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MATERNIDADE Experiências traumáticas

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE VEIGA DE ALMEIDA

MESTRADO PROFISSIONAL EM PSICANÁLISE, SAÚDE E SOCIEDADE

PENHA MARIA MENDES DA ROCHA

MATERNIDADE – Experiências traumáticas

RIO DE JANEIRO

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MATERNIDADE – Vivência de experiências traumáticas

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação – Stricto Sensu – Mestrado Profissional em Psicanálise, Saúde e Sociedade, da Universidade Veiga de Almeida, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre. Área de concentração: Prática psicanalítica.

Orientadora Profª. Drª. Betty Bernardo Fuks

RIO DE JANEIRO 2019

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PENHA MARIA MENDES DA ROCHA

MATERNIDADE – Vivência de experiências traumáticas

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação – Stricto Sensu – Mestrado Profissional em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre. Área de concentração: Prática psicanalítica.

Aprovado em ______de ____________ 2019

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________________________________ Profª. Drª. Betty Bernardo Fuks (Orientadora)

Universidade Veiga de Almeida

_______________________________________________________________ Prof Dr n ri de Toledo Piza Rudge

Universidade Veiga de Almeida

_______________________________________________________________ Prof . Dr . Regina Herzog de Oliveira

Universidade Federal do Rio de Janeiro

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Agradeço inicialmente a todas as mulheres que, com seus conflitos, despertaram em mim a procura por uma assistência mais humana e singular

Agradeço ao meu marido Renato por sempre acreditar nos meus sonhos

Agradeço aos meus filhos, Gabriel, João e Mateus que, com o exemplo de união entre eles, me fortaleceram na difícil tarefa de execução desse trabalho

Agradeço às alunas do curso de mestrado, Andrea Camargo e Catarina Leal, pelo convívio e reconhecimento do início de uma grande amizade

Agradeço à minha orientadora Betty Fuks pela paciência, dedicação e

principalmente por entender a minha questão, contribuindo na transformação de uma ideia em escrita

Agradeço à Marylink Kupferberg pelos estudos do conceito de trauma em Freud

Agradeço à Graça Linhares pelo auxílio no atendimento de algumas mulheres

Agradeço à Margarida Guilhon pela escuta e pela disponibilidade constante dando asas aos meus pensamentos

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“O mor m terno é pen s um sentimento hum no E como todo sentimento, é incerto, frágil e imperfeito ”

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Na maioria das civilizações prevalece a ideia de que a mulher será tomada de sentimentos nobres ao receber um filho retirado de suas entranhas e dará a ele todo o amor possível que uma mãe pode dar. Porém, a maternidade pode ser um momento com conotações variadas, reverberando em angústias e conflitos. Essa dissertação nasce da experiência da autora como médica ginecologista e tem como objetivo refletir sobre a possibilidade da ocorrência de um trauma no momento em que a mulher se torna mãe e as modificações que daí decorrem. Nesse contexto, procuramos demonstrar que a gestação, o parto e pós-parto são momentos em que podem ocorrer um traumatismo que reatualiza traumas anteriores. Nossa lente psicanalítica se apoiou nos conceitos de trauma e sexualidade. Além disso, procuramos trabalhar o enigma da feminilidade inserido num contexto traumático. A feminilidade assinala, desde o início da criação do método psicanalítico, algo que é da ordem de um encontro traumático com o real.

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In most civilizations, it prevails the idea that a woman will overflow with noble feelings of motherhood when conceiving a child taken from her own gut and will give him/her as much love as a mother can give. At the same time, the concept of motherhood can lso reverber te nguish nd conflict This dissert tion is b sed on the uthor‟s experience as a gynecologist and aims to reflect on the possibility of a trauma occurring at the moment when the woman becomes a mother and the changes that subsequently follow. In this context, we hypothesize whether the gestation, delivery and postpartum are in fact moments in which the trauma can reactivate previous traumatic experiences. Our psychoanalytic lens rests on the concepts of trauma and sexuality. In addition, we seek to work the enigma of femininity inserted in a traumatic context. Femininity has always been in the core of the psychoanalytic method which is the order of a traumatic encounter with the real.

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1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS... 9

2 MATERNIDADE E SEUS DESCONFORTOS... 14

2.1 Conflitos na gestação... 14

2.2 O mito do amor materno – o pensamento de Elisabeth Badinter... 18

2.3 Entrando na Psicanálise – Conferência de Margarete Hilferding... 24

3 ESTUDOS SOBRE TRAUMA... 28

3.1 Definição de trauma... 28

3.2 O projeto para uma psicologia cientifica... 29

3.3 Sobre a memória em Freud... 34

3.4 Dos estudos sobre a histeria à interpretação dos sonhos... 37

3.5 Sobre a pulsão de morte... 41

4 SOBRE A SEXUALIDADE INFANTIL... 48

4.1 O Complexo de Édipo e a sexualidade infantil... 49

4.2 Lacan e o Complexo de Édipo... 56

4.3 O narcisismo e seus destinos... 61

4.3.1 O estádio de espelho... 67

4.4 O tornar-se mulher... 70

5 CONCLUSÃO... 76

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1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Há três coisas para as quais eu nasci e para as quais eu dou minha vida. Nasci para amar os outros, nasci para escrever, e nasci para cri r meus filhos O „ m r os outros‟ é tão v sto que inclui té perdão para mim mesma, com o que sobra. As três coisas são tão importantes que minha vida é curta para tanto. Tenho que me apressar, o tempo urge. Não posso perder um minuto do tempo que faz minha vida. Amar os outros é a única salvação individual que conheço: ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber mor em troc […]

(Clarice Lispector, 1968).

O poder da criação, o dar a vida a um ser humano e o nascimento de uma família são reflexões ainda muito difíceis de elaborar. Na maioria das civilizações prevalece a ideia de que a mulher, tomada de sentimentos nobres ao receber um filho retirado de suas entranhas, dará a ele todo o amor possível que uma mãe pode dar. O desejo e a decisão de ter um filho, por si só, já deveria ser indício de que a mulher ao longo dos seus nove meses de gestação, se prepararia para a maternidade. O crescimento gradativo de seu ventre, a percepção dos movimentos do bebê e a perspectiva de que em breve o terá nos seus braços, nos leva ao entendimento que todo esse tempo é suficiente para ao final a mulher conseguir ser mãe. Esses são pensamentos universais e disseminados na coletividade. A futura mãe deverá se preparar para a chegada tão esperada desse ser. Para isso, procura por informações, recebe conselhos de sua própria mãe, participa dos inúmeros cursos preparatórios para a passagem da gravidez e para a experiência do parto e pós-parto. Dessa forma, a sociedade organiza e define o comportamento feminino nas questões relacionadas à maternidade. Essas fontes de informações são relevantes, não obstante, na maioria das vezes, não leva em consideração a individualidade de cada mãe que se inaugura. Há que se relativizar cada núcleo mãe-bebê.

Quando Clarice Lispector nos presenteia com suas poesias, não podemos deixar que elas nos levem para o maravilhoso mundo das mães felizes e dedicadas. Não é essa a poetisa que se apresenta. Clarice consegue traspor em palavras toda a necessidade que temos de amar outro sem, no entanto, desconsiderar o quão árduo pode ser esse caminho. A vida é curta demais para se elaborar tanto amor!

As mulheres quando se tornam mães podem experimentar as realidades mais amargas de sua vida e devemos entender melhor as razões desse acontecimento.

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Quando eu me tornei mãe, na madura idade de 24 anos, fiquei contente em me despedir de uma gravidez difícil e abraçar as alegrias da nova maternidade. Mas, enquanto as alegrias eram muitas, muitos também eram os desafios. Eu achava que tinha sido adequadamente preparada para atingir todo um novo nível de privação de sono, para alimentar alguém com meu próprio corpo mais do que me alimento, de responder a cada comando sem esforço. (Relato de uma mãe).

