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O tornar-se mulher

No documento MATERNIDADE Experiências traumáticas (páginas 71-77)

4 SOBRE A SEXUALIDADE INFANTIL

4.4 O tornar-se mulher

Tomemos agora como referência o pensamento freudiano acerca da feminilid de Será m ternid de um dos destinos do “torn r-se mulher “? Simone de Beauvoir (1980), a partir da premissa psicanalítica de que na constituição da sexualidade feminina existe algo de enigmático, mais além da problemática edípica da Castração, cunhou no segundo volume de seu livro O segundo sexo (1980) o forism “Não se n sce mulher: torna-se mulher” filósof e teóric feminist reconhecia, assim, que nenhum destino biológico, econômico e psíquico define a forma que a mulher assume na sociedade. Ou seja, parece que as faces e as versões assumidas pelo feminino – o tornar-se mulher – que ocupam um lugar central na teoria e prática psicanalítica sustentou a elaboração teórica de Beauvoir sobre o sexo feminino.

Para Freud a reflexão sobre o enigma da feminilidade, está inserido num contexto traumático uma vez que ela, a feminilidade, assinala desde o início da criação do método psicanalítico, algo que é da ordem de um encontro traumático com o real. Partiremos da afirmativa freudiana inserido no texto A feminilidade: “ tr vés d históri , pesso s tem quebr do c beç com o enigm d n tureza feminin ” (FREUD, 1933, p. 114). Uma dificuldade inconquistável explicitada na recomendação final do autor de que o leitor se dirija aos poetas para melhor saber da feminilidade (FREUD, 1933, p 134) Porém é o próprio Freud quem firm : “[...] a situação feminina só se estabelece se o desejo do pênis for substituído pelo desejo de um bebê, isto é, se um bebê assume o lugar do pênis, consoante numa primitiva equivalência simbólica ” (FREDU, 1933, p. 128). É sobre essa afirmativa, inserida na lógica fálica, que pretendemos abordar a maternidade mesmo correndo o risco de esbarrar em todas as questões que ela suscita no debate atual sobre gênero. Nossa hipótese de reedição de um trauma na experiência da maternidade requer pensar o desejo de ter um filho relacionado aos complexos de Édipo e castração.1

Retornemos, pois, à principal questão, ou seja, a indagação sobre a maternidade. Freud, entendendo que a criança é dotada de uma disposição bissexual, reconhece que para ambos os sexos a fase fálica é marcada por intenso prazer emanado do pênis no menino e do pequeno clitóris na menina. Nesse momento parece que a vagina não exerce influência em ambos porque não foi ainda descoberta. Porém, para seguir o caminho da feminilidade, Freud acreditava que o clitóris deverá total ou parcialmente transferir sua sensibilidade para a vagina. O que não se aplica ao menino, que mantém no pênis o centro de sua sexualidade iniciada

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Apesar da relevância dada nesse trabalho à lógica fálica, não podemos nos furtar a citar as outras considerações acerca do feminino do fim do percurso teórico freudiano em 1937, precisamente no texto Análise terminável e interminável. Nesse momento Freud anuncia que a feminilidade não estaria mais restrita ao feminino, mas sim relativo ao sujeito, seja homem ou mulher. Nesse contexto, o complexo de castração seria designado como um processo de elaboração de uma identidade sexual e, a feminilidade como um reposicionamento frente à castração. Os vernáculos feminino, sexualidade feminina e feminilidade foram utilizados de forma indiscriminada ao longo dos escritos freudianos e pós freudianos e uma avaliação mais profunda se faz necessária para o melhor entendimento desses termos, o que esse estudo não tem como propósito. Entretanto, de forma resumida, é legítimo se dizer que o feminino se refere a posição feminina na dialética fálica (masculino-fálico-atividade e feminino-castrado-passividade); a sexualidade feminina designa o destino da sexualidade da mulher também na lógica fálica e a feminilidade indica um erotismo sem o falo como eixo central, inaugurando novas possibilidades de inscrição do sujeito na cultura como singularidade e diferença. Essa nova vertente do pensamento psicanalítico tem algumas implicações onde se destacam a desvinculação do fator biológico na caracterização das categorias sexuais e a associação da diferença sexual à uma construção psíquica. Dessa forma, a virilidade em homens e a maternidade em mulheres seriam possíveis vicissitudes inscritas pela a anatomia, porém, não mais determinada por ela.

na era edipiana. Para a menina, ainda é necessária, a mudança do amor objetal. A mãe será substituída pelo pai e daí para a sua escolha de objeto definitivo. Portanto, para a mulher é preciso que haja transformação tanto da zona erógena quanto do objeto a quem será direcionado seu amor.

