos conflitos familiares.

5.3 A EFETIVAÇÃO DA MULTIPARENTALIDADE ATRAVÉS DA APLICAÇÃOS DOS