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2. AS EMPRESAS FAMILIARES E A GOVERNANÇA CORPORATIVA

2.2 Governança corporativa

2.2.1 O surgimento e os marcos históricos da governança

Abordar a origem da governança corporativa requer o cuidado de resgatar os aspectos histórico- econômicos que sustentaram seu surgimento. Vários fatores históricos contribuíram para a estruturação do sistema capitalista, que, em última análise, desencadeou nas décadas de 1980 e 1990 o que Andrade e Rosseti (2006) denominaram como o “despertar da governança corporativa”.

Conforme exposto no trabalho seminal de Berle e Means de 1932, The modern corporation and

private property, a riqueza na forma de capital acionário foi se dispersando e a propriedade e o

controle das grandes companhias, organizadas na forma de sociedades anônimas deixou de estar nas mãos dos proprietários do capital acionário, que se tornaram proprietários passivos. Assim, na maior parte delas a administração estruturou-se desligada da propriedade, sendo que a direção executiva passou a ser efetivamente a “proprietária” das companhias (ANDRADE e ROSSETI, 2006).

Conforme se verifica em um trecho da obra clássica A Riqueza das Nações, de Adam Smith, a preocupação com a separação entre a propriedade e a gestão já era considerada em seus trabalhos, que, em pleno século XVIII, repudiava tal forma de organização:

Entretanto, sendo que os diretores de tais companhias [empresas de sociedade anônima] administram mais do dinheiro de outros do que o próprio, não é de esperar que dele cuidem com a mesma irrequieta vigilância com a qual os sócios de uma associação privada frequentemente cuidam do seu. [...] Por conseguinte, prevalecem sempre e necessariamente a negligência e o esbanjamento, em grau maior ou menor, na administração dos negócios de uma companhia. É por isso que as companhias de capital acionário para o comércio exterior raramente têm sido capazes de sustentar a concorrência contra aventureiros privados. (SMITH, 1996; p. 256).

Dessa forma, além do surgimento das sociedades anônimas, que remonta aos séculos XVII e XVIII, representadas por companhias “licenciadas”, como a Companhia das Índias Orientais, outros fatores também foram determinantes para a evolução do sistema capitalista, como: a doutrina econômica liberal, a Revolução Industrial, o desenvolvimento tecnológico incessante e o agigantamento das corporações, que aprofundou a separação entre a propriedade e a gestão. Todos esses fatores em conjunto, historicamente, contribuíram para o refinamento do sistema capitalista, levando a uma necessidade cada vez maior de práticas capazes de direcionar e regular as relações entre os proprietários e os administradores no mundo corporativo moderno.

Mas qual é a necessidade de essa relação ser regulada? A necessidade de mecanismos capazes de harmonizar as relações existentes nas organizações ocorre devido à existência do denominado “problema de agência”, resultado da dispersão do capital de controle, resultante tanto do financiamento das companhias via emissões e ofertas públicas de ações quanto do inexorável processo de partilha da propriedade pela sucessão dos acionistas fundadores, geração após geração. Com a dispersão, não se mantém a sobreposição inicial da propriedade e da gestão e como consequência os acionistas dispersos outorgam a gestores não proprietários a administração

das companhias, depositando nos outorgados a confiança de que cuidem tão bem de seus interesses quanto eles próprios cuidariam. Mas este processo envolvia riscos de desvios de conduta, antecipados pela literatura econômica clássica (Adam Smith, entre outros) e depois comprovados pela atenta observação da realidade corporativa. Dessa forma, a ideia subjacente é que em algumas situações os interesses dos acionistas (proprietários) e os interesses dos administradores da empresa não estão perfeitamente alinhados.

Andrade e Rosseti (2006) apresentam dois axiomas que sintetizam as principais razões para a ocorrência dos conflitos de agência: o axioma de Klein e o axioma de Jensen e Meckling. Partindo da concepção de Alchian e Demsetz (1972) de que as organizações são constituídas por um nexo de contratos que envolvem não apenas acionistas e gestores, mas também os demais

stakeholders, é possível perceber a multiplicidade de questões e a imprevisibilidade de possíveis

contingências que os contratos teoricamente deveriam contemplar. Dessa forma, o axioma proposto por Klein (1985), baseia-se na inexistência do contrato completo. Ou seja, seria praticamente impossível (ou, no mínimo, com um custo de transação proibitivo) a configuração de um contrato perfeito capaz de explicitar a tomada de decisão específica para todas as situações vivenciadas no âmbito da organização. Com isso, consequentemente, concede-se aos gestores o direito residual de controle da empresa, resultante do livre arbítrio necessário para a tomada de decisões em resposta a eventos não previstos. Tal liberdade pode, em alguns momentos, servir mais aos interesses próprios dos gestores do que aos dos acionistas, desembocando no conflito de agência.

Por sua vez, o axioma de Jensen e Meckling (1976) diz respeito à inexistência do agente perfeito. Em outras palavras, fundamenta-se na hipótese de que a natureza humana é utilitarista e racional, conduzindo os sujeitos a maximizarem uma “função utilidade” centrada mais em seus interesses e objetivos. Nessa visão, é improvável que os objetivos de terceiros direcionem os indivíduos a serem tão eficazes quanto o são na busca de seus próprios interesses. Assim, o comportamento oportunista dos agentes estaria enraizado na sua própria natureza, reforçando o conflito de agência.