A maternidade não é puramente uma fase que a grande maioria das mulheres enfrenta e que trará para ela uma vivência e amadurecimento de sua vida. A maternidade é um momento vivido por uma mulher única e que pode ter conotações variadas, reverberando em angústias e conflitos. Preparar-se para o momento de ser mãe parece inconsistente, na medida que, a mulher experimenta uma nova versão de si Qu ndo el dá à luz um filho, é como se fosse um “troc de pele”, d ndo à luz também uma mulher inédita. Não há maneira de se preparar para a maternidade, e seria muito importante que toda mulher soubesse disso antes.

Todo mundo falou sobre a felicidade do bebê, o amor que eu sentiria, a alegria, os instintos naturais. E enquanto eu certamente sentia essas coisas, também me senti esgotada, sobrecarregada, exausta e completamente sozinha.... Todo mundo presumia que eu estava muito feliz e por isso encenei esse papel. (Relato de uma mãe). O cuidado com a mulher no pós-parto, na chamada fase do puerpério, requer sempre muita atenção. O que seria dar apoio a uma puérpera? Seria fazer por ela as demandas do bebê? Certamente não é isso. A mulher deveria viver essa experiência, sentindo que é possível, que ela pode e que, se por ventura falhar, ter lguém que dig “c lm , você consegue” T mbém é ter lguém que poss judá-la nas tarefas da casa, ou alguém que possa dar um conforto nas horas mais cansativas e angustiantes. As mulheres no pós-parto precisam de compreensão, de dizer o quanto é difícil aquela situação. Precisam de pessoas que, de fato estejam ao lado, partilhando das alegrias e também das amarguras vividas. Pessoas que possam massagear o seu corpo dolorido pelo cansaço; que possam incentivar com fr se “você está se s indo muito bem”; que permit m ess mulher ser mãe de diversos ângulos, mesmo que, não seja tão bonito como todos gostaríamos de acreditar.

A maternidade também está longe de ser um momento vivido apenas pela mãe que se inicia. É, na verdade, um longo período de mudanças seguidas de adaptações que se conjugam a toda hora, atingindo aos vários integrantes de uma

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família. Busco em Alexandre Coimbra Amaral [2018], psicólogo e terapeuta familiar a síntese desse pensamento: “Todos somos recém-nascidos numa família que recebe um bebê.” Todos a volta do bebê, sua família consanguínea ou não, mostram-se repletos de necessidade de cuidados, num desfaz e refaz a todo momento. Essa instabilidade e a impermanência são um desafio para um grupo de pessoas que estiver acostumado com papéis mais definidos dentro da arquitetura familiar. Essas transformações atingem a mãe, o pai, a avó ou qualquer pessoa inserida nesse contexto. Conforme Alexandre Coimbra Amaral [2018] cita, todos ao redor de um bebê são estagiários, inseguros e vulneráveis em formas absolutamente inéditas de estar em família. Essa nova situação reacende em cada um desses integrantes a possibilidade de atualizar perguntas ainda não respondidas, ou mesmo de eclodir conflitos nunca antes imaginado. Quando cuidamos de um bebê estamos também dando alento para nós mesmos, num resgate a nossa identidade. Ao estarmos ao lado de um ser que acaba de nascer, renascemos para nós, numa incessante busca do que somos, do que conseguimos ou não conseguimos ser e por fim, do que queremos ser.

Ao longo da minha trajetória enquanto médica ginecologista e obstetra comecei a observar que no período gestacional, assim como no parto e no pós-parto, um significativo número de mulheres manifestava comportamentos inesperados; ou por uma leve ou grave depressão, ou por uma recusa a cuidar de seu bebê ou outros aspectos que não correspondiam ao habitual. Notei também que essas manifestações anteriormente descritas eram não só condenadas pela equipe médica, mas também, provocava em todos, que prestavam assistência, atitudes hostis a essas novas mães. A maior parte da equipe de saúde tinha para com elas atitudes superegoicas severas, o que só fazia piorar o quadro que apresentavam.

Foi a partir daí que comecei a me debruçar sobre a questão que todo esse grupo de mulheres me suscitava, tanto em relação às gestantes, às parturientes ou às mães recentes, quanto à falta de acolhimento por parte da equipe de saúde. Esse mal-estar materno causa, nos profissionais, muita indignação, na maioria das vezes, traduzindo-se em palavras de reprovação dirigidas a essa mulher. Atitudes de não acolhimento, percepção enviesada e críticas são direcionadas para a nova mãe, que se formou há poucas horas, e que, traz consigo vivências pessoais e históricas nem sequer imaginadas por quem trabalha numa maternidade.

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A forma inesperada que se apresenta o nascimento de um filho para a mulher, a enorme responsabilidade e a sensação de um peso como um fardo a carregar para sempre, são sentimentos que frequentemente surgem nessas ocasiões, mas nem sempre são revelados e, por conseguinte não são elaborados. Portanto, a atualização de vivências traumáticas passadas pode, após o parto, trazer para a mulher uma sensação de desamparo muitas vezes considerada como depressão pós-parto que a conduz para abordagens terapêuticas voltadas para a melhoria desse humor sem, entretanto, interagir com o que está por trás disso tudo.

Essa dissertação tem como objetivo refletir sobre a possibilidade da ocorrência de uma vivência traumática no momento em que a mulher se torna mãe e as modificações que daí decorrem. Com efeito, a gestação, o parto e pós-parto são momentos que podem ocorrer um traumatismo que reatualiza traumas anteriores, devido à temporalidade psíquica. É em nome desse princípio temporal que a clínica psicanalítica insiste em se dispor a escutar os destinos sempre singulares de um evento traumático

A mulher se tornou um enigma para Freud conforme a declaração que ele próprio fez à Marie Bonaparte – “ gr nde ind g ção que ficou sem respost , e qual eu mesmo nunca soube responder, apesar dos meus trinta anos de estudo da lm feminin , é seguinte: „que quer a mulher?‟” (FREUD apud ASSOUN, 1993, p. 20). De fato, desde o início da clínica psicanalítica as mulheres abriram o caminho às observações inicias sobre o psiquismo e permanecem até hoje provocando opiniões divergentes nas várias escolas de psicanálise e algumas críticas contundentes. É preciso lembrar que o contexto histórico em que nasce a psicanálise se encontrava num movimento de saída da sociedade patriarcal e que Freud propôs conceitos absolutamente inovadores - sexualidade, feminilidade e feminino - para pensar o enigma da mulher. A questão que nos surgiu, então, seria como articular esses conceitos à teoria do trauma e, sobretudo, pensa-los em relação à maternidade.

Para tentar responder a essa questão, comecei pesquisando algumas referências teóricas e clínicas sobre os desconfortos da maternidade sob a ótica de alguns saberes: Medicina classificando-os como transtornos depressivos; Filosofia, através do pensamento de Elisabeth Bardinter e seus estudos sobre o contexto socioeconômico e cultur l que forjou “ideologi m tern list ” e idei do desejo feminino de “ser mãe” Recorremos, também, à Psicanálise em função dos

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testemunhos de algumas mães aos primeiros psicanalistas, exemplificados na conferência de Margarete Hilferding. Essa conferência, datada de 1910, merece destaque, por sua importância histórica e o modo como a psicanalista relaciona conflitos oriundos da relação das mães com os seus bebês.

Em seguida foi feita uma revisão bibliográfica sobre o conceito freudiano de trauma. A concepção do aparelho psíquico proposto pelo fundador da psicanálise foi, durante sua obra, permeada pela noção de trauma. A escuta da palavra de seus pacientes e, os acontecimentos sócio-políticos de seu tempo, contribuíram à construção da teoria sobre o trauma e a concepção do aparelho psíquico marcado por traços e marcas indeléveis. Tal revisão mostrou-se fundamental durante à escrita da dissertação; serviu de arcabouço à ideia de uma relação intrínseca entre o vivido no passado pela mãe e a reatualização do evento traumático no parto de seu bebê. A noção de Nachträglich (a posteriori) e a Carta 52 foram as ferramentas básicas usadas nessa parte do trabalho.