A trilha para a sexualidade não se mostra simples para ambos os sexos, mas, no que concerne às mulheres poder-se-ia pensar que a fase pré-edipiana, aquela intensamente ligada à mãe é de tamanha importância, a ponto de ser esse o momento que certamente mais contribui para o destino da sexualidade da mulher na vida madura. A rivalidade com o pai que existe no complexo de Édipo, também se mostra presente, e com igual intensidade, nessa era anterior de ligação da menina com a mãe, tornando-se relevante o conhecimento dessa fase para o entendimento da feminilidade.

“Será, então, de nosso agrado conhecermos a natureza das relações libidinais da menina com sua mãe ” (FREUD, 1933, p. 120). O que Freud levantou com essa frase, certamente, foi a semelhança da fantasia de ser seduzida pelo pai, típico do complexo de Édipo nas mulheres, com a sedução fantasiada pelas meninas em relação a mãe na era pré-edipiana. De fato, foi a mãe quem estimulou a menina pela primeira vez nos seus cuidados iniciais, promovendo sensações prazerosas nos genitais. Mas a troca do objeto de amor para as meninas não se faz tão simples. Traz a reboque um sentimento de hostilidade e ódio. Ódio esse que pode durar por toda a vida, parte dele ser superado, ou permanecer sempre um remanescente. Freud acreditava, também, que os eventos dos anos subsequentes a esse período influenciariam muito no destino do ódio à mãe. Exemplo disso, seria a chegada de um irmão, que sempre se apresenta de forma inesperada para a criança, traduzindo para ela como uma partilha indesejada e trazendo a sensação de ter recebido pouco leite de sua mãe. A avidez pelo primeiro alimento, a satisfação primordial, seria impossível de saciedade. A criança não supera o sofrimento de perder o seio materno. Entretanto, o que vai mobilizar significativamente esse ódio, e, consequente desvinculação da menina com a mãe, é o complexo de castração. A menina não perdoa a mãe pela falta do pênis e, portanto, estarem em desvantagem. A castração se reitera pela visualização do sexo oposto. Mantém uma inveja do pênis e um desejo incontrolável de tê-lo que, perdura por muitos anos, persistindo no inconsciente Freud consider v que ess engren gem “complexos de Édipo-c str ção” oÉdipo-corri m em mbos os sexos, diferenç residiri n intensid de e n

maior importância que se apresentava nas meninas. Em outras palavras, a castração para as meninas se refere à responsabilização da mãe por isso.

A descoberta de sua castração mostra, para as meninas, alguns caminhos de desenvolvimento, a saber: inibição, masculinidade e feminilidade. O amor antes dirigido a mãe fálica, com a castração, aguça na menina sua hostilidade por ela e a afasta como objeto de amor. Na inibição observa-se o abandono da atividade masturbatória, o repudio à mãe, e, repressão de suas inclinações sexuais, desenvolvidas até aquele momento. Com o predomínio da masculinidade, a inicial inveja do pênis suscitou não uma repressão da atividade sexual, mas sim, uma exacerbação da mesma, onde a menina assume o papel da mãe deposta e castrada, tentando se sentir superior com a satisfação que seu clitóris pode lhe oferecer. Seguindo o caminho da feminilidade, a menina abandona a masturbação, volta-se para o seu pai para receber o pênis perdido e por equivalência simbólica deseja receber um filho dele. Freud também abordou o fato da menina desejar um bebê anteriormente, mas ainda na fase fálica ligada à mãe, porém, considerou-o como uma identificação à mãe e não um passo para a feminilidade. Brincando de bonecas, por exemplo, a menina se identifica com a mãe, sendo a boneca ela própria. Mais uma brincadeira infantil que transforma a passividade em atividade. Mais tarde, com o desejo de ter um pênis, e, sua transformação em um desejo de ter um bebê obtido de seu pai, através da brincadeira da boneca-bebê, a menina realiza o maior desejo feminino. A entrada, então no complexo de Édipo, traz juntamente a hostilidade para com a mãe em paralelo ao amor ao pai do qual recebe tudo. É, então, pela castração que a menina inicia o complexo de Édipo, e não o contrário, como nos meninos. O complexo de castração prepara a menina para o Édipo; ela se vê forçada a abandonar sua ligação com a mãe pela inveja do pênis, e mergulha na situação edipiana como um refúgio (FREUD, 1933, p. 129). Podem permanecer nessa fase por um período indeterminado, destruindo-o de forma tardia e muitas vezes incompleto, sendo para Freud um prejuízo para a formação do supereu quando, comparado aos meninos. Para estes, por se tratar de uma total devastação edipiana o recalque é também completo e mantém robusto o núcleo do supereu masculino herdado. No caso feminino, pela dissolução suavizada do complexo de Édipo, o recalque não se dá na mesma intensidade e o supereu é menos voraz.

