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Pinceladas de letramento no Pacto

No documento Dissertação de Sandra Novais Sousa (páginas 101-105)

3 UMA TELA, DUAS TÉCNICAS: ANÁLISE DA MATRIZ TEÓRICA DO

3.5 Outro tom, outras nuances: entra em cena o PNAIC

3.5.3 Pinceladas de letramento no Pacto

Uma das principais divergências teóricas entre os conceitos do PNAIC e do Programa "Alfa e Beto" refere-se à conceitualização e ao tratamento dado ao letramento no processo de alfabetização inicial, antes de ser consolidado o aprendizado do SEA. Para o Programa Além das Palavras/Alfa e Beto, o letramento seria introduzido somente após a criança possuir a habilidade de decodificar e codificar a língua escrita. Para o PNAIC e, surpreendentemente, para a SED/MS, de acordo com o Referencial Curricular (MATO GROSSO DO SUL, 2012b),

o letramento acompanha o processo de alfabetização desde o seu início. As implicações desse entendimento sugerem que:

O rompimento da concepção de língua escrita como código para uma concepção da mesma como sistema de notação alfabética, realizado por meio de diversos estudos, entre eles, os de Emília Ferreiro e Ana Teberosky (1986), trouxe avanços significativos para o fazer pedagógico. Atrelada a esta compreensão, veio também a de que é por meio da interação com os usos e funções da língua escrita que a aprendizagem ocorre. Assim, fica claro não mais haver sentido em se trabalhar com os alunos os textos “artificiais” encontrados em cartilhas. (BRASIL, 2012b, p. 7).

Para o Pacto, o letramento consiste em um “[...] conjunto de práticas de leitura e produção de textos escritos que as pessoas realizam em nossa sociedade, nas diferentes situações cotidianas formais e informais.” (BRASIL, 2012e, p.7). Esse entendimento implica exatamente na escolha de quais os tipos de texto que serão oferecidos às crianças em seus primeiros contatos com a leitura e escrita em situação escolar. Na perspectiva do SEA como código, as cartilhas e seus textos artificiais produzidos para ensinar passo a passo a associação entre letras e fonemas servem perfeitamente a essa função. Na concepção teórica do alfabetizar letrando, porém, esses textos são inconcebíveis, pois fogem ao que é encontrado nas situações reais de leitura e escrita realizadas em sociedade. A máxima do Programa Alfa e Beto de que existe o tempo de aprender a ler, que precede o de ler para aprender, é refutado nos cadernos de formação do PNAIC:

Discordamos, portanto, da ideia de que aprender a ler e a escrever signifique apenas adquirir um “instrumento” para futura “obtenção de conhecimentos” [...] a escolha dos textos, das situações vivenciadas, pode ser feita de modo a considerar os temas que podem ajudar as crianças a desenvolverem atitudes críticas. (BRASIL, 2012b, p. 5).

Sempre considerando que há uma clara diferenciação entre a alfabetização inicial e a consolidação da alfabetização e que o SEA é um sistema notacional, enfatiza-se um trabalho sistemático de ampliação da autonomia na leitura e na escrita, por meio da compreensão das regularidades e irregularidades da língua escrita, ou seja, a ampliação e consolidação da alfabetização. Assim:

Essa concepção é contrária à concepção de que a alfabetização é a aprendizagem de um código, que seria ensinado por meio de métodos de ensino – ora analíticos ora sintéticos, que concebem o sujeito como mero receptor de conhecimento. Essa perspectiva permeou o ensino durante muito tempo, no nosso país, e, com base nesse conceito restrito, defendia-se que a criança precisaria apenas de um ano para se alfabetizar. (BRASIL, 2012b, p. 14).

Alfabetizar sem lançar mão de cartilhas significa para o professor planejar situações de leitura e escrita contextualizadas e significativas, sendo que isso só é possível quando são utilizadas diferentes tipologias e suportes textuais. A leitura literária, feita com regularidade nas salas de alfabetização por meio de situações de leitura compartilhada, propicia a inserção das crianças num mundo de imaginação, criatividade e fantasia, sendo essencial para a efetivação do processo de alfabetização. Porém, outras leituras são necessárias e imprescindíveis: o texto de jornal, de revistas, cadernos de receitas, as regras de um jogo, folhetos de propaganda, rótulos de embalagens, enfim, a leitura de “textos” encontrados no dia a dia das crianças.

É importante ressaltar que alfabetizar letrando não significa que apenas a oferta de textos de diferentes gêneros é condição suficiente para que o aluno aprenda, quase que por “osmose”, a ler e escrever. Antes, na perspectiva de alfabetização defendida no Pacto, a mediação do professor, ao criar situações em que haja a reflexão sobre a língua escrita, é fundamental. Assim,

Trabalhar considerando múltiplos usos e funções da escrita na sociedade potencializa as possibilidades de refletir criticamente as relações que se estabelecem entre as pessoas em nossa sociedade. Ao interpretar e produzir textos escritos em diferentes gêneros, o aprendiz é levado a se indagar sobre quem escreve e em que situação escreve; o que se escreve; a quem o texto se dirige e com que intenções; quais os efeitos que o texto procura produzir no leitor, etc. Essas indagações favorecem a compreensão de como as relações sociais são representadas e constituídas na e por meio da escrita. (MACIEL; LÚCIO, 2008, p. 15).

Para que o aluno possa fazer tais indagações sobre o texto lido ou ouvido por ele, faz- se necessário que esse texto ofereça respostas a essas reflexões. Textos, como os já demonstrados nesta pesquisa, utilizados no Programa Além das Palavras, carecem de sentido não sendo passíveis, portanto, de serem compreendidos dentro das representações sociais. Talvez, por esse motivo, muitas vezes o sentido de letramento nos manuais do Alfa e Beto misture-se com compreensão, causando a confusão conceitual de que o aluno só precisaria compreender ou interpretar criticamente o que lê ou o que é lido para ele depois de consolidado o processo de alfabetização.

Para o MEC, “o letramento e a alfabetização revelam-se como demandas nucleares dos anos iniciais.” Assim, mesmo antes da implementação do PNAIC, as escolas vêm recebendo acervos complementares por meio do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), sendo esse acervo formado por livros de literatura infantil “[...] destinados a articular o letramento e a alfabetização iniciais.” (BRASIL, 2012c, p. 13).

O compromisso maior desses Acervos é com a curiosidade natural da criança, assim como com o seu desejo de ler por conta própria. [...]. Na verdade, foram escritos para estimular e ajudar a formar os jovens leitores; e é a essas crianças de até oito anos que eles pretendem seduzir, informar, divertir, convencer etc. Pensados para um convívio íntimo e cotidiano com os alunos em sua própria sala de aula, os acervos devem funcionar como janelas, de onde o aluno da escola pública poderá ter uma visão representativa do que a cultura da escrita lhe reserva de interessante. (BRASIL, 2012c, p. 23).

Assim, segundo as orientações do MEC, os processos de alfabetização e letramento devem acontecer de forma simultânea. Para tanto, as classes de alfabetização (1º ao 3º anos) têm recebido uma caixa com 20 livros de literatura infantil e um exemplar do documento Acervos Complementares: alfabetização e letramento nas diferentes áreas do conhecimento, o qual contém instruções precisas sobre a importância do letramento na alfabetização e nas séries finais.

Pensados para um convívio íntimo e cotidiano com as crianças em sua própria sala de aula, os acervos são verdadeiras janelas, de onde o aluno da escola pública poderá, exatamente como a criança frequentadora de livrarias, ter uma visão representativa do que a cultura da escrita lhe reserva de interessante. O contato com esses livros, e ainda mais o uso frequente dos acervos em sala de aula, propiciará às crianças uma experiência cultural única — a de explorar, com a mediação do professor, mas também por conta própria, o mundo dos livros. (BRASIL, 2009, p. 10, grifo do autor).

É impossível não associar esse procedimento do MEC ao praticado pelo Programa Alfa e Beto. Apesar de incluir em seu pacote, ou kit de alfabetização, o livro gigante Chão de Estrelas11, no qual há uma ótima coletânea de textos literários, a maior parte do contato que os alunos do Programa têm com textos são os livros produzidos para a aprendizagem de determinado fonema, como os minilivros já citados nesta pesquisa. Os livros recebidos por meio do Programa Acervos Complementares do MEC, no entanto, referem-se aos mesmos exemplares encontrados pelos alunos nas livrarias, ou seja, são livros reais, aqueles a que as crianças que possuem uma família com condições financeiras para comprá-los têm acesso. Assim, é oferecida a oportunidade de os alunos das escolas públicas conhecerem e adentrarem o privilegiado mundo da cultura do escrito.

Não restringir a leitura feita em sala de aula, assim como as produções escritas, a textos artificiais e descontextualizados, faz parte do que se chama alfabetizar letrando, e que é

11O livro possui 20 textos que incluem músicas, poemas, parlendas, entre outros. Consiste em um exemplar, em

tamanho “gigante”, que deve ser utilizado pelo professor em rodas de leitura. No entanto, o planejamento dessa atividade também é direcionado à aprendizagem de determinado fonema, sendo que no guia para o professor vem a indicação de qual dos textos do livro gigante Chão de Estrelas deve ser lido em conjunto com as lições dos outros manuais didáticos do Programa.

sistematicamente recomendado nos cadernos de formação do Pacto, e antes dele, nas formações de professores promovidas pelo MEC.

No documento Dissertação de Sandra Novais Sousa (páginas 101-105)