Foi necessário, posteriormente, percorrer toda teoria da sexualidade na obra de Freud - complexos de Édipo, castração e a noção de narcisismo, buscando melhor apreender a gênese dos conflitos da mulher diante da maternidade. Nessa parte do trabalho demos destaque ao fato de que em Psicanálise as vicissitudes desses complexos devem ser apreendidas como algo da ordem do particular. Foi também possível buscar apoio na releitura de Jacques Lacan do pensamento freudiano sobre a sexualidade infantil e finalmente tecer algumas considerações sobre m ternid de e o “torn r-se mulher”.

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2 MATERNIDADE E SEUS DESCONFORTOS

Com relação à maternidade, devem ser considerados certos conflitos expostos nas subseções seguintes.

2.1 Conflitos na gestação

Inicialmente apresentaremos um panorama sob o ponto de vista médico-científico das alterações psíquicas observadas nas mulheres. A saúde mental feminina ainda é um tema que necessita de estudo adequado para a melhor compreensão das alterações de humor que invariavelmente ocorrem nas suas diversas fases da vida. Estima-se que o dobro de mulheres sofre de depressão em comparação aos homens (RENNÓ JÚNIOR, 2012). No Brasil, a depressão é considerada problema sério de saúde pública, atingindo de 2 a 5% da população em geral, com predomínio no sexo feminino. A análise dessas mulheres revela que muitas vezes há presença de eventos vitais marcantes, como a gestação, o parto e o período pós-parto. A prevalência de depressão pós-parto varia entre 12 e 19%. Esses dados são compatíveis com a literatura internacional, que a refere como 10 a 20% (RUSCHI, 2007). Outros estudos estimam uma prevalência de depressão na gravidez da ordem de 7,4% no primeiro, 12,8% no segundo e 12% no terceiro trimestres (BENETT et al., 2004, apud CAMACHO et al., 2006). No entanto, a importância desses períodos da vida da mulher no estabelecimento da depressão não está totalmente esclarecida e sua sintomatologia depressiva não difere qualitativamente da que ocorre em outras fases da vida.

Desde a menarca até após a menopausa, algumas mulheres sofrem de transtornos mentais específicos, incluindo transtorno disfórico pré-menstrual, depressão perinatal e perimenopáusica, disforia do pós-parto (blues) e psicose puerperal, assim como transtornos do humor e de ansiedade associados à infertilidade e gestações abortadas, além de maior incidência de transtornos ansiosos e alimentares. Sob os estímulos hormonais flutuantes, a mulher invariavelmente se encontra num ambiente propício para alterações de humor. Durante toda a sua vida fértil está imersa num ambiente hormonal que tem relação com mudanças de comportamento, que podem invariavelmente interferir na sua vida

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emocional diária, bem como na sua produção de trabalho. Na gestação, os níveis de estrógeno e progesterona estão aumentados e podem ser responsáveis por alterações de humor. A redução brusca dos hormônios, que sucede o parto, estaria, também, envolvida na etiologia dos quadros depressivos ocorridos no puerpério (MATTAR, 2007). Entretanto, poucos estudos ainda se dedicam a decifrar com mais clareza todas as alterações psíquicas que ocorrem nas mulheres, principalmente no que se refere aos momentos da gravidez, do parto e do pós-parto, que consideramos serem momentos específicos femininos com intensa carga de afetos muitas vezes não elaborados.

O momento da maternidade, socialmente considerado de pura alegria, não é reconhecido, muitas vezes, como uma fase de intensas mudanças para a mulher, que experimenta uma diversidade de sentimentos muito confusos e ambíguos. Por que toda mulher deve sempre se mostrar feliz com o nascimento de um filho? Mesmo que haja um desejo de ser mãe, a vivência real desse novo papel traz à tona uma sensação de mudança e transformação tão intensa, a ponto de a mulher não conseguir se reconhecer. Muitas delas, outrora dinâmicas e ativas nos seus afazeres laborais, tornam-se apáticas e sem ânimo para realizar quaisquer tarefas das mais simples possíveis. Além disso, a dedicação amorosa para com o bebê torna-se escassa, restringindo-se aos cuidados de alimentação e higiene, sendo tarefas apenas necessárias para a sobrevivência do infante. Dentro dessa perspectiva, a relação mãe-bebê mostra-se bastante vulnerável, prejudicando a saúde mental de ambos: da mulher que não se compreende como mãe e, do bebê, que não recebe da mãe o amparo necessário para a sua constituição psíquica. Portanto, a Psiquiatria da atualidade não pode se furtar à atenção e ao conhecimento necessário sobre os transtornos psíquicos relacionados ao ciclo reprodutivo, em especial ao puerpério.

Pela Classificação Internacional de Doenças (CID-10) ainda não há especificação para essas patologias de humor feminino, a não ser como diagnóstico de exclusão: os chamados transtornos relacionados ao puerpério (OPAS/OMS, 2014). O Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais, na quarta edição e com texto revisado (DSM-IV-TR), não distingue os transtornos do humor do pós-parto dos que acontecem em outros períodos, exceto como especificador "com início no pós-parto", que é utilizado quando o início dos sintomas ocorre no período de até quatro semanas após o parto (CANTILINO, 2003, apud Camacho, 2006). Da mesma

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forma, o Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais, na quinta edição (DSM-V) também não reconhece a depressão pós-parto como um diagnóstico à parte (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2013). As pacientes precisam satisfazer os critérios de um episódio depressivo maior e os critérios do especificador de início no período perinatal. Portanto, a definição é de um episódio depressivo maior com início na gestação ou em até quatro semanas após o parto. Isso demonstra que os profissionais da saúde mental ainda não reconhecem as alterações de humor da mulher durante o ciclo gravídico-puerperal como um diagnóstico específico, considerando os diversos fatores que envolvem essa temática. Conforme já mencionamos, apesar deste período estar relacionado, invariavelmente, ao bem-estar emocional, inundado de alegrias e ser o causador para a mulher do maior júbilo da sua vida, nem sempre é protetor dos transtornos do humor. Pelo contrário, nota-se que múltiplos fatores de risco estão envolvidos na gênese de um mal-estar materno, mas a etiologia exata ainda não foi estabelecida, justamente porque, envolvem mudanças físicas, hormonais, psíquicas e de inserção social, refletindo diretamente na saúde mental dessas pacientes. Em grande parte das vezes, as tarefas com o bebê e o cansaço físico, são vistos pelos familiares ou pessoas que estejam ao redor da mulher, como os causadores de suas atitudes e, dessa forma, encobrem os sintomas mais típicos da depressão.

Estudos apontam para alguns fatores de risco que podem ser encontrados em mulheres que desenvolveram depressão pós-parto. São eles: mães jovens, sem companheiro ou com pobre ajuste marital, baixo nível socioeconômico, baixa paridade, antecedente de depressão, personalidade negativa, depressão ou ansiedade durante a gravidez, experiência de eventos estressantes na gestação ou no puerpério precoce e história de violência doméstica na adolescência. (MATTAR, 2007).

As manifestações de alteração de humor mais comuns no pós-parto são a tristeza materna, chamado também de blues, a depressão e a psicose pós-parto. Pode haver sobreposição dessas manifestações clínicas, porém essa relação não foi bem estabelecida até o momento. O blues é um transtorno autolimitado, com início nas duas primeiras semanas pós-parto, com incidência de 50 a 80%, sendo considerada fator de risco para depressão parto. Ao contrário, a psicose pós-parto é relativamente rara, com incidência de 0,1 a 0,2%, e ocorre tipicamente dentro das quatro primeiras semanas após o parto, constituindo-se em emergência

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médica (RUSCHI, 2007). Para a maioria dos autores, ao persistir ou intensificar-se o blues, a puérpera pode estar desenvolvendo quadro de depressão pós-parto, cujos critérios clínicos diagnósticos são os mesmos para a depressão maior, ou seja, que consideram a duração do evento em pelo menos duas semanas, com, no mínimo, cinco dos seguintes sintomas: humor deprimido, anedonia, mudanças significativas no peso ou apetite, insônia ou hipersônia, agitação ou retardo psicomotor, fadiga, sentimentos de inutilidade ou culpa, capacidade diminuída de pensar, de concentrar-se, indecisão, pensamentos recorrentes de morte.