A mulher permanece, dessa forma, dentro de um emaranhado de possibilidades, sendo influenciado por várias fases da vida da menina de intenso

investimento libidinal. Levando-se em consideração sua história pré-edipiana, sua feminilidade fica dependente das perturbações causadas pelos fenômenos masculinos (fálicos) dessa fase. É possível, acreditava Freud, ocorrerem regressões às fases pré-edipianas, numa alternância onde ora teremos períodos de masculinidade, e ora de feminilidade. Além disso, Freud atribuiu à feminilidade maior quantidade de narcisismo, de modo que para ela, ser amada é mais importante que amar. Também a vergonha e a vaidade, características presentes nas mulheres, Freud sempre as conectou à inveja do pênis e a tentativa de superar essa deficiência.

A escolha objetal para a mulher, indubitavelmente, sofre determinação pela complexidade de estruturação. O vínculo demasiado ao pai pode determinar uma escolha segundo o tipo paterno, por exemplo. Porém, a hostilidade herdada da mãe, pode se alastrar para o novo objeto, mostrando a total ambivalência do conflito da mulher. Na transformação da mulher em mãe, pode ser revivida uma identificação com a própria mãe, contra qual havia uma batalha. Ambas as fases da menina, a pré-edipiana, onde se apoia a vinculação afetuosa com a mãe, e, a edipiana, quando elimina a mãe e toma seu lugar junto ao pai, podem permanecer juntas no futuro da vida de uma mulher. Para Freud, a fase da ligação de amor materno, pré-edipiana, seria de maior valor e decisiva, pois encontram-se aí os preparativos para a aquisição das características com as quais exercerá mais tarde seu papel sexual e social.

O que se pode destacar, portanto, é a problemática da maternidade. Retomando Elisabeth Badinter, a mulher esteve aliada a criança, sendo essa última considerada a riqueza da humanidade no final do século XVIII. Para essa finalidade foi, então, a maternidade concebida como algo da ordem instintiva do ser da mulher. Essa finalidade biológica delinearia sua inserção no campo social restringindo a mulher ao espaço privado e atendendo as demandas da reprodução (BIRMAN, 2001, p. 56).

Também é importante destacar a questão, colocada de forma contraditória, entre o erotismo feminino e a suposta vocação instintiva da mulher para a reprodução. Nesse contexto o discurso freudiano foi bastante crítico, sustentando a positividade do desejo feminino, ao escutar as histéricas e propor a teoria da sexualidade infantil perversa e polimorfa como pano de fundo para o desenvolvimento da sexualidade humana. Destaque fundamental para a instalação

dos complexos de Édipo e de castração na gênese da feminilidade, que marca de forma decisiva, conforme já descrito, os caminhos da sexualidade feminina.

Se a maternidade faz parte do tornar-se mulher, para algumas, há que se pensar o que pode vir a partir disso. A reedição da sua rivalidade com sua mãe, o reencontro com a menina que queria oferecer um filho ao seu pai, o reaparecimento da sexualidade adolescente e a forma inesperada que se apresenta o parto, devem determinar o nascimento de uma nova mulher, que poderá viver as atualizações dos traumas passados junto com seu filho que também acaba de nascer. Esse duplo nascimento necessita, portanto, ser acolhido para que as transformações que possam advir sejam melhor compreendidas.

No documento MATERNIDADE Experiências traumáticas (páginas 71-77)