No entanto, essa visão, baseada em empresas com estruturas de propriedades pulverizadas, tem sido criticada em trabalhos que propõem uma abordagem distinta, como a de La Porta, Lopez-de- Silanes & Shleifer (1998), que argumentam que em grande parte do mundo verifica-se uma

estrutura de propriedade concentrada em alguns acionistas majoritários, em vez de pulverizada em pequenos proprietários (a descrição de Berle e Means, portanto, estaria em consonância com Países como os Estados Unidos e o Reino Unido). Sob essa nova perspectiva, o problema de agência deixa de ser o conflito entre gestores e proprietários, e passa a ser entre acionistas minoritários e majoritários. Se em uma estrutura pulverizada os gestores possuem incentivos a agir de forma oportunista, na estrutura concentrada são os acionistas controladores que tendem a tal comportamento, influenciando o controle da empresa em proveito próprio.

Quanto aos marcos constitutivos da moderna governança corporativa, Andrade e Rosseti (2006) destacam três episódios que desempenharam um papel ímpar: o ativismo de Robert Monks; o relatório Cadbury; e os princípios da OCDE.

Em um contexto marcado por práticas oportunistas por parte dos administradores, causada pela dispersão da propriedade, somada à apatia dos acionistas, é que se insere o ativismo de Robert Monks, que defendeu a tese de que as organizações que possuem acionistas, focados no monitoramento eficaz de sua gestão, adicionam mais valor e geram mais riquezas do que as empresas que não possuem o mesmo acompanhamento. Assim, uma das observações cruciais de Monks é que a falta de envolvimento dos proprietários passivos propiciava a hegemonia dos gestores. Tais acionistas apoiavam-se na lei do mínimo esforço por entenderem que seu retorno seria constante, independente de sua postura em relação às empresas. Porém, Monks sinaliza que tais retornos tenderiam a se elevar caso os acionistas assumissem uma postura ativa, participando e monitorando as ações dos executivos.

Dessa forma, Monks atuou em diversas frentes, defendendo, por exemplo, a participação efetiva dos fundos de pensão nas companhias, o que, em 1988, resultou na oficialização pelo Departamento do Trabalho dos EUA da obrigatoriedade de os administradores desses fundos exercerem o direito de voto de suas ações. Além disso, Monks denunciou o veto à participação de acionistas nos Conselhos de Administração, publicou obras pioneiras, como Power and

Accountability (1992) e Corporate Governance (1995), e, para provar sua tese de que um

acionista presente e ativo elevaria o desempenho das corporações, fundou, em parceria com Nell Minow, o fundo Lens Investment Management, cujo objetivo era investir em ações de corporações com problemas, intervindo agressivamente para mudar a gestão, para produzir

O segundo pilar constitutivo da moderna governança é representado pelo Relatório Cadbury, finalizado em 1992, o qual foi fruto de um comitê criado no Reino Unido, presidido por Adrian Cadbury, para a elaboração de um código de melhores práticas de governança corporativa. Tal iniciativa foi uma resposta às pressões de grupos de interesse que denunciavam a atuação viciosa dos Conselhos de Administração, que criavam entraves para minoritários e outsiders. Dessa forma, o Comitê Cadbury focou prioritariamente a prestação responsável de contas (accountability) e a transparência (disclosure), fortalecendo os canais de comunicação entre os acionistas, os conselheiros e a direção executiva, enfatizando a responsabilidade dos conselheiros e executivos na divulgação de informações para os acionistas e outras partes interessadas. O Relatório Cadbury serviu de base para a elaboração de códigos de melhores práticas de governança em outros países, como Canadá, Estados Unidos, França e Austrália.

O terceiro marco apresentado como de grande impacto para a governança corporativa foi a difusão internacional, em 1999, pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), dos princípios da boa governança. A OCDE congrega os 30 países industrializados mais desenvolvidos e mantém relações com mais de 70 outros países. Sua motivação para o desenvolvimento de tais princípios deveu-se à crença de que as boas práticas de governança podem auxiliar a constituição de mercados de capitais maduros e confiáveis, que, por sua vez, conduzem ao crescimento dos negócios e ao desenvolvimento econômico das nações. As principais recomendações da OCDE, apresentadas aqui de forma sucinta, ancoram-se nas ideias de que:

não existe um modelo único de governança, sendo que cada país deve configurar seus preceitos levando em consideração suas características culturais, jurídicas e econômicas; os governos devem desempenhar um papel de destaque na criação de uma estrutura

reguladora que atenda aos interesses dos acionistas e de outras partes interessadas;

os princípios de governança devem ser visualizados a partir de sua natureza evolutiva, demandando revisões sempre que ocorrerem mudanças significativas no contexto das organizações ou de seu entorno.

Além disso, após a divulgação de sua versão revisada, em 2004, os princípios da OCDE também incorporaram a ideia de que a governança deve evoluir do modelo shareholder, focado no interesse dos acionistas, para o modelo stakeholder, a fim de atender às expectativas legítimas das outras partes interessadas na corporação.