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PARTE II – ENQUADRAMENTO TEÓRICO (REVISÃO DA LITERATURA)

CAPÍTULO 2 – ENQUADRAMENTO DOS SERVIÇOS DE DESPORTO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

2.2. O SECTOR PÚBLICO: EVOLUÇÃO E NOVOS DESAFIOS

O sector público representa a base da sociedade em que vivemos e cria a estrutura de desenvolvimento (Halvorsen, Hauknes, Miles e Røste, 2005). Na maior parte dos países desenvolvidos, o sector público representa tipicamente entre um quarto e metade de toda a actividade económica (Potts, 2009) e o seu impacto no emprego é de cerca de 20 por cento (Windrum, 2008). No entanto, o sector público apresenta características muito diversificadas e, para Fukuyama (2006), a política no século XX foi fortemente moldada por controvérsias sobre a dimensão e importância adequadas do Estado.

Ao nível nacional, o Estado providencia serviços de defesa, ordem, transporte, comunicações, saúde, educação, entre outros. Alguns destes serviços podem ser prestados pelo sector privado e, em determinadas realidades, existe uma transferência das competências do Estado para entidades privadas. Não obstante o debate das razões e espaços de intervenção públicos e privados não se enquadrem no tema deste estudo, é importante compreender que, mesmo que o sector público esteja fora dos “mecanismos do preço”, está dentro da economia e, portanto, é legítimo falar de eficiência dos serviços públicos, como também é legítimo falar de outros aspectos, tais como a incerteza, o risco, a criatividade e inovação no sector público (Potts, 2009).

Procurando estruturar a análise do âmbito das funções do Estado e a força das instituições públicas, Fukuyama (2006) propõe a utilização de uma matriz de eficiência para situar os diferentes Estados (Ver Figura 2.2.1.).

Figura 2.2.1. - Estadismo e eficiência

Âmbito das funções do Estado

F o rç a d a s i n s ti tu iç õ e s p ú b lic a s Quadrante I

Quadrante III Quadrante IV Quadrante II

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Os quadrantes da matriz apontam para consequências muito diferentes ao nível do crescimento económico. O quadrante I combina um âmbito limitado das funções do Estado com uma forte eficácia institucional. O crescimento económico terminará se um Estado se mover demasiado no sentido da origem do eixo e fracassar na realização de tarefas simples (como proteger os direitos de propriedade) mas supõe-se que o crescimento regredirá à medida que os Estados se movem mais para a direita ao longo do eixo do X.

O quadrante II representa um maior investimento do Estado nas questões sociais e, do ponto de vista económico, o pior local para estar nesta matriz é o quadrante IV, onde um Estado ineficaz assume uma ambiciosa série de actividades que não pode realizar bem.

Embora seja claro que os países podem movimentar-se ao longo do tempo nesta matriz, também é consensual que existem diferenças assinaláveis entre, por exemplo, os Estados Unidos e o modelo Europeu. Realmente, na Europa as preocupações sociais e o intervencionismo do Estado são superiores ao que ocorre nos Estados Unidos. Esse facto verifica-se nos diversos sectores de actividade, incluindo, como é natural, o sector do Desporto.

Como se pode constatar, estabelecer as fronteiras do sector público não é simples, existindo diversas áreas cinzentas na definição das fronteiras entre o público e o privado e os arranjos nacionais (considerando as estruturas da administração pública central) ou locais (analisando as estruturas da administração pública local) caracterizam-se pela sua diversidade.

Os critérios que são utilizados para avaliar a eficácia dos serviços públicos não são claros como no sector privado em que o efeito do mercado se faz sentir (Potts, 2009). Nos últimos anos, a configuração do sector público modificou consideravelmente, englobando um conjunto muito alargado de organizações que afectam directamente a vida do dia-a-dia das pessoas (Windrum, 2008). Djellal e Gallouj (2008) identificam três tipos de estruturas organizacionais no sector público: as empresas públicas (ao nível nacional ou municipal), os serviços públicos como a saúde ou a educação e, finalmente, a administração pública (nacional ou local).

No presente estudo, a unidade de análise são as estruturas responsáveis pela prestação dos serviços públicos de desporto, enquadradas na administração pública local, nomeadamente ao nível das Câmaras Municipais. Contudo, e para melhor compreender a realidade destas entidades, importa analisar a evolução e desafios actuais da administração pública portuguesa.

Neves (2003) procurou evidenciar um conjunto de características da administração pública portuguesa que exigiam mudanças e justificavam uma reforma (Tabela 2.2.1.).

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Tabela 2.2.1. – Características da administração pública portuguesa

Características Justificação

Insuficiente clarificação da missão e articulações

A maior parte dos organismos não precisa a sua missão, dispersando a sua acção por um conjunto diversificado de acções nem sempre dirigidas aos problemas e destinatários mais relevantes.

Necessidade de definir políticas claras de afectação de recursos

Os recursos da administração pública são dirigidos na sua grande maioria para as questões da soberania, questões sociais e de ensino, tendo uma intervenção reduzida nos campos económico e de qualidade de vida.

