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Trabalho e educação na perspectiva dos trabalhadores

No primeiro capítulo foi dito que diante de toda a lógica destrutiva e desumanizadora do capital, os trabalhadores foram construindo modos de colocar freios à exploração e mesmo tentaram construir lógicas de vida diferentes. Por meio de suas lutas e organizações, os trabalhadores vão se educando, formando seus intelectuais, desvendando as relações de dominação nas quais estão inseridos. Sem entrar nos detalhes sobre este processo de formação e organização dos sujeitos coletivos nem das diferentes posições e estratégias construídas por estes sujeitos, vale ressaltar que esta formação nasce e se desenvolve no contraditório e complexo processo de luta pela existência e produção da consciência.

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Cabe ressaltar que este movimento de descentralização produtiva não significa necessariamente um processo de desconcentração de capitais.

Arroyo (2004) afirma que na multiplicidade das lutas populares, os trabalhadores educam-se, reconhecem-se, criam identidade e formam-se enquanto classe. Ao construírem praticamente novos saberes e nova interpretação da realidade, os trabalhadores desafiam e questionam as práticas e concepções hegemônicas do capitalismo.

Kuenzer (1986) defende que diante da pedagogia do trabalho capitalista, representada pela heterogestão, a pedagogia do trabalho do ponto de vista das classes subalternas se inscreve no quadro da construção da hegemonia das referidas classes. Inspirada no conceito de hegemonia em Gramsci, a autora afirma que a “pedagogia do trabalho” cumpre um papel fundamental na “formação da vontade coletiva” e na “reforma econômica, intelectual e moral” para superar a dominação do trabalho pelo capital. Ela faz a mediação entre a mudança estrutural e sua manifestação no campo político e ideológico e contribui para o estabelecimento de novos modos de pensar, sentir e conhecer.

Quanto ao conteúdo desta pedagogia, a autora afirma que, se a pedagogia do trabalho capitalista, a heterogestão opera pela via da desqualificação de grande parte da força de trabalho, a pedagogia do trabalho, o do ponto de vista das classes subalternas, partindo das condições concretas de trabalho, há de ser construída pela via do domínio crescente sobre o conteúdo do trabalho pelo trabalhador. Ela chama a atenção para o fato de que não há duas pedagogias antagônicas e distintas quando se pensa no conteúdo da ciência do trabalho à medida que o capital historicamente deteve os instrumentos para a elaboração do saber sobre o trabalho. No entanto, o conteúdo do trabalho capitalista é somente o ponto de partida da nova pedagogia. Ela quer dizer que as contradições inerentes a relação capital-trabalho oferecem elementos que podem tanto reforçar a pedagogia do capital quanto elementos que apontem para a crítica e superação desta última.

Como veremos mais adiante na discussão sobre politecnia, Marx (1988) já falava da importância da aquisição do conteúdo do trabalho pelos operários, ainda no quadro das condições capitalistas de produção, em direção a transformação da “velha divisão do trabalho”, da substituição do indivíduo fragmentado pelo indivíduo

integralmente desenvolvido, capaz de realizar diferentes atividades e aperfeiçoar-se no campo que lhe aprouver. Neste sentido, é a partir da reapropriação do saber sobre o trabalho, até então incorporado ao capital e transformado em força de dominação nas condições concretas e não idealizadas do capitalismo que a pedagogia do trabalho poderá ser orientada segundo interesses e fins da construção da hegemonia da classe trabalhadora.

A utopia, portanto, está na autogestão, compreendida como o controle da produção por todos os homens, com o estabelecimento da hegemonia do trabalho sobre o capital. A este estágio de desenvolvimento das forças produtivas corresponde uma nova concepção de trabalho em que a unidade teoria/prática e o domínio do trabalho pelo trabalhador estejam presentes. A elaboração dessa concepção ao nível superestrutural só é possível a partir de modificações estruturais ao nível do trabalho e de sua organização; a elaboração teórica divorciada das mudanças concretas não ultrapassa o nível do mais ingênuo idealismo (KUENZER, 1986, p.56-57).