Para que se possam avaliar as manifestações clínicas da depressão e, com isso, ajudar no diagnóstico, foram desenvolvidas escalas de avaliação para medir e caracterizar os sintomas. Dentre as escalas existentes, a Escala de Depressão Pós-Parto de Edimburgo (EPDS) é a mais utilizada para rastreamento de sintomas depressivos que se manifestam após o parto, tendo sido traduzida para 24 idiomas, com estudos de validação na maioria dos países (RUSCHI, 2007). É uma escala autoaplicável, constando de dez itens, divididos em quatro graduações (0 a 3). A EPDS mede a presença e intensidade de sintomas depressivos nos últimos sete dias. Sua aplicação é rápida e simples, podendo ser utilizada por qualquer profission l d áre de s úde que tenh sido c p cit do p r isso (FIGUEIRA, 2009). A facilidade da aplicação desse instrumento pode indicar uma ferramenta importante para a detecção de casos de depressão de forma precoce, diminuindo assim, os problemas que advém após esse diagnóstico, tanto no que se refere à mulher, como também em se tratando do bebê e seu desenvolvimento. O seu uso rotineiro na rede de atenção à saúde pública pode, portanto, evitar todos esses males em maior escala.

Ainda assim, nos parece um tanto empobrecida a análise desses transtornos, considerando unicamente o saber médico. Todas as avaliações da puérpera recente com transtorno depressivo, não levantam outras possíveis variáveis envolvidas nesse momento tão específico da vida de uma mulher. Considerando que, as equipes de saúde são despreparadas para lidar com situações de conflito psíquico de uma mulher que acaba de parir, os trabalhos científicos não qualificam esse transtorno e não o especifica melhor como uma patologia desse período, levou-nos a buscar um estudo mais abrangente considerando outras áreas de estudo, que dessem conta do porquê a mulher ao se tornar mãe apresenta reações tão diversas das esperadas pela sociedade. Comecemos, então, pela Filosofia.

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2.2 O mito do amor materno – o pensamento de Elisabeth Badinter

A maternidade, sagrada, indefectível, reflexo de um amor oblativo, é para a maioria de nós um tema ainda distante de ser completamente entendido. Do ponto de vista biológico, conforme já citado anteriormente, há que se levar em conta a mudança hormonal a que toda mulher está envolvida. Às alterações físicas somam-se as transformações emocionais e psíquicas que o período gestacional traz para a mulher. São nove meses de novas vivências, tempo curto demais para elaboração de questionamentos e dúvidas sobre a mãe que se forma. No senso comum, a mãe, sempre identificada a Maria, deve ser dedicada, cumpridora de suas tarefas maternas com amor e devoção, não se importando nunca com o sacrifício que possa advir. Ou seja, para uma sociedade moderna, o amor materno é imutável e, principalmente, é inato. A luz da Filosofia, Elisabeth Badinter (1985), criticada pelos cientistas, que não consideravam o saber filosófico suficientemente apto para interferir na ciência, impõe seu discurso como o novo questionador das verdades aceitas e pré-estabelecidas; como uma reflexão sobre os pressupostos da Biologia articulando a problemática da natureza e da cultura.

Quando citamos a palavra inata, surge a ideia de instinto, uma tendência de todos os seres vivos ou de todos os indivíduos da mesma espécie. O dicionário Larousse em 1971 definiu instinto materno como uma tendência primordial que cria em toda mulher normal um desejo de maternidade, e que, uma vez satisfeito esse desejo incita a mulher a zelar pela proteção física e moral dos filhos (LAROUSSE, 1971).

Badinter considera que o sentimento de amor deve advir do comportamento daquele momento e daquela cultura.

Os que se recusam a julgar um sentimento a partir dos comportamentos são partidários de uma filosofia dualista. Aos seus olhos, as formas bem podem se modificar, sem com isso afetar o fundo ou a essência. Se os comportamentos maternos (as formas) assumem aspectos diferentes, até mesmo contraditórios, com o correr do tempo, nem assim modificam a realidade profunda desse amor, de alguma forma hipostasiado. (BADINTER, 1985, p. 14). Nesse caso o amor em sua essência seria imutável. Uma essência misteriosa, ou mesmo indefinível. As mudanças de comportamento de uma

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determin d socied de não seri m suficientes p r influenci r o “fundo” Contr esse pensamento Badinter (1985) propõe a definição mínima do amor e leva em consideração o pensamento dos psicanalistas quando afirmam que não há amor sem algum desejo e que na ausência do toque, do mimo e do beijo haveria pouca motivação para o desenvolvimento do amor. O ser humano é um ser histórico, imerso numa cultura, o único ser vivente dotado da capacidade de simbolizar, colocando-o acima da esfera animal. É um ser do desejo, portanto, é um ser particular e diferente de todos os outros. Esse discurso nos mostra que levando em consideração o inconsciente, este poderá predominar sobre toda a estrutura hormonal, biologicamente definida no meio feminino, levando as mulheres a terem comportamentos e atitudes diferentes no que tange a maternidade, cada uma delas podendo revelar sentimentos diversos.

Parece-me que devemos deixar a universalidade e a necessidade aos animais e admitir que a contingência e o particular são o apanágio do homem. A contingência dos comportamentos e dos sentimentos é o seu fardo, mas também a única falha pela qual se exprime sua liberdade. (BADINTER, 1985, p. 16).

Devemos, portanto, levar em consideração a história pessoal de cada mulher bem como as mudanças comportamentais ocorridas ao longo da civilização humana, incluindo os diversos povos do universo. Badinter (1985) realiza uma pesquisa sobre o comportamento das mulheres e dos homens diante da maternidade, as relações estabelecidas com o filho e a interface com o valor econômico ao longo da história da humanidade em especial na Europa dos séculos XVII até XX.

Nessa pesquisa a filósofa colocou a mãe como uma personagem relativa, pois só a concebe em relação ao pai e ao filho; e tridimensional, visto que, além dessa dupla relação, a mãe é também uma mulher com aspirações próprias que muitas vezes nada tem a ver com as do marido ou com os desejos do filho. Nesse sentido, já fica evidente a complexa definição do papel da mulher numa sociedade. Se os valores dessa sociedade se voltam para o homem-pai a mãe passa à margem dele juntamente com a criança. Por outro lado, quando a sociedade se interessa pelo infante, por sua sobrevivência e educação, o foco volta-se para a mãe. Portanto, quem tem a criança ao seu lado, nesse caso leva a melhor situação na sociedade.

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O homem esposo e pai tem o direito absoluto de julgar e punir. A família é considerada como um grupo religioso do qual o pai é o chefe. Segundo Badinter (1985), desde Aristóteles (384 ac – 322 ac) a autoridade do marido e do pai era plenamente justificável. O homem é a mais bem-acabada das criaturas. O homem marido e pai tem mais semelhança com o divino e tem responsabilidades políticas semelhantes a um rei. Somente com Cristo houve, pelo menos em tese, um freio para a autoridade masculina. A mensagem de Cristo pregava a igualdade de direitos entre marido e mulher e igualdade de deveres para com os filhos. O amor ao próximo, maior mensagem deixada pelo profeta, colocava a todos em igualdade de condições na sociedade e na família, mantendo uma harmonia conjugal e dificultando a poligamia, símbolo da autoridade. Entretanto, devido as várias interpretações que se seguiram a sua morte, viu-se a permanência da autoridade paterna. As principais justificativas surgiram do texto do Gênesis que imputava a Eva a culpa pela fraqueza e infelicidade do homem. Eva será sempre uma criatura do mal e por isso amaldiçoada “Multiplicarei grandemente a tua dor e a tua conceição: com dor parirás teus filhos [...]. E tua paixão será para o teu marido e ele te dominará [...].” (tr dução João Ferreir d‟ lmeid , pud B DINTER, 1985, p. 34).

