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O uso das narrativas de si ou narrativas formativas na pesquisa em educação

No documento Dissertação de Sandra Novais Sousa (páginas 119-124)

3 UMA TELA, DUAS TÉCNICAS: ANÁLISE DA MATRIZ TEÓRICA DO

4.1 O uso das narrativas de si ou narrativas formativas na pesquisa em educação

Historicamente, o pensador Walter Benjamin (1892-1940) foi um dos pioneiros a tratar a narrativa de uma forma que “[...] desse voz àqueles que não são ouvidos, pois, na maioria das vezes, não se leva em conta as diferentes perspectivas para narrar a história oficial sobre os fatos acontecidos na sociedade.” (CARVALHO, 2013, p. 87). Na pesquisa em educação que se utiliza de narrativas de si, a ideia geral de Benjamin permanece: Dar vez e voz, ou melhor, oferecer escuta à voz dos atores da prática educativa muitas vezes silenciados pela história oficial.

Não é difícil perceber como o papel social do professor e da professora tem sido reconfigurado ao longo da história oficial da educação. Seu reconhecimento, enquanto

profissional, está em constante declínio, muitas vezes pela forma com que a mídia trata a profissão docente – às vezes como uma espécie de sacerdócio, às vezes como um subemprego, muitas vezes como se fosse “um mal necessário” – servindo assim como um poderoso instrumento de formação popular da imagem que se tem dos professores, em geral. Assim, “[...] ao longo de sua história, a profissão docente foi arrastando um déficit de consideração social” por se considerar que ser professor ou professora “[...] se pareça mais com ocupações do que com 'verdadeiras' profissões, como certamente o são a Medicina ou o Direito." (GARCIA, 2010, p. 20). Relacionando a imagem cultural do professor de Ensino Médio ou de nível superior, em comparação com a do professor do Ensino Fundamental - principalmente os da primeira fase - e os professores da Educação Infantil, percebemos nestes últimos uma forma quase cruel de encará-los: são tidos como despreparados, incapazes, mal formados, suscetíveis de direcionamento. Até mesmo a Pedagogia (tomando-se aqui o termo como a formação inicial dos pedagogos) tem sido alvo de questionamentos se teria ou não o status de Ciência. O único consenso, aparentemente, é que de uma forma ou de outra os professores sempre estiveram, em maior ou menor proporção, no centro das preocupações e das políticas voltadas para a educação. E a educação sempre esteve, por seu lado, no centro das preocupações sociais.

Garcia (2010) afirma:

No princípio do século XX, pertencer ao sistema educativo – ser mestre ou professor – era um verdadeiro privilégio, que permitia a incorporação a um âmbito respeitável e prestigioso, com possibilidades de autorrealização e um sentido de pertencimento significativo. Hoje em dia, pelo contrário, o trabalho docente tem sido qualificado como um trabalho de risco, participando de quase todos os fatores considerados habitualmente como fonte de fadiga nervosa: sobrecarga de tarefas, baixo reconhecimento, atenção a outras pessoas, papel ambíguo, incerteza em relação à função, falta de participação nas decisões que lhe são concernentes, individualismo e impotência. (GARCIA, 2010, p. 23).

Essa crise da profissão docente causa, também nos professores, uma crise identitária, pois, conforme explica Garcia pelo fato de a mídia “transmitir uma imagem negativa da realidade do ensino e da atuação dos professores [...] os próprios docentes parecem estar convencidos de que efetivamente é assim.” (GARCIA, 2010, p. 21).

O constante descrédito que a profissão docente vem sofrendo, por sua vez, abre brechas para que outros “profissionais mais habilitados” intervenham nos rumos da profissão, a fim de “ajustá-la” à sua dita finalidade social. “Nessa perspectiva, considera-se que as

mudanças na educação são processos lineares que se implantam de forma simples, contanto que saibamos 'explicar' bem aos docentes em que consistem.” (GARCIA, 2010, p. 25).