Peso excessivo dos trabalhos cujos destinatários são o Governo ou a Administração

A acção da administração pública está, em grande medida, direccionada para o Governo e para outros sectores da própria administração pública. As acções dirigidas para a sociedade representam um valor inferior.

Peso excessivo da Administração

Central A esmagadora maioria dos funcionários estão afectos à administração central. Grande concentração da Administração

em Lisboa

A grande maioria dos serviços da administração pública estão situados em Lisboa.

Fraco grau de autonomia A maioria dos órgãos da administração pública não tem autonomia administrativa e financeira.

Grande dispersão de entidades

Metade das entidades públicas possui entre 1 e 100 trabalhadores, verificando-se uma dispersão elevada de organismos.

Fraco nível de interacções externas A esmagadora maioria das entidades não estabelece relações com outras entidades públicas ou privadas.

Baixa produtividade

Verifica-se desempenhos muito diferenciados, resultantes da falta de clarificação dos objectivos organizacionais e qualidade de gestão muito diferenciada.

Envelhecimento e baixa qualificação

dos recursos humanos Mais visível em determinadas áreas da administração pública, nomeadamente na administração local. Desmotivação dos funcionários Resultante da qualidade das lideranças e da ausência de recompensas pelo desempenho. Uso das tecnologias de informação e

comunicação

Pouca ligação a alterações nos modelos organizacionais e nos processos de trabalho.

Predomínio de modelos de gestão burocráticos

Centrados mais no cumprimento de normas do que nas pessoas e resultados.

Formas de organização do trabalho e processos de trabalho pouco inovadores

Fortemente influenciados pelas formas tayloristas de divisão do trabalho, dificultando a adequação das respostas à resolução de problemas concretos.

Fonte: Adaptado de Neves (2003)

O processo de globalização, o aumento da importância da competitividade à escala mundial e o rápido desenvolvimento das novas tecnologias da informação e comunicação provocaram a necessidade da administração pública reagir perante uma sociedade em rápida evolução, sob pena de não conseguir acompanhar o seu ritmo de desenvolvimento e perder a sua utilidade e legitimidade, enquanto veículo condutor da acção do Estado, estando totalmente desenquadrada e desajustada da realidade dos cidadãos (Franco, 2005).

A introdução de práticas de gestão oriundas do sector privado foi uma das soluções que a administração pública encontrou para procurar evoluir, o que tem ajudado a diluir a fronteira entre o que é público e o que é privado. Porém, esta mudança de paradigma não foi global, simultânea e pacífica.

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As opções seguidas pelo Estado, constatada que foi a desadequação do anterior modelo ao contexto socioeconómico e tendo em mente a sua reforma administrativa, procuraram ser direccionadas para uma diminuição da intervenção estatal em prol de acções de carácter mais regulador e menos interventivo.

Nolasco (2004) ao caracterizar os principais marcos de modernização da administração pública portuguesa, identifica três períodos: o primeiro, que decorreu entre 1974 e 1985, caracteriza-se por uma preocupação com as questões da descentralização e desconcentração de competências e com a situação profissional, social e económica dos funcionários (a Lei de Bases da Reforma administrativa surge neste período, destacando as ideias de desburocratizar, racionalizar e simplificar. No início da década de oitenta aparece, pela primeira vez, a modernização como um objectivo explícito do programa do governo); num segundo período, que decorre entre 1985-1995, imperaram as prioridades decorrentes da tendência internacional, comummente designada por “Nova Gestão Pública” (New Public

Management), que se reflectiram na promoção de uma nova cultura organizacional, centrada

nas necessidades dos clientes da Administração Pública; finalmente, um terceiro período iniciou-se em meados da época de noventa e prolonga-se até à actualidade, sendo caracterizado por um entendimento alargado do conceito de “serviço público”, pela introdução em ritmo acelerado das questões relacionadas com o Governo Electrónico e com a cultura de medição da “performance” organizacional orientada para os resultados. Disso são exemplos a criação do Sistema Integrado de Avaliação do Desempenho da Administração Pública (SIADAP) (Lei 10/2004) e a promoção da utilização da CAF (Common Accessment

Framework).

O papel desempenhado pelo cidadão é o elemento diferenciador dos principais modelos de reforma da administração pública. Bilhim (2004: 8) considera que “existem três modelos de

Administração Pública nos nossos dias: o tradicional ou burocrático, o liberal ou de menor Estado e o do novo serviço público ou do Estado parceiro do cidadão”. O modelo tradicional

baseia-se numa racionalidade do «homem administrativo», contrapondo leis e procedimentos administrativos a valores e a pessoas em concreto. O modelo liberal é centrado numa Administração Pública mínima, submetida ao rigoroso controlo político e afirma-se pela racionalidade do «homem económico». Neste modelo pode enquadrar-se a nova gestão pública, onde se define o cidadão como cliente, dando-lhe a possibilidade de escolher entre os diversos serviços públicos e entre estes e os privados, procurando melhorar a qualidade e a eficiência dos mesmos. O modelo do novo serviço público parte do modelo tradicional e fá-lo evoluir integrando posteriormente aspectos positivos, como a opção pela valorização da pessoa humana e pela integração do cidadão nas opções políticas, sem descurar a boa gestão. Actualmente assiste-se a alguma inflexão na aplicação das abordagens da teoria da gestão na sua forma pura à administração pública, em virtude de um reforçado vigor das teorias da cidadania democrática. Como refere Liegl (1999), existe a consciência que os cidadãos podem contribuir para uma administração pública mais receptiva e amiga do cidadão muito antes do