Também complexa foi a luta entre pai e filho, onde a lei divina e a autoridade paterna andavam juntos. Em nome de Deus os pais davam subsídios para que seus filhos homens assumissem a responsabilidade na vida adulta e mantinham, dessa forma, noção de desigualdade entre sexos. Também do ponto de vista político, as sociedades absolutistas (séculos XVI e XVII) pregavam as ideias favoráveis ao poder do rei, soberano a todos, da mesma forma que, a autoridade paterna reinava no seio da família impondo submissão e respeito de seus filhos.

Bossuet, bispo e teólogo francês, um dos principais teólogos do absolutismo divino, defendeu o argumento que o governo era divino e que os reis recebiam seu poder de Deus. O rei não busca senão o bem de seus súditos, como o pai só quer o bem de seus filhos mesmo quando os corrige (BADINTER, 1985). Em seu postul do político intitul do “ utorid de polític : um direito divino”, public do postumamente em 1709, Bossuet defende a teoria do direito divino dos reis, justificando que Deus delegava o poder político aos monarcas conferindo-lhes autoridade ilimitada e incontestável. Exemplo maior disso, foi o reinado de Luís XIV d Fr nç , quem foi cl m do o “rei Sol” Ess utorid de re l é em semelh nç autoridade paterna. As analogias de Bossuet giravam em torno da autoridade de

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Deus, que se assemelhava a do rei e refletia na força do pai. Como finalização de seu pensamento, acrescentou a figura do pastor e seu rebanho, assim o pai é para seus filhos, o que o rei é para seus súditos, o que Deus é para os homens e o que o pastor é para seu rebanho. Essa relação entre homem e animal mantém a mesma distânci entre o homem e Deus “Não se poderi express r melhor irredutível heterogeneidade entre o pai e seus filhos.” (BADINTER, 1985, p. 41). A autora ainda infere mais sobre esse postulado boussuetiano, descrevendo o aparecimento de uma figura, a princípio velada, que está sempre por trás de cada uma dessas analogias de poder. Há sempre um intermediário vigilante: a Igreja, entre Deus e o homem, a polícia entre o monarca e seus súditos, a mãe entre o pai e o filho e por último o cão entre o pastor e seu rebanho. Esses intermediários têm certo poder, mas este não lhe é exclusivo, estão sempre à disposição de um senhor: a Igreja de Deus, a polícia do rei, a mãe do marido-pai e o cão de guarda do pastor. Portanto, no século XVI a mulher-mãe segue resignada a ordem social que impõe o poder paterno. Segue tão resoluta essa posição que se identifica com ela nos casos de viuvez ou qualquer outro desaparecimento do marido-pai, assumindo muito bem os valores paternos.

Aliada a autoridade paterna, a família até a entrada no século XVII, não se configurava por amor e ternura entre os seus componentes. Ao contrário, a criança possuía pouca importância, sendo na maioria das vezes um estorvo para todos. Segundo Santo Agostinho (354 - 430) a criança seria a imagem da imperfeição e à medida que fosse crescendo haveria uma tendência a perfeição até chegar à idade adulta. Daí a ideia de que, educar seria corrigir todas as imperfeições; educare do latim significa endireitar o que é torto ou malformado. Os pedagogos e teólogos recomendavam às mães a maior frieza possível nos cuidados com seus filhos. Um célebre pregador espanhol Vivès (1493 – 1540) decl rou: “ s delíci s são o que mais debilita o corpo, por isso as mães perdem os filhos, quando os amamentam voluptuos mente ” A forma terna de cuidar de um bebê seria rigidamente combatida, alegando ser a criança um mal a ser modificado. Nenhuma mãe poderia sentir o prazer de ter seu filho nos braços, enchê-lo de carícias, estar próximo dele, deixar que tocasse a boca em seu seio. A ternura é moralmente culpável, pois estraga a criança, a torna viciosa e não a corrige da sua imperfeição. Sobre a amamentação, proibida para as mães, Vivès era categórico, dizendo que a amamentação seria um prazer ilícito que a mãe se proporcionaria e que causaria a perda moral da criança.

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Prazer esse que, do ponto de vista freudiano, a mulher pode de fato sentir e ser iniciado daí o elo maior com o seu rebento, proporcionando desenvolvimento psíquico e moral posterior da criança. (BADINTER, 1985).

Em relação aos pais e em especial a mãe, havia uma indiferença para com seus filhos quando crianças. Uma frieza e um desinteresse pelo bebê que acaba de nascer poderia ser justificado pela incerteza do seu futuro, dados as altas taxas de mortalidade infantil até o final do século XVIII. O apego às crianças por parte dos pais poderia posteriormente trazer muita tristeza, pois certa era a sua morte precoce. O melhor a ser feito era o posicionamento frio, afastado, sem ternura e devoção. Seria excepcional um pai ou uma mãe sofrerem pela morte de um filho. Lamentar a morte de uma criatura inacabada era considerada uma atitude imprópria ou até mesmo ridícula. Quando um pai ou uma mãe sofriam a morte de seu filho, esse sentimento seria justificado, apelando-se pela extrema qualidade humana que aquele ser possuía, como se fosse uma exceção a todas outras crianças. Também esse amor era seletivo, sendo que, quando ocorria, era mais dedicado aos meninos e principalmente ao primogênito. As meninas em geral eram consideradas um estorvo, visto que, só serviram para casar e ainda deveriam oferecer um dote, o que seria mais um fardo para seus pais.

Com a proibição da amamentação, surge a ama de leite, uma nova personagem que v i ssessor r f míli ness est f nte e “imor l” t ref de alimentar uma criança, que, pelo que preza a biologia humana, necessita para sobreviver. Impressionante verificar como as amas de leite passaram a ser comercializadas refletindo o desprezo pelas crianças, pois grande parte delas morriam por cuidados negligentes. Essas mortes eram entendidas como por vontade divina, principalmente porque ainda nessa idade o infante é preenchido de maldições. Apesar de não haver estatística que comprove, as pesquisas sobre o comportamento dessa época concluem os altos índices da mortalidade infantil, principalmente porque, nem na medicina existiam cuidados específicos para as crianças. Após um período de quatro a cinco anos, caso a criança sobrevivesse aos cuidados de sua ama, ela voltaria para casa para alguns anos mais tarde seguir na sua educação; os meninos em geral para um internato e as meninas na maioria para um convento em busca de casamento ou mesmo de devoção à vida religiosa.

Foi a partir do final do século XVIII que se inicia uma mudança no discurso dos filósofos, teólogos e educadores, voltando-se para o incentivo a amamentação.

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Segundo Badinter (1985), o ano de 1760 foi o marco inicial dessa mudança de comportamento, que imporá à mulher um mito do instinto materno ou do amor espontâneo de toda mãe pelo filho, que se perpetuará pelos duzentos anos seguintes.

Se outrora insistia-se tanto no valor da autoridade paterna, é que importava antes de tudo formar súditos dóceis para Sua Majestade. Nesse fim de século XVIII, o essencial para alguns é menos educar súditos dóceis do que pessoas simplesmente: produzir seres humanos que serão a riqueza do Estado. (BADINTER, 1985, p. 146). Agora o necessário é a sobrevivência das crianças. Economicamente elas seriam a riqueza da humanidade. As perdas infantis passaram a interessar o Estado e o período de vida da criança mais vulnerável seria após o seu nascimento. As mães precisariam agora, serem convencidas da importância de seu papel como mãe e nutriz. Por trás do discurso econômico, ressaltava-se a sedução para com as mães, com promessas de felicidade e igualdade. “Sede bo s mães e sereis felizes e respeitadas. Tornai-vos indispensáveis na família e obtereis o direito de cidad ni ” (BADINTER, 1985, p. 147).