Segundo Nóvoa (2009), parece haver um entendimento geral dos princípios e medidas que assegurariam um melhor desempenho docente:

[...] articulação da formação inicial, indução e formação em serviço [...]; atenção aos primeiros anos de exercício profissional; valorização do professor reflexivo e de uma formação de professores baseada na investigação; importância das culturas colaborativas, do trabalho em equipa, do acompanhamento, da supervisão e da avaliação de professores; etc. (NÓVOA, 2009, p. 14).

Contribuiu para esse “consenso discursivo”, segundo o autor, a quantidade de investigadores da área de formação de professores e de especialistas que atuam como consultores. Assim, Nóvoa (2009) analisa que esse aumento nos últimos anos “da comunidade da formação de professores, em particular dos departamentos universitários na área da Educação”, assim como dos “especialistas internacionais” e da “indústria do ensino”, fornecedora dos “produtos tradicionais (livros escolares, materiais didácticos, etc.)”, produziu o que ele chama de uma inflação discursiva sobre os professores. Adverte, porém: “Mas os professores não foram os autores destes discursos e, num certo sentido, viram o seu território profissional e simbólico ocupado por outros grupos.” (NÓVOA, 2009, p. 16).

Garcia (2010), em análise convergente, afirma:

Ao longo dos anos 1990 e na década atual, foram promovidas reformas nos sistemas educativos, desenhadas por administrações convencidas de que a evidente bondade das mesmas levará inexoravelmente à sua definitiva implantação. Assim, se traduz uma visão do docente como aplicador “automático” de inovações que, com frequência, nem sequer entende e em cuja formulação, certamente, não teve participação alguma. (GARCIA, 2010, p. 25).

Desta forma, pensar em alternativas de melhoria da profissão docente, sem levar em consideração os atores principais dessa ação, converte-se em um modo de fazer com que estes estejam novamente à margem da “história oficial”, ou seja, desprovidos de voz ativa nas questões que envolvem seu fazer docente. Na contramão desse pensamento hegemônico, muitos estudiosos têm pesquisado e apresentado maneiras de incluir o professor em seus próprios processos formativos. Conforme asseguram Nóvoa e Finger (2010, p. 15), é necessário entender que “[...] nenhum serviço de formação permanente pode reduzir a sua atividade aos modelos tradicionais aceitos, consubstanciados, via de regra, na formação em sala.” Garcia argumenta:

Alguns autores estão chamando a atenção sobre a ironia implícita no fato de que ao mesmo tempo que se tenta convencer os professores e as escolas de que deveriam ser mais autônomos e responsáveis pelas próprias necessidades, também se está instruindo como devem ser seus resultados e como devem abordar as prioridades nacionais para melhorar as posições que se obtêm nos estudos internacionais. Supõe-se que os professores estão tendo mais autonomia escolar precisamente no mesmo momento em que os parâmetros com os quais se espera que trabalhem e mediante os quais serão avaliados estão sendo cada vez mais demarcados e limitados. (GARCIA, 2010, p. 25).

Como contraponto a essa visão tradicional de formação, tem ganhado cada vez mais espaço a utilização do método (auto)biográfico na formação de professores. Souza, Portugal e Silva explicam que a pesquisa (auto)biográfica em questões de ensino e de formação, no contexto das pesquisas qualitativas em educação, “[...] se consolidam a partir da década de 1980 [...] embora de uma forma muito discreta e lenta em contraposição à tradição da pesquisa quantitativa, com análises estatísticas de variáveis, voltadas para a precisão da objetividade”. A opção metodológica por essa linha de pesquisa envolve a adoção de um novo modo de encarar a docência, a formação inicial e continuada. Não é possível empreender esse tipo de pesquisa estando-se ainda arraigado em antigos conceitos ou “[...] numa visão mecanicista e positivista da modernidade.” (SOUZA; PORTUGAL; SILVA, 2013, p. 49).

Embora não seja ainda um total consenso entre os pesquisadores “[...] considerar memórias, lembranças, relatos de vida, biografias, histórias de vida, narrativas memorialísticas como fontes de pesquisa foi acontecendo muito lentamente, ganhando maior visibilidade a partir da década de 1990.” (SOUZA; PORTUGAL; SILVA, 2013, p. 50).

Dessa forma, “[...] o processo de formação pelas histórias de vida apresenta-se enquanto movimento de reivindicação, que reconhece os saberes subjetivos e adquiridos nas experiências e nas relações sociais, sendo ela a própria história de formação do sujeito.” (ROCHA; SOUZA, 2013, p. 179).

Ainda, segundo Antonio Bolívar Botía:

La narrativa no es solo uma metodologia; [...] La subjetividad es, más bien, uma condición necesaria del conocimiento social. La narrativa no solo expressa importantes dimensiones de la experiencia vivida, sino que, más radicalmente, media la propia experiencia y configura la construcción social de la realidad. Además, um enfoque narrativo prioriza um yo dialógico, su naturaleza relacional y comunitaria, donde la subjetividad es uma construcción social, intersubjetivamente conformada por el discurso comunicativo. El juego de subjetividades, em um processo dialógico, se convierte en um modo privilegiado de construir conocimiento. (BOTÍA, 2002, p. 43).

Em conformação com as ideias de Botía, Cecília Galvão apresenta outras dimensões da pesquisa com narrativas:

Os professores não só trazem para a escola uma história pessoal que dá sentido às suas ações, mas também vivem aí uma história que os ajuda a dar sentido ao mundo. O modo como organizam a aula e interagem com os alunos pode ser visto como o construir e reconstruir a história da sua experiência pessoal. As explicações contêm crenças e valores, assim como ações de referência, e no método narrativo os assuntos são contextualizados em termos de acontecimentos que são analisados, mais tarde, de uma forma pessoal, dando aos acontecimentos um significado situacional. (GALVÃO, 2005, p. 331).

Trata-se, portanto, de “[...] uma busca de alternativas que, longe de utópicas, mas próximas das possibilidades, recolocam o professor no centro dos debates e de nossas investigações.” (ROCHA; SOUZA, 2013, p. 178).

Ressaltamos que o uso dos ateliês biográficos, no contexto desta pesquisa, destinou-se a buscar com maior profundidade quais os saberes trazidos pelos professores e como estes percebiam as ações de formação continuada da SED/MS, assim como as diferenças teóricas entre os dois programas adotados no estado. Seu caráter (auto) formativo deve-se ao entendimento de que, ao produzir e socializar as narrativas de si, os professores fazem mais do que simplesmente expor suas emoções ao rememorar situações vividas como aluno ou como professor. A escrita dessas experiências e sua socialização em ambientes como os dos ateliês proporciona um excelente canal de reflexão sobre a ação (sofrida ou realizada), e essa situação de reflexão, por sua vez, configura-se como um potente instrumento a favor de uma (auto) formação, ou ainda, como propõe Dominicé (2010, p. 147), de uma “avaliação formadora” ou um “suporte de autoformação”, o qual ocorre quando a ação educativa provoca regulações, que “[...] para se tornar realmente formadora, devem resultar em autorregulações.” Segundo Josso (2004, p. 16), “[...] no passado não há somente as coisas que ocorreram, há também todo o potencial que cada indivíduo tem para prosseguir a sua existência de futuro” sendo que “[...] a experiência formadora implica uma articulação consciente entre atividade, sensibilidade, afetividade e ideação.” (JOSSO, 2004, p. 48).

É nesta perspectiva que optamos por não encerrar nossa pesquisa apenas com a análise do que é dito ou pensado pelos pesquisadores e teóricos nos trabalhos acadêmicos sobre a formação de professores, ou com a análise dos conceitos presentes no PNAIC e no Além das Palavras/Alfa e Beto. Faltava ainda, em nossa concepção, incluir os professores nessa análise, considerando suas ideias e percepções sobre essa mistura toda, além de fazer uma tentativa de, minimamente, oferecer alguma contribuição para ajudá-los a realizar essa “articulação

consciente” entre suas construções conceituais pessoais e uma visão dotada de maior criticidade sobre os referenciais teóricos dos programas em vigência no Estado de Mato Grosso do Sul.

No documento Dissertação de Sandra Novais Sousa (páginas 119-124)