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fim da cadeia, quando a política é implementada e eles adquirem o mero papel de consumidores. Isto pode ser conseguido juntando os direitos cívicos de participação ao modelo da nova gestão pública, para que os cidadãos possam intervir antes e durante o processo administrativo de implementação de cada política pública.

Os modelos que se baseiam numa perspectiva participativa defendem que as organizações públicas operam num ambiente político e respondem perante os cidadãos e não perante clientes. Estes modelos ganharam relevância, sobretudo nos anos 90 do século passado, época em que os governos consideravam difícil legitimar as suas acções sem o envolvimento público activo. Foi neste período que as propostas de modernização da administração fizeram a apologia de organizações mais horizontais e da melhoria do desempenho organizacional através do envolvimento dos funcionários e dos cidadãos nas suas decisões, ambos os grupos largamente subestimados pela gestão burocrática tradicional (Carapeto e Fonseca, 2006). Bilhim (2001) refere que nos modelos participativos, o cidadão passou a ser considerado accionista do Estado, podendo não só contribuir para a mudança de Governo nos períodos eleitorais, mas passando também a receber permanentemente da administração a informação que a torna transparente assim como os meios necessários para uma intervenção esclarecida. Assim, a administração pública começa a ser receptiva à cidadania, pensando estrategicamente mas agindo democraticamente, valorizando a cidadania e o serviço público acima da capacidade empreendedora e pretendendo servir não apenas clientes mas cidadãos, a quem presta contas e com os quais dialoga.

Como afirma Garcia (2005), a cidadania activa exige uma qualificação própria, de modo a distinguir o cidadão activo como consumidor, por exemplo, do cidadão activo no que diz respeito aos desígnios da sociedade da qual é membro. Madureira e Rodrigues (2006) chamam a esta tendência de envolvimento dos cidadãos na gestão do sector público a “governance”, entendida esta como a gestão de redes complexas, compostas por actores diversos (com aprendizagens, expectativas e comportamentos diferenciados), por grupos de pressão, grupos políticos, instituições sociais e empresas privadas. A existência de conflitos de interesses entre estes actores leva à necessidade de uma gestão pública que não imponha unilateralmente a sua vontade, mas que “saiba mediar o diálogo entre os diversos actores

intervenientes no processo público/político” (Madureira e Rodrigues, 2006: 157).

A opção pelo modelo de serviço público referido por Bilhim (2004) será, sem dúvida, de uma perspectiva genérica, o mais aconselhável, mas as características da envolvente local podem ser determinantes no sucesso ou insucesso da sua implementação. Na verdade, para que a administração pública possa alterar e modernizar os seus procedimentos, o recurso à implementação de novas tecnologias não é suficiente, tornando-se necessário o desenvolvimento de novos comportamentos decorrentes de uma nova percepção dos modelos de atitudes que devem estar subjacentes a uma nova ordem organizacional (Madureira e Rodrigues, 2006).

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Uma tendência nos serviços públicos modernos é a orientação para a inovação (Borins, 2000, 2001, 2002; O‟Connor, Roos e Vickers-Willis, 2007; Potts, 2009) em que a reforma administrativa poderá ser encarada como um projecto integrado, complexo e diversificado onde é realmente necessária uma gestão atenta e conciliadora dos diversos actores, dos seus comportamentos e das suas expectativas, de forma a que seja possível unir vários interesses em torno de um desígnio comum.

A administração pública, no contexto deste estudo, é, portanto, actor e objecto de inovação (Neves, 2003) constituindo-se como o maior desafio para este sector de actividade.

As consequências da inovação no sector público são, no entanto, controversas. Alguns autores identificam melhorias na capacidade do sector público responder aos desafios da sociedade moderna, enquanto outros identificam dificuldades na prestação de serviços públicos e um afastamento crescente dos cidadãos.

Regressando a Fukuyama (2006), uma questão prévia deve ser colocada no estudo da inovação no sector público tem a ver com o papel do Estado na sociedade actual e com as suas metas e finalidades, considerando que o perfil e a dimensão da administração pública dependerão, basicamente, das funções que se atribuam ao Estado (Carapeto e Fonseca, 2006: 19).

No caso específico da prestação dos serviços públicos de desporto, o principal desafio que se coloca aos Estados passa por descobrir novas formas de conciliar as conquistas históricas do Estado democrático com as abordagens necessárias à modernização da administração pública, enquadrados no âmbito e na força de intervenção do Estado neste sector específico.

2.3. AS AUTARQUIAS LOCAIS: CARACTERÍSTICAS E EVOLUÇÃO