Para Mészáros (2005), a educação na perspectiva da luta pela emancipação humana está vinculada ao trabalho, às formas de produção da existência e para transformá-la, reformas são insuficientes. É preciso uma mudança estrutural que nos leve “para além do capital”, que rompa com a “lógica incorrigível do capital” para empreender uma mudança educacional radical. “No âmbito educacional, as soluções

não podem ser formais; elas devem ser essenciais21”, ou seja, devem compreender a “totalidade das práticas educacionais da sociedade estabelecida” (p. 45).

A educação institucionalizada na história do capitalismo cumpriu duas funções básicas: a de fornecer conhecimentos e pessoal preparado para as necessidades da produção crescente; a de produzir e transmitir um conjunto de valores que legitima a ordem, criando a “aparência necessária” de não haver outra alternativa à organização e gestão da sociedade. Esta segunda função foi realizada através da “internalização” destes valores pelos indivíduos devidamente “educados” ou por meio da “dominação estrutural e uma subordinação hierárquica e implacavelmente

impostas” (MÉSZÁROS, 2005, p.35).

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Aqui, a questão crucial, sob o domínio do capital, é assegurar que cada indivíduo adote como suas próprias as metas de reprodução objetivamente possíveis do sistema. Em outras palavras, no sentido verdadeiramente amplo do termo educação22, trata-se de uma questão de “internalização” pelos indivíduos (...) da legitimidade da posição que lhes foi atribuída na hierarquia social, juntamente com suas expectativas “adequadas” e as formas de conduta “certas”, mais ou menos explicitamente estipuladas nesse terreno. Enquanto a internalização conseguir fazer o seu bom trabalho, assegurando os parâmetros reprodutivos gerais do sistema do capital, a brutalidade e a violência podem ser relegadas a um segundo plano (embora de modo nenhum sejam permanentemente abandonadas) posto que são modalidades dispendiosas de imposição de valores, como de fato aconteceu no decurso do desenvolvimento capitalista moderno (MÉSZÁROS, 2005, p.44).

Nestes termos, o que precisa ser realizado do ponto de vista de uma educação emancipadora é a alteração de todo o sistema de internalização, tanto nas suas dimensões visíveis quanto nas ocultas, tanto nas institucionalizadas quanto nas essenciais. Nas palavras de Mészáros (2005) “uma atividade de contra-

internalização, coerente e sustentada, que não se esgote na negação (...) e que defina seus objetivos fundamentais, como a criação de uma alternativa abrangente concretamente sustentável ao que já existe (p.56).

Esta alternativa concreta parte do trabalho e da necessidade de romper com suas formas de alienação por meio de uma reestruturação radical das nossas condições de existência e dos nossos modos de viver. Não é possível superar a auto-alienação do trabalho sem a universalização efetiva do trabalho e da educação, indissociavelmente. Esta concepção vem sendo frustrada na história do capitalismo pela imposição de jornadas de trabalho desumanas, pela separação entre governados e governantes na gestão da reprodução metabólica social, pela oposição entre uma educação para gestores e uma educação para executores. “A

educação para além do capital visa uma ordem social qualitativamente diferente”

(MÉSZÁROS, 2005, p.71). Nesta ordem, “a auto-educação dos iguais” corresponde à “autogestão da ordem social reprodutiva”.

A autogestão pelos produtores livremente associados das funções vitais do processo metabólico social é um empreendimento progressivo – e inevitavelmente em mudança. O mesmo vale para as práticas educacionais que habilitem o indivíduo a realizar essas funções na medida em que sejam redefinidas por eles próprios, de acordo com os requisitos em mudança dos quais eles são agentes ativos (MÉSZÁROS, 2005, p.74-75).

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As instituições formais de educação certamente são uma parte importante do sistema global de

A educação cumpre o papel de interiorização das condições de liberdade e a aprendizagem é vista como um processo que conduza a “auto-realização dos

indivíduos” como “indivíduos socialmente ricos humanamente” (MÉSZÁROS, 2005,

p.47). O êxito desta aprendizagem depende de tornar consciente este processo, não individualmente ou dentro de gabinetes, mas fruto de uma ação coletiva.