A nova mãe se inicia muito às custas de Rousseau (1712 – 1778) em sua obra Émile, que versava sobre educação. Agora a mãe se dedica ao seu bebê, amamentando-o primordialmente e colocando-o sempre em primeiro plano. Às crianças devemos dar mais liberdade de movimentos. Não poderiam mais ficar “ m rr d s” ou contidas em faixas. Com isso, maior atenção as mães deveriam dispensar aos seus rebentos. Além disso, um maior contato físico se fazia aparecer e era permitido, resultando em maiores carícias. A dedicação com as roupas, asseio e todas as tarefas de cuidado para com os bebês passariam a ser de competência da mulher-mãe. Para o bebê maior liberdade nas roupas, nos movimentos quando por ocasião do engatinhar e dos primeiros passos, o que sem dúvida trouxe benefícios para o desenvolvimento infantil. A mãe estaria mais presa em atenção ao seu filho, mas estaria feliz.

Essa é a nova mãe rousseauniana. Seu filho agora é o seu bem mais precioso; sua morte era temida e rejeitada pela sociedade. A morte infantil é sentida pela família como uma perda insubstituível. A Medicina se torna dedicada ao tratamento das doenças infantis somente no século XIX, porém já no final do século XVIII, em consonância com todas as mudanças de relacionamento entre mães e

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filhos, observa-se uma tomada de consciência médica específica em relação às crianças. Até então, as mães seriam as pessoas mais competentes para cuidar da saúde de seus filhos. Os médicos da época paulatinamente precisaram se apoderar do entendimento biomédico da infância, entendendo suas especificidades. A terminologia Pediatria, como uma especialidade médica surge no final de século XIX.

A boa mãe deve ser devota aos cuidados com seu filho, bem como se aconselhar com o médico, que vai se interpondo no seio familiar e se aprimorando no tratamento dos problemas da infância. Ela ama, amamenta, cuida, vigia e vive a serviço dos filhos. Seu amor não é mais seletivo. Ama a todos igualmente e se entregará a esse ofício integralmente sem pensar em si, pois os sente pertencente a ela mesma. Badinter (1985) ressalta qual das mulheres da sociedade que primeiramente se engajariam nessa nova missão: as mulheres da burguesia. Viram nessa nova função a oportunidade de emancipação, que as aristocráticas não buscavam e as de classe pobre nem sabiam ainda da possibilidade. A mulher burguesa ao aceitar essa incumbência, melhorará sua posição na sociedade. Tornar-se-á “r inh do l r” e não será m is p r o m rido um ser desprezível comparada à criança de outrora.

“ mãe burgues m ntém org niz ção do l r com t nt utorid de qu nto mulher aristocrática mantém sua classe ou posição ” (B DINTER, 1985, p 223)

A maternidade terá um papel gratificante pois está impregnado de um ideal. Evoca-se as noções de vocação e sacrifício materno associando-as à um aspecto místico do papel materno. Será comparada à Nossa Senhora, mãe de Deus, testemunho de devoção ao seu filho. Até os dias atuais o tornar-se mãe está impregnado desses sentimentos.

Vejamos agora o que a Psicanálise ao longo do seu percurso interferiu nesse pensamento.

2.3 Entrando na Psicanálise – Conferência de Margarete Hilferding

Considerando os primórdios da Psicanálise, no início do século XIX, ainda com a influência da Medicina e Biologia, os psicanalistas já se deparavam com mulheres com sofrimentos acerca da relação com seus filhos e as consequências da maternidade. Ressaltamos a psicanalista Margarete Hilferding, que professou sua

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conferênci sob o título, “Sobre s b ses do mor m terno”, no di 11 de j neiro de 1911, quando recém-admitida na Sociedade Psicanalítica de Viena. Apesar de ter sido muito contestada, através dos comentários dos membros da sociedade, inclusive por Freud, é importante destacar que nesse momento muitos conceitos psicanalíticos ainda estavam embrionários. O próprio conceito de narcisismo ainda não estava consolidado nos escritos freudianos e ainda se mantinha a Psicanálise junto das Ciências da Natureza.

A oradora introduz a temática analisando a enorme frequência que observa mães decepcionadas com o nascimento de seus filhos e que não demonstram um “verd deiro sentimento de mor m terno” usênci do mor m terno se mostr pela recusa de algumas mulheres de amamentar seus bebês ou pela intenção de não ficar com eles. Mas se, por insistência, essas mulheres aleitassem seus filhos, a relação mãe bebê estaria salva. Além disso, Hilferding denunciava os atos diretamente hostis em relação à criança, culminando com infanticídio ou sevícias exercidas sobre os infantes, com provas de falta de amor materno.

É surpreendente ver que o infanticídio só se produz em geral com o primeiro filho e mais frequentemente somente no caso de a mãe sentir aversão particular pela criança (por exemplo, porque o pai a abandonou). Enquanto psicanalistas, podemos dificilmente aceitar que essas mulheres sejam mentalmente degeneradas, como se postula para salvar essas infelizes. (HILFERDING; PINHEIRO; VIANNA, 1991, p. 90).

Fica claro nessa colocação que Hilferding, Pinheiro e Vianna (1991) estão postulando que o amor materno não é inato, e, isso fica mais evidente no primeiro filho. Teresa Pinheiro, refletindo sobre essa conferência e seu contexto histórico, defende a noção psicanalítica do inconsciente dentro de um aparato psíquico cindido e, colocando-o no universo da inteligibilidade. O homem falante, banhado na linguagem, relacionado ao simbólico é o homem da Psicanálise. Portanto, ao se pensar no amor materno como fazendo parte do mundo da linguagem, inseriremos esse amor no campo psicanalítico. Margarete Hilferding nos propõe em 1911, pensar o amor materno pertencente ao aparato psíquico de Freud (1915), com o inconsciente ligado a um sistema que obedece às regras de representação: representação coisa e representação palavra.

A interação física mãe-bebê também é abordada por Hilferding, como o incitador do aparecimento do amor materno. Os movimentos do feto ainda no ventre

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materno, sentidos como prazerosos, são também fenômenos que devem fazer surgir o sentimento amoroso. Hilferding definia a ideia de relações sexuais entre mãe e filho e relaciona o amor materno à sexualidade e às sensações corporais. No nascimento, portanto, quando todo esse prazer é perdido, há a possibilidade da perda de interesse da mãe pelo bebê.

Supõe-se que os primeiros sinais de amor materno surjam na época dos primeiros movimentos do feto. Parece que esses movimentos provocam também certa sensação de prazer, o que poderia ser considerado como índice dessas relações sexuais. Com a saída da criança, esse sentimento é perdido e é talvez aí que comece a aversão da mãe. (HILFERDING; PINHEIRO; VIANNA, 1991, p. 91). Margarete Hilferding ainda não bebeu da fonte do narcisismo e seu terreno de trabalho é a sexualidade ainda no seu sentido mais restrito. O corpo pulsional ainda era entendido somente através das sensações corporais que, originavam prazer e desprazer. Portanto, é a sexualidade que determinará o amor materno. A luz do conceito de narcisismo, a mulher grávida, na sua plenitude narcísica, estará instaurando a maior forma prazerosa e particular que uma mulher poderá vivenciar, haja vista, muitas mulheres mostrarem extrema felicidade e poder no momento de suas gestações. Para Hilferding essa extrema intimidade entre mãe e feto, o prazer e o poder desencadeados por essa relação e sentidos pela mulher são a base para que entendamos a frustração e descontentamento ao parir seu filho. A conferencista, de forma audaciosa, reverte toda a atenção para a mulher. Para Teresa Pinheiro, apesar dos avanços teóricos da Psicanálise, não poderíamos descartar as análises de Hilferding, que propõe uma metapsicologia da grávida, principalmente da grávida do primeiro filho. Através das transformações reais do seu corpo, juntamente com o surgimento de sensações corporais ou excitação sexual, essa nova mulher é assaltada por um enorme prazer que não tem controle, pois não o pode interromper, mesmo que queira. Para Hilferding a grávida é excitada permanentemente sem que ninguém saiba ou veja. Teresa Pinheiro assemelha essa ideia ao conceito de plenitude ou de um est do perm nente de gozo “O feto que excita a mãe o faz à revelia, de forma silenciosa e quase oculta, pelo menos para os outros que fazem parte do seu meio ambiente. Há entre eles (feto e mãe) algo que se passa quase clandestinamente, sem mediação.” (HILFERDING; PINHEIRO; VIANNA 1991, p. 121).

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Trazendo essa metapsicologia de Hilferding para a atualidade, percebemos a maior ênfase que foi dada à gravida. Pela via do narcisismo entendemos a plenitude da mãe pela compensação da falta. O feto lhe completa, a torna plena, poderosa e, afastada de sua condição de castrada. Na época dessa conferência, Hilferding poderia se prender pela lógica da falta pênis/falo, quando se referisse a mulher grávida e sua completude, mas vai além, ampliando para a ideia de prazer sexual, através da concretude das sensações corporais. Nessa linha de pensamento cita também, a origem do complexo de Édipo na criança, sendo o seu surgimento a partir da excitação sexual provocada pela mãe através dos cuidados dispensados ao seu filho Pel vertente d mãe, pós o p rto, com “descid ” do leite e m ment ção, a mulher deve encontrar um correlato nas suas sensações prazerosas.

Hilferding com audácia lança em sua conferência o problema da ausência do amor das mães para com seus rebentos após os parir, e o analisa pelo lado da mulher. O prazer instalado pelo filho ainda em seu ventre e a intimidade velada entre eles, pode até ser uma questão delicada de se analisar, quando a conferencista denuncia a vivência transgressora da proibição do incesto vivida pela mãe grávida. Pinheiro avalia que vem em socorro dessa transgressão, na cultura, a imagem da mulher grávida como uma santa, dessexualizada, inundada de amor materno. Para Hilferding o r ciocínio é lógico: “[...] esse amor materno exigirá, para manter-se ou para surgir, que essa relação tenha continuidade, que a parceria sexual se prolongue após o parto ” (HILFERDING; PINHEIRO; VIANNA 1991, p. 122).

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3 ESTUDOS SOBRE TRAUMA

Quando retiraram meu filho de dentro de mim e tentaram mostrá-lo, senti uma tristeza profunda. Não conseguia ver quase nada e subitamente virei o rosto para o lado oposto. Durante os dias que ainda estava no hospital não conseguia esconder esse sentimento. Eu não entendia o que estava acontecendo. Meu médico e minha família ficaram muito preocupados. Em uma semana já estava medicada pelo psiquiatra. (Relato de uma paciente)

A experiência de ter atendido essa paciente, me levou a buscar na Psicanálise o estudo sobre trauma, entendendo que haveria uma forte relação entre essa mulher que acaba de parir seu filho e vivências do passado. Será a maternidade um momento traumático para toda mulher? Considerando a possibilidade de que uma nova mulher surja a partir da existência de seu filho e, atentando para o fato de que, de certa maneira, há sempre um impacto frente essa nova situação, a busca pelo entendimento sobre o conceito de trauma nos escritos de Freud se tornou absolutamente necessária.

A noção de trauma se entranha por todo o desenvolvimento da teoria freudi n , entret nto, o longo desse desenvolvimento, Freud mostrou um “f zer” e “ref zer”, um “ firm r” e “re firm r” importânci do tr um n gênese do p relho psíquico. Além disso, notam-se transformações na enunciação do conceito de trauma por ocasião do desenvolvimento tanto da primeira, quanto da segunda tópica. Dessa forma, a trajetória desse importante conceito será a seguir pormenorizada.

3.1 Definição de trauma

p l vr “tr um ” é oriund do grego e signific ferimento N medicin designa a ideia de dano físico causada por agente externo e na psicanálise designa um acontecimento doloroso que torna o sujeito particularmente sensível em situações similares - o traumatismo.

Presente desde os primórdios da teoria freudiana, trauma era tema do Século XX, período das grandes guerras mundiais. Através das incessantes mudanças das sociedades, os conflitos se transformaram, mas o trauma se mantém como um conceito absolutamente atual e que merece atenção na clínica psicanalítica

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contemporânea. Ana Maria Rudge (2003) chama atenção para o fato de que dessa clínica emerge, hoje as repercussões do sentimento de desamparo oriundo da exposição à violência e à insegurança. Não é o acontecimento traumático, em si, que está em jogo, mas a forma como ele incide no psiquismo e a consequente elaboração pelo sujeito. Não há como se pensar em trauma sem relacioná-lo a composição de cada sujeito, que confere a partir disso, diversos arranjos psíquicos, tendo como pano de fundo as memórias e fantasias desse mesmo sujeito. Nesse sentido, a concepção de trauma em psicanálise está para além da simples experiência de um acidente. Enquanto ciência do particular ela não pode reduzír o valor do traumatismo a um aspecto meramente bruto; exige do sujeito que construa sua narrativa sobre o próprio evento.

Jacques Lacan, em sua releitura dos textos freudianos, passou a considerar o trauma como algo da ordem estruturante do ser humano: a entrada do pequeno ser na linguagem. A estrutura simbólica da linguagem funda o sujeito cindido, isto é o sujeito dividido entre o que é capturado pela palavra e o resto não passível de simbolização. É digno de nota que a teorização lacaniana não deixou, também, de enfatizar o aspecto contingente do trauma, levando em conta o efeito deletério que certas situações exercem na vida de cada pessoa. Como enfatiza Ana Maria Rudge (2004), o encontro com o real que exclui o sujeito e não se articula a seu desejo pode ser determinante para o surgimento do sintoma.

Dessa forma, as considerações traumáticas estruturais ou constituintes do sujeito são alinhadas a outras experiências traumáticas que só podem ser consideradas desorganizadoras a partir da história e da configuração psíquica de cada um. Essa singularidade só pode ser explicada a partir da interposição do inconsciente entre o trauma e seus consequentes sintomas.

3.2 O projeto para uma psicologia cientifica

No texto “Projeto para uma psicologia científic ” (1895), public do somente em 1950, o pai da psicanálise delineou o aparelho psíquico e definiu esboços de vários conceitos que foram mais bem desenvolvidos posteriormente. O texto marca o início da saída de Freud do campo da Neurologia, iniciando uma nova forma de pensar o psiquismo. Já é possível nesse texto vislumbrarmos a noção de trauma uma vez que o delineia como consequência de algo externo ao aparelho psíquico. O

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trauma é descrito no Projeto como algo que invade e se instala através da ruptura da b rreir de proteção exercendo “su ção p togênic até muito tempo depois de ocorrido o evento”. (LEJARRAGA, 1996).

O aparelho psíquico seria, então, capaz de transmitir e de transformar uma energia determinada. Freud construiu um pensamento teórico de natureza hipotética, que nega as bases anatômicas iniciando, assim, a elaboração de sua metapsicologia. Consistem nos sistemas phi, psi e ômega. No sistema phi os neurônios são permeáveis à passagem de energia (Q). São neurônios condutores e não retentores de Q, servindo para a percepção, por isso não se alteram a cada nova passagem de Q, mantendo intacta essa função. Estão em contato direto com o mundo externo e recebem os estímulos através dessa fonte, porém são protegidos pelos órgãos dos sentidos que funcionam como telas protetoras que permitem a passagem de apenas frações de Q exógena. No sistema psi os neurônios não são tão permeáveis e podem sofrer modificações pela excitação. A permeabilidade dos neurônios é definida pela resistência das barreiras de contato, ou seja, quanto maior essa resistência, maior a impermeabilidade nesse contato para passagem de Q. Por essas características, esse sistema é definido como um sistema de memória, pois se altera permanentemente com a passagem de energia, deixando marcas ou traços mnêmicos nos neurônios psi. Portanto, percepção (phi) e memória (psi) são funções que se excluem mutuamente (FREUD, 1895). Como explicar, então, no mesmo aparelho, a memória com características de impermeabilidade e a percepção com a noção de permeabilidade? A explicação dada por Freud na época consistiu na teorização de um sistema com características e funções múltiplas. O sistema psi

está relacionado aos estímulos endógenos, sofrendo pressão constante dos mesmos, provocando, através do chamado trilhamento (Bahnungen) ou facilitações, modificações do percurso em determinadas direções e não em outras e que tornam possível o aparecimento da memória como um processo de repetição de percursos facilitados. A repetição de um determinado percurso, ou seja, a memória, vai se dar em função de facilitações que foram deixadas por percursos anteriores. Bahnungen constitui a memória já que ela se faz através das diferentes facilitações ou trilhamentos por onde a Q pode passar. Se todos os caminhos ou trilhamentos fossem igualmente possíveis, ou seja, se a Bahnungen fosse a mesma em todas as direções, não haveria a preferência de um caminho sobre o outro e, portanto, não

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haveria memória. Garcia-Roza (2008), parafraseando Lacan, considera que a origin lid de do “projeto” está n noção de Bahnungen:

O recurso a essa noção não nos remete a uma psicologia da aprendizagem que faz do hábito a função básica da aprendizagem. Bahnungen não deve ser entendido como um efeito mecânico do hábito, ele é invocado como prazer da facilidade, e será retomado como prazer da repetição. (GARCIA-ROZA, 2008, p. 137).

A memória concebida nessa época apresenta um dinamismo, à medida que implica uma preferência na escolha dos caminhos. A memória não é uma repetição mecânica. Ela é constituída pela trama das representações (Vorstellungen), ou melhor, de uma articulação significante.

Os processos que ocorrem nos sistemas phi e psi são inconscientes. Para explicar os processos conscientes, Freud definiu o sistema ômega. Os neurônios desse sistema são excitados juntamente com os da percepção (phi) e nos primeiros são produzidas as sensações conscientes de prazer e desprazer. Portanto, os neurônios dos sistemas phi e psi lidam com quantidade de Q exógena e endógena, respectivamente e estariam no pressuposto inconsciente e os do sistema ômega, que tem como característica a percepção ligada à qualidade, estariam compondo o posterior sistema percepção – consciência. Os neurônios ômega se relacionam com os phi e os psi da seguinte forma: recebe estimulo de phi e fornece a psi os signos de qualidade e realidade.

À época já havia um consenso entre a magnitude do estímulo e a resposta desencadeada. A inovação de Freud seria na transposição dessa noção para o campo das psicopatologias. Segundo ele as representações hiperintensas observadas nas neuroses histéricas e obsessivas demonstram a existência de uma quantidade energética excessiva envolvida nesses processos. Porém, houve necessidade de amadurecer o conceito de quantidade para se desenvolver a noção de intensidade, baseado na hipótese econômica do funcionamento psíquico. Há uma tendência do aparelho psíquico a manter constante não a quantidade de energia neurônica (Erregungsgrösse), mas seu nível de intensidade (Erregungssumme), portanto, o seu funcionamento é baseado numa regulação da intensidade energética. É fato que esse momento dos escritos de Freud as terminologias poderiam se mostrar confusas, porém, fica claro que ao citar intensidade, o que se espera é dizer de algo que está sujeito a aumento ou diminuição e que, apesar de

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implicar a quantidade, não é redutível a ela. Em certos casos, a intensidade é considerada como expressão qualitativa de uma quantidade. (GARCIA-ROZA, 2008).

O sistema neuronal deve manter as vias de escoamento de energia afastadas da fonte de excitação, ou seja, organizar uma fuga do estímulo. Entretanto, os estímulos endógenos não podem ser liberados pelo aparelho neuronal, da mesma maneira que os estímulos exógenos são através da fuga. Mas a energia endógena tentará sua descarga através dos caminhos motores (semelhantes aos estímulos exógenos) que, não conseguindo totalmente, provocará a chamada alteração interior. Como exemplo disso, presenciamos o choro ou a agitação motora do bebê em situações vivenciadas de intenso desprazer. Nesse sentido, a descarga energética endógena não sendo total, faz emergir a ideia da lei da constância, que vem a ser a tolerância a uma quantidade residual de energia capaz de realizar ações mais específicas para a satisfação dos estímulos internos. Dessa forma, o sistema neurônico procura manter a quota de Q num nível o mais baixo possível ao mesmo tempo em que procura se proteger contra qualquer aumento da mesma, ou seja, a mantém constante. Entendemos, portanto, que a descarga não alivia a tensão de psi, porque o estímulo endógeno persiste e o sistema ômega percebe o desprazer. “Nenhum desc rg pode produzir result do livi nte, visto que o estimulo endógeno continu ser recebido e se rest belece tensão em psi ” (FREUD, 1895, p. 370).

É o que Freud define como Drang e será mais tarde um dos constituintes da elaboração do conceito de pulsão. Por ora o que Freud afirmou é que essas tensões endógenas não eliminadas ou não reduzidas estão ligadas as necessidades corporais ou ao estado de urgência de vida tal como a fome (Not des Lebens).

Nesse caso, o estimulo só é passível de ser abolido por meio de uma intervenção que suspenda provisoriamente a descarga de Q no interior do corpo; e uma intervenção dessa ordem requer a alteração do mundo externo (fornecimento de viveres, aproximação do objeto sexual), que, como ação específica, só pode ser promovida de determinadas maneiras. O organismo humano é, a princípio, incapaz de promover essa ação específica. Ela se efetua por ajuda alheia, quando a atenção de uma pessoa experiente é voltada para um estado infantil por descarga pela via de alteração interna, como, por exemplo, o grito da criança. Essa via de descarga adquire, assim, a importantíssima função secundária da comunicação, e o desamparo inicial dos seres humanos é a fonte primordial de todos os motivos morais. (FREUD, 1895, p. 371).

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Os primeiros encontros entre a mãe e seu filho de certo são intermediados por experiências traumáticas que terão conotações estruturantes, contudo, podem se apresentar também de uma forma devastadora infringindo um aspecto danoso. Considerando que nessa situação há uma forma inter-relacional inédita, esse trauma pode se instalar para ambos os lados, o que por vezes explica o quanto a relação mãe-bebê pode se tornar extremamente ambivalente.

No exemplo da criança, que chora e agita os membros quando é tomada pela sensação da fome, há uma descarga motora para alívio dessa tensão, mas ela não é suficiente o bastante para a obtenção do alimento. Porém ela é determinante para que se configure uma demanda que, sendo atendida pelo outro semelhante, introduz o sujeito n troc simbólic É noção de “Nebenmensch” (o próximo), onde lterid de se impõe como tr umátic s intervenções do “Nebenmensch” tem função de amparo e ligação, mas o indivíduo não a detecta de imediato, sendo sempre uma descoberta traumática nos primórdios da vida psíquica (MELLO, 2012, p. 102).

Outra questão importante explicada por Freud através do aparelho neuronal de memória de 1895 é a vivência da dor. Todos os dispositivos de proteção que impedem a passagem de grande quantidade de Q (endógena ou exógena) fracassam quando há a presença da dor. Os estímulos endógenos são os que frequentemente se apresentam como de maior intensidade porque são constantes (pressão continua endógena). “ dor fic ssim c r cteriz d como um irrupção de Q excessivamente grande em phi e psi.” (FREUD, 1895, p. 359).

Além da quantidade, a dor possui também uma qualidade que é dada pelo sentimento de desprazer em ômega. Na vivência da dor a imagem do objeto hostil é reinvestida, surgindo o estado de desprazer que procura uma descarga. Esse estado de desprazer Freud denominou de afeto e não é propriamente a dor. O afeto é decorrente do reinvestimento da imagem do objeto hostil através da repetição daquela percepção (Q de intensa quantidade) que provocou a dor. O afeto é, portanto, a reprodução da vivência da dor ou o desprazer.

Fic notório que no “Projeto” o princípio d inérci possuí verd deir interface com o princípio do prazer, pois evitando o desprazer o aparelho psíquico reduz o estímulo tendendo à inércia. Esse princípio será revisado mais tarde, em 1920, com a lógica do “ lém do princípio do pr zer”, qu ndo Freud percebe que

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