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Sobre a pulsão de morte

No documento MATERNIDADE Experiências traumáticas (páginas 42-49)

3 ESTUDOS SOBRE TRAUMA

3.5 Sobre a pulsão de morte

A Europa por volta de 1918 mostrou aos psicanalistas inúmeros casos de neuróticos de guerra que configuraram uma mudança de olhar dos eventos psíquicos. De certa forma, os neuróticos de guerra puseram à prova a teoria do trauma desenvolvida até então. Freud acreditava que a neurose traumática do pós-guerra resultava de uma fixação no momento do evento traumático que passava a

ser reeditado nos sonhos ou em forma de ataques que pareciam transportar o sujeito ao momento do acidente. A diferença desse comportamento em relação aos traumas até então descritos e tratados pela psicanálise, é que a revivência não é alucinatória, visto que o indivíduo sabe que o fato traumatizante não está ocorrendo novamente. Até então os psicanalistas explicavam a neurose traumática como sexu l e originári d tenr infânci É, pois, em “ psic nálise e s neuroses de guerr ”, de 1919, que Freud descreve que os sintomas da neurose traumática derivam de uma cisão do eu: um eu pacífico, antigo e um novo eu, dessa vez guerreiro e bélico, conforme exigia sua nova situação de soldado no combate. Na tentativa de unificar sua teoria, Freud declarava na época que o psiquismo de cada sujeito estaria sob a égide das neuroses espontâneas com seu caráter sexual e infantil. Além disso, esses acometimentos primitivos, estruturantes ou não, são fundamentais para se entender o comportamento desses mesmos sujeitos em situações traumáticas ocorridas na vida adulta. Cito, então, Nestor Braunstein (2003) para melhor explicar o pensamento freudiano em relação ao trauma primordial.

Freud nunca deixou de considerar que o trauma implicava sempre uma ação intencional de mais alguém, do Outro, que estava incluído. Esse caráter sexual, transobjetivo, interpretável, do trauma com relação entre um corpo e um desejo que lhe é estranho é a diferença principal entre Freud e seus predecessores franceses (Charcot e os irmãos Jules e Pierre Janet). (BRAUNSTEIN, 2003, p. 97).

Já em 1920, no texto “ lém do princípio do pr zer”, Freud dá início à chamada segunda tópica da teoria, quando se interpõem três instâncias ao complexo aparelho psíquico, até então constituído por Ics, Pcs e Cs: o isso, o eu e o supereu. A dualidade pulsional agora está evidenciada entre a pulsão de vida e a pulsão de morte. Não era mais possível a oposição pulsão sexual e pulsão de autoconservação, visto que num corpo erógeno, essas forças apresentam-se englobadas numa só, em oposição à pulsão de morte que se mostra como tentativa de descarga total de energia ou busca pela satisfação plena. Haveria uma tendência do aparelho a manter-se livre da excitação ou minimamente constante, configurando o legado do princípio do prazer. Todo desprazer corresponde a um aumento das quantidades de excitação e o prazer a uma diminuição das mesmas.

Entretanto, o fenômeno clínico da compulsão à repetição surpreende Freud. Como explicar que nos sonhos dos neuróticos haja um retorno à situação

traumática? “Se sonho é sinal de desejo, podemos afirmar que nos neuróticos a condição de sonhar estaria perturbada e afastada de seus propósitos? Ou podemos pensar em tendências masoquistas do eu?” (FREUD, 1920, p. 24).

A observação das atitudes das crianças foi outro elemento que tornou possível identificar a repetição. A brincadeira do desaparecimento e retorno (Fort-Da), quando fazem desaparecer objetos para depois achá-los, mimetiza a experiência da falta materna e a satisfação quando a mesma retorna. É a passagem da passividade da experiência traumática para a atividade do jogo. Numa outra alusão, Freud exemplifica os adultos quando fazem alguma representação artística, sobretudo nas tragédias, transmitindo aos espectadores as mais penosas experiências, porém sentidas como altamente prazerosas. Portanto, mesmo com a dominância do princípio do prazer pode-se retornar ao que é desagradável num tema relembrado na mente. A compulsão a repetição seria uma tentativa de submeter ou inscrever psiquicamente um excesso pulsional que foi traumático. E essa repetição no sonho, longe de ser apenas sinal de um desejo, também não está a serviço do prazer, mas sim participa da execução da tarefa de fazer a ligação dessa energia, promovendo uma escrita psíquica.

Volt ndo à “C rt 52” é possível verific r que, c so lgum c rg energétic não esteja amarrada à cadeia de representações, esta permanecerá como uma memória congelada sem conseguir atingir o inconsciente sob o mecanismo do recalque. Porém a ideia de Freud nesse texto, demonstrando o processo de transcrições e retranscrições não consegue explicar essa não representatividade. Foi, então que, a partir de 1920, Freud propõe o modelo metafórico da vesícula viva, para explicar o quão dinâmico é o funcionamento do aparelho psíquico. A vesícula viva funcionaria como uma linha fronteiriça entre o interior englobando o sistema perceptivo-consciência e o exterior situando espacialmente esse sistema. O aparelho psíquico estaria, sob essa lógica, em contato com o exterior e teria, ao mesmo tempo, todo o aparato de memória no seu interior. Nessa perspectiva, então, o trauma poderia ser resultado de uma impressão perceptiva de muita intensidade que romperia a vesícula viva atingindo a consciência sem entrar na engrenagem da representação. Essas seriam, então, as marcas descritas na carta de 1896. O trauma também, nesse aspecto, estaria intimamente vinculado ao pulsional. A ideia do inassimilável, do que foge ao representável, retoma seu valor em termos que vão além do princípio do prazer que, até então vigorava na teoria. O recalque agora não

estaria mais como única engrenagem psíquica para dominar o trauma e, a ideia das reminiscências histéricas não conseguia explicar a força pulsional não representativa.

Os traumas, então, seriam efeitos produzidos no aparelho psíquico pela ineficácia da dominação desses estímulos pelo mesmo. É o excesso pulsional que fere a vesícula viva e leva a ruptura das defesas egóicas não sendo submetido ao princípio do prazer. A forma inesperada com que essa energia pulsional pode surgir é também um fator que contribui para o aumento da sua intensidade traumática. A repetição do evento traumático nos sonhos parece ser uma tentativa de dominação do estímulo. Também na vigília a repetição de certos comportamentos pelo indivíduo parece discernir nele um traço de caráter que permanece sempre o mesmo, sendo compelido a expressar-se por uma repetição das mesmas experiências. Freud questiona a forma peculiar que eventos catatróficos parecem repetir-se por si para aqueles que o experimentam. Como se o destino assim estabelecesse eventos aos quais os sujeitos estariam submetidos e que não tivessem controle sobre eles. O trauma emergiria, então, de um ato inesperado que se repete a partir de um evento que não pode ser deixado para trás. Em todas essas as situações, a psicanálise mostra que esses desfechos são produzidos pelas próprias pessoas e determinados por influências infantis remotas. No aparelho psíquico a compulsão a repetição é tomada como algo mais básico do que o princípio do prazer, e como algo que responde justamente às situações traumáticas, dolorosas, causadoras de grande sofrimento. (RUDGE, 2003).

Port nto, vir d feit em 1920 com o “ lém do princípio do pr zer”, Freud mostrou que é possível considerar uma vivência fora do registro das representações e do princípio do prazer. O excesso pulsional agora pode não ser representado, mas atuado. O princípio do prazer não dá conta desse transbordamento pelo qual o sistema psíquico é tomado, sendo impossível a lógica das representações.

Enquanto que na tópica do inconsciente nos deparamos com um conjunto de experiências tratadas pela representação, agora estamos diante de fenômenos psíquicos que escapam disso. A pulsão como força, definida entre o somático e o psíquico, situa-se além da possibilidade de representação. Para tanto, o traumático precisa ser redimensionado, a fim de comportar não apenas o campo da conflitualidade entre os conteúdos contrários, como também a temática do transbordamento. (MELLO, 2012, p. 23).

Portanto, as repetições observadas e, particularmente os sonhos traumáticos, mostram uma articulação intimamente pulsional, deixando de lado o reinado do princípio do prazer. Os fenômenos da compulsão à repetição levam Freud à hipótese da pulsão de morte e à formulação do funcionamento dos seres vivos e da matéria inanimada. A pulsão de morte é deste modo definido como a pulsão pura, já que tenderia ao retorno ao inorgânico, anulando toda tensão.

Alguns anos mais tarde, na evolução da teoria, Freud dará maior ênfase na concepção da pulsão de morte como pulsão de destruição, em detrimento da ideia de uma pulsão conservadora tendendo ao retorno ao inanimado. Nesse sentido, as pulsões sexuais seriam mais ruidosas e plásticas, enquanto que a pulsão de morte trabalharia de forma silenciosa. Estas, então, seriam mudas, sem representação e, em contraste, as pulsões sexuais seriam inscritas no psiquismo através de seus representantes. Garcia-Roza (2003) descreve o du lismo pulsion l como “figur -fundo” demonstr ndo, um figur diferenciada em sua forma e um fundo silencioso e invisível, ou seja, as pulsões de vida e de morte respectivamente, que se inter-rel cion m como “ordem- c so” Dess form , não existiri m du s pulsões ontologicamente distintas (uma figura e outra fundo), mas sim “um c mpo constituído de corpos-forças, no interior do qual o que é figura é chamado de pulsão sexu l, e o que é fundo é ch m do de pulsão de morte” (GARCIA-ROZA, 2003). O dualismo pulsional se desdobraria em Eros como força pulsional representada e, portanto, ligada e, Tanatos correspondente à pulsão que escapa ao domínio simbólico, pois sem representação, permanece livre ou desligada.

Em conclusão, o trauma na segunda tópica, definido como uma energia que invade de forma inesperada e brutal o aparelho anímico e que, repele o reinado do princípio do prazer, está intimamente relacionado com energia não ligada, inassimilável correspondente à pulsão de morte. O trauma não estará tão somente relacionado ao recalcado, com as fantasias da primeira teoria traumática, mas t mbém, será inserido no c mpo pulsion l que não se “deix prision r no mundo d represent ção” (LEJARRAGA, 1996).

A partir da segunda tópica, então, é possível lançar a hipótese sobre outra forma de defesa do psiquismo que foge da ordem do recalque. A psicanálise desde o “Projeto” com descrição do conceito de “lig ção de energi ” evidenci form econômica de transformação de energia de magnitude intensa em equivalente

simbólico. Seguindo essa concepção econômica do psiquismo, na Conferência XVIII de 1917, Freud declarou:

[...] o termo traumático não tem outro sentido senão o econômico. Aplicamo-lo a uma experiência que, em curto período de tempo, aporta à mente um acréscimo de estímulo excessivamente poderoso para ser manejado ou elaborado de maneira normal, e isto só pode resultar em perturbações permanentes da forma em que essa energia opera [...]. (FREUD, 1917, p. 281).

Corrobor ndo o modelo econômico de 1917, Freud cit em 1925 o “bloco mágico”, m is um vez em n logi o p relho de escrita. A capa de celuloide permite que se conserve por debaixo, as inscrições de experiências vividas, ou seja, no inconsciente. Entretanto o papel de celuloide pode ficar marcado intensamente, como se houvesse uma ruptura da membrana da vesícula viva, resultado de um estímulo hiperintenso impossível de simbolizar. Em 1937/1939 em “O homem Moisés e a religião monoteísta - três ens ios” o sentido econômico t mbém é cit do, quando são descritos os efeitos estruturantes e desestruturantes do trauma. Por um lado, os efeitos traumáticos revividos, promovem a recordação de experiências esquecidas, tornando-as reais num processo de repetição da vivência original. Este seria os chamados efeitos traumáticos positivos. De outra forma, nos chamados aspectos negativos, os efeitos traumáticos trariam uma inibição, não sendo nem recordados nem repetidos, trazendo como consequências principais as inibições e fobias. Em ambos os aspectos, positivos e negativos, a qualidade compulsiva estará sempre presente.

Por fim, retomando, m is um vez, “C rt 52”, verific mos que no rec lque não há transformação dos traços inconscientes em conscientes, ou seja, não há passagem para a representação-palavra, permanecendo energia vinculada no inconsciente. Como se não houvesse a transcrição Vb (Vorbewusstsein) descrita na carta. Na ausência de ligação originária entre a pulsão e seus representantes, outro mecanismo de defesa pode ocorrer situando-se previamente à captura representacional. Segundo o que Freud escreveu à Fliess, seria um excesso tr umático ocorrido nteriormente à “Unbewusstsein (Ub) ”, ou seja, sem ocorrência de memória e incapaz de se tornar consciente. Como defesa a esse excesso surge a clivagem, um estado cindido que se difere da cisão estruturante referida na primeira tópica. Dessa vez tem um caráter dessubjetivante, clivado, primitivo, regulado pelos processos primários, sem ligação com os representantes da pulsão.

As experiências clivadas são associadas a situações arcaicas e limites, justamente onde o desempenho simbólico vacila, comprometendo o narcisismo e ressurgindo a necessidade de um outro. Como decorrência, o psiquismo passa a funcionar proeminentemente sob a compulsão a repetição submetido a lógica do desespero. (MELLO, 2012, p. 29).

O trauma, em última instância, resulta de um fracasso dos mecanismos de defesa do eu, dificultando ou mesmo impossibilitando sua transformação em contrário. Portanto, existe uma grande intensidade de energia psíquica que possui certa autonomia em relação às exigências do mundo externo não estando submetidos às leis do pensamento lógico. (MAIA, 2004).

Os bebês não fazem nada. Não interagem. Minha vida agora é somente em função do bebê. Os dias são todos iguais. Acordo pela manhã sem ânimo para mais um dia idêntico ao que foi ontem. Antes eu conseguia trabalhar, cuidar da casa e ainda estava cursando o doutorado. Agora não dou conta de fazer mais nada, a não ser cuidar dele. (Relato de uma paciente).

A mulher/mãe agora só tem uma preocupação em sua mente: ter que cuidar de seu bebê, o que se torna uma tarefa muito difícil de realizar. A forma inédita como a maternidade aparece se relaciona com o surgimento inesperado de uma vivência traumática, dificultando os mecanismos de defesa do aparelho psíquico. Relembrando os ditos de Margarete Hilferding, a mulher antes de parir estava em pleno gozo da satisfação libidinal, sendo o parto e a consequente maternidade uma nova etapa que, para muitas, se traduz num luto pela perda da sua potência.

No documento MATERNIDADE Experiências traumáticas (páginas 42-49)