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2.2 SIGNIFICADO DO TRABALHO

2.2.1 Conceitos básicos do significado do trabalho

2.2.1.2 S OBRE AS CONCEPÇÕES DO TRABALHO NA PERSPECTIVA SÓCIO HISTÓRICA :

ENTENDENDO O ASPECTO PROCESSUAL, DINÂMICO E TEMPORAL

Historicamente, o trabalho é um fenômeno que pauta discussões nos mais variados campos do conhecimento. Por ser objeto comum ao cotidiano das pessoas e normalmente ter seu significado associado à função instrumental que desempenha, estudar o tema pode sugerir obviedade ou redundância. Todavia, em face da pluralidade humana, as concepções possíveis do trabalho ultrapassam a fronteira do senso comum e dão sinais de complexidade. Ilustrando essa complexidade, Borges (1999b) traz as concepções do trabalho, as quais designam o pensamento elaborado e articulado que oferece definições sobre o trabalho e resultam de um processo de criação histórica que se desenvolve em sintonia com as relações e modos de produção, organização social e formas de conhecimento humano, associando-se a interesses econômicos, ideológicos e políticos.

As concepções de trabalho, quando inseridas nos mais diferentes campos do conhecimento humano, abarcam entendimentos amplos que podem envolver diferentes níveis e tipos de análise. Por exemplo, quando buscou apresentar uma visão sociológica do trabalho, Tittoni (1993) fez um recorte dos estudos marxistas sobre o trabalho alienado. Das ideias de Marx, a autora destacou a noção de trabalho associada à vida produtiva, compreendendo uma dimensão que insere o trabalhador na vida através de diferentes aspectos inerentes à espécie humana e referentes à própria condição humana, isto é, o homem é um ser que faz parte da natureza e dela necessita para não morrer, contendo em si a consciência da própria natureza. Wagner (2000), por sua vez, explicou essa ideia lembrando que Marx concebia a transformação da natureza pelo homem como sendo a transformação de si mesmo. Nessa concepção, o trabalho é fonte de realização pessoal, pois o agir produtivo permite ao

trabalhador se afirmar em relação aos outros e em relação ao mundo, provocando uma projeção da natureza humana materializada no produto do trabalho (WAGNER, 2000). Em sintonia uma visão marxiana de trabalho enquanto elemento fundamental da vinculação do trabalho à consciência e à objetivação do ser humano, Erikson (1977) