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Conforme afirmado anteriormente, o objeto de trabalho constitui-se tanto dos elementos brutos oferecidos pela natureza (água, madeira, minério, etc.) quanto da matéria-prima, aquela que passou por algum tipo de transformação mediada pelo trabalho. O primeiro objeto é a terra, de onde serão escolhidas as coisas a serem transformadas. Estas coisas que o trabalho “desprende” do seio da terra são “objetos de trabalho encontrados a partir da natureza” (MARX, 1988, p.143).

A terra (que do ponto de vista econômico inclui também a água), como fonte original de víveres e meios já prontos de subsistência para o homem, é encontrada sem contribuição dele, como objeto geral do trabalho humano. Todas as coisas, que o trabalho só desprende de sua conexão direta com o conjunto da terra, são objetos de trabalho preexistentes por natureza (MARX, 1988, p.143).

O principal objeto do trabalho com o qual os assentados vão criar suas condições de vida, a terra, encontrava-se no momento da ocupação extremamente desgastada devido ao modelo predatório de extração da madeira e formação de pastagens de modo irregular, utilizadas à exaustão35. Uma das primeiras tarefas dos assentados juntamente com a produção de alimentos foi recuperar as áreas degradadas, as nascentes, reflorestar o espaço. O relatório do Projeto Final de Assentamento produzido pelo INCRA mostra como houve a recomposição vegetal da área com a criação do assentamento, conforme figuras 1, 2, 3 e 4.

Marx (1988) chama a atenção para o fato de que quando homem e natureza interagem por meio do trabalho, esta última passa por um processo de humanização. Quando algo é retirado da natureza e entra no ciclo do trabalho uma nova dimensão lhe é dada. E estes produtos considerados da Natureza (como animais, plantas e sementes, por exemplo) podem ser produtos do trabalho do ano passado ou até frutos de transformações realizadas continuadamente por várias gerações. Pode-se até falar em natureza feita pelo homem. Como bem expressa Altvater (2007, p.333) “ao aplicar as leis da natureza ao processo de trabalho, o

homem transforma a natureza em natureza feita pelo homem, “humanizada”. Muito

mais que um conjunto de recursos “úteis”, a natureza é uma totalidade complexa de relações homem-natureza.

Sendo natureza humanizada, produzida pelo homem, a natureza é parte das condições gerais de produção. Sua degradação ou mesmo a destruição das condições naturais de sua produção e reprodução está ligada ao desenvolvimento contraditório e histórico da economia e sociedade, da dinâmica das relações sociais entre ser humano e natureza. A região do Vale do Rio Doce onde se localiza o assentamento teve seu desenvolvimento econômico marcado pela instalação da

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Segundo relatório da FAO, a América Latina e Caribe contam com 24% da superfície agrícola mundial, tem um elevado grau de erosão e degradação que, em conjunto com o esgotamento das terras mais férteis e do impacto da revolução verde, tem reduzido consideravelmente as taxas de crescimento dos rendimentos dos cultivos na região.

indústria siderúrgica, das madeireiras, da pecuária, da construção da Estrada de ferro Vitória-Minas e da Rodovia Rio Bahia a partir do início do século XX. Foi, segundo Dean (1996), a última região do estado de Minas a ser ocupada pelo homem branco, constituindo-se nas ditas “áreas vazias”, separando-se das áreas auríferas do litoral.

Após o devastamento das matas da região para o fornecimento do carvão à ferrovia e às siderúrgicas, as terras foram utilizadas para pastagens e produção agrícola de café, milho, mandioca e banana. Atualmente, ainda existe a produção agrícola de milho, mandioca e banana, em estágio de modernização tecnológica precário, mas prevalecem as grandes propriedades de pecuária extensiva. Em função do padrão de utilização das terras, a região foi palco de conflitos por terras nos anos quarenta e cinqüenta, sendo que, nos últimos anos observa-se uma intensificação do conflito fundiário, a criação de assentamentos rurais, e a ampliação do número de acampamentos a espera da desapropriação de terras (PEREIRA, 1988; INCRA, 2005, FREITAS, 2005).

FIGURA 4. Vista parcial do local onde foi montado o acampamento nos anos 90 e onde atualmente se localiza um dos núcleos de moradia (observar o estado de degradação ambiental da área).

FIGURA 5. Vista parcial em 2003, da área apresentada na Figura 3, após a implementação do Projeto de Assentamento. (Observar o avançado estado de recomposição da cobertura vegetal)

FONTE: Extraído do Projeto Final de Assentamento elaborado por INCRA-MG.

Além de objeto de trabalho, a terra constitui ainda aquilo que Marx denomina “condições objetivas” para que o processo de trabalho se concretize. Ela fornece ao trabalhador o “lugar para ficar” e constitui-se no “campo de ação” para o desenvolvimento do processo de produção. As terras onde se localiza o assentamento são, segundo relato dos assentados e avaliação dos técnicos governamentais, férteis e próprias para a agricultura. No entanto, o clima quente e seco provoca perdas freqüentes das lavouras, comprometendo a subsistência das famílias, tanto do grupo dos individuais quanto do grupo coletivo36

. Para muitos entrevistados, a questão climática e o conseqüente comprometimento da produção para o consumo interno foi um dos fatores que dificultou a sobrevivência da cooperativa.

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Segundo projeto final de assentamento produzido pelo INCRA, o clima predominante na região é do tipo quente e úmido, com estação seca bem definida, coincidindo com o inverno. As chuvas concentram-se no período de outubro a março. Os solos da maior parte do assentamento têm boa fertilidade, mas apresentam alto risco de erosão.

Inicialmente tivemos muitos problemas relacionados a situação climática, chuva muito concentrada em pouco período de tempo, quer dizer, os três últimos meses do ano, outubro, novembro e dezembro chovia bastante, os outros meses não. (…) E aqui nós passamos por sérios problemas e ainda passamos hoje, que é essa questão mesmo que é de produzir o suficiente para alimentar por causa dessas perdas: plantava, morria, nós chegamos a perder lavoura por completo na baixa Rio Doce e a gente plantava bastante, hoje menos, perdemos tanto com o sol - a seca - quanto com a chuva. (Entrevistado A)

Freitas (2005), em pesquisa realizada no assentamento, já apontava que as características ambientais vinham colocando limites ao desenvolvimento dos assentados seja por causa das características do clima - baixa precipitação, má distribuição das chuvas, temperaturas elevadas, degradação do solo, áreas suscetíveis a erosão, relevo ondulado, etc. - seja devido aos problemas inerentes ao processo de criação de um assentamento (acesso a crédito, assistência técnica, etc.). Acrescente-se a isso que as poucas áreas propícias para o plantio, geralmente próximas aos cursos d’água estão inseridas em áreas de proteção pela legislação ambiental.

Desse modo, a utilização da terra para fins agrícolas esbarra no conjunto de limitações acima explicitadas. Segundo assentados, somente com projeto de irrigação é possível desenvolver o plantio de culturas sem ficar a mercê das potências da natureza. Como já dito anteriormente, as terras são férteis e com condições adequadas de temperatura e umidade elas já mostraram sua capacidade na produção de arroz, milho, feijão, dentre outros.

se não buscar pra nossa região aqui desenvolvimento de irrigação, não tem jeito não, nós não tem muito futuro. Você pega essa área nossa aqui. É tudo terra fértil, choveu, você pode olha aí está morto aí, choveu, dá umas cinco chuva, quinze dias que você voltar aqui você vê completamente, a paisagem toda mudada. Muda completamente porque a terra prova que fértil elas são demais. Essa terra aqui você faz a análise dela ela não precisa gastar nada. Você vai no triangulo mineiro, no noroeste o pessoal tem que ficar gastando carga e mais carga de calcário, mais correção de solo porque as terras são fracas. Eles têm um clima melhor do que o nosso, mas não tem a terra fértil, aqui nos tem a terra fértil, mas não tem clima. (Entrevistado C)

Marx (1988, p.143) afirma que da mesma forma que a terra é a “despensa original” do trabalhador, ela é seu “arsenal original de meios de trabalho”, oferece a ele os

elementos necessários para fabricação dos instrumentos. A terra, ela mesma, é um meio de trabalho, mas para que possa sê-lo na agricultura, precisa de vários outros meios de trabalho. A questão é que nas relações sociais capitalistas, ainda que estes outros meios existam, eles só estão ao alcance dos que podem comprá-los e ainda possam utilizá-los de modo economicamente viável. Em relação ao processo de irrigação implantado no assentamento, embora seja considerado indispensável para viabilizar o plantio de culturas, tornou-se inviável em função da elevação dos custos de produção e perda de competitividade no mercado. Conforme relato abaixo

o primeiro projeto de irrigação que a gente trabalhou aí foi a diesel, mais nós pagava pra produzir do que dava certo o processo nosso de irrigação porque o óleo diesel que você gastava na lavoura de milho ou de feijão, você catava o feijão, ir lá no mercado ficava mais barato. Isso desestimula você produzir (Entrevistado C).

Além da terra, edifícios de trabalho, canais, estradas, etc. fazem parte das condições objetivas de produção. Como já descrito anteriormente, as estradas que dão acesso ao assentamento possuem condições precárias, o que prejudica o possível fornecimento dos bens produzidos para além do município onde o assentamento está inserido. A antiga sede da fazenda é utilizada como escritório da associação. Algumas instalações da antiga fazenda destinadas à criação do gado também foram aproveitadas. Todas as condições objetivas que puderam ser utilizadas foram incorporadas ao novo processo de produção da vida no assentamento. “O trabalho

vivo deve apoderar-se dessas coisas, despertá-las dentre os mortos, transformá-las de valores de uso apenas possíveis em valores de uso reais e efetivos” (MARX,

1988, p.146).

O uso de adubação química é fraco predominando a utilização de restos de culturas (palha de milho, bagaço de cana), cama de galinha e esterco de gado como forma de nutrir a terra, principalmente na horta e nas áreas plantadas de milho e feijão. O manejo alternativo tanto no que se refere ao uso de adubo orgânico quanto ao uso de inseticidas caseiros é freqüente entre os assentados do grupo coletivo. A Universidade Federal de Viçosa desenvolveu um projeto de combate, através da homeopatia, a uma erva que nasce nas pastagens e mata o gado; a comunidade tem obtido bons resultados com o emprego das técnicas alternativas.

Esta opção pela diversificação da produção e o uso de técnicas de produção agrícola alternativas está ligada a uma concepção de uso da terra baseada na produção de alimentos para consumo próprio e geração de renda em sistemas cooperados e agroindustriais. O que está em questão aqui são dois modelos de desenvolvimento para o campo, um do agronegócio, baseado na monocultura, na grande propriedade de terra, no uso intensivo de máquinas e agrotóxicos, com o objetivo de eficiência econômica e reprodução do capital e outro da agricultura camponesa e/ ou familiar, baseado na diversificação, na pequena propriedade, máquinas e equipamentos adequados aos investimentos de pequeno porte, conforme assentado explicita abaixo:

a gente acredita e essa filosofia o movimento trabalhou muito com a gente, você tem que produzir alimento. Quando um fala comigo, hoje estou com uma terra parada pra plantar capim, eu falo o capim na nossa região hoje é uma monocultura, a pecuária, aqui não precisa investir mais em pastagem, (…) Tudo que a gente pude trabalhar pra desenvolver a questão do grão aqui na região nós tamos tentando. (…) Claro que nos tem um fator agravante pra nós no município que é a chegada da Aracruz. (…) Nós temos quatro áreas de assentamento aqui, ela comprou todas as fazendas em volta dos assentamentos. Nós estamos dentro de uma área hoje cercada pela Aracruz. É um agravante, a gente tem o exemplo na região aqui que é a CENIBRA. Os municípios que ela cercou os pequenos produtor hoje os que não entregou pra ela tudo já vazou tudo. São os município que tão empobrecendo cada dia mais, você não precisa ir longe pra ver… (Entrevistado C)

FIGURA 6 - Horta do assentamento FONTE: acervo da autora

Ainda conforme expresso no final da fala acima, a defesa teórica e prática de um modelo alternativo para agricultura no interior das relações capitalistas de produção não é tarefa fácil. Para Fernandes (2010), se a consolidação do agronegócio e a transgenia foram fatores determinantes no contínuo e profundo processo de modificações que envolvem a questão agrária na segunda metade do século XX, a “estrangeirização” das terras brasileiras é, por certo, o elemento novo na conjuntura da questão agrária no início deste século. É claro que o rompimento de fronteiras não é um fenômeno novo no processo de expansão capitalista, porém, a recente procura por novos territórios para a expansão da agricultura está associada a mudança no padrão energético do combustível fóssil para a agroenergia, ampliando a crise alimentar. Esta mudança na matriz energética tem recebido apoio de vários setores como governo, agronegócio e parte do campesinato, e vem trazendo grandes impactos com o aumento das áreas de produção (principalmente cana de açúcar no Brasil e milho nos EUA) e disputas sobre o uso dos territórios para produção de alimentos e de combustíveis37. As pesquisas apontam duas tendências

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“No Brasil, segundo registros do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, no primeiro semestre de 2010, em torno de 4,2 milhões de hectares eram propriedade de estrangeiros. Em

neste processo: uma, de ampliação das áreas de monoculturas do agronegócio em direção às florestas aumentando o desmatamento, e, em muitos locais com o uso do trabalho escravo; outra, de submissão do campesinato a produção dos agrocombustíveis e aos mercados. Para o autor, no entanto, os conflitos recentes da Via Campesina38 contra as grandes empresas multinacionais e nacionais (Aracruz, Singenta, Cutrale, etc.) indicam a luta do campesinato (pelo menos parte deste) na defesa de um modelo de produção local de comida e agroecológica contrário ao defendido pelo grande capital, a produção de commodities em grande escala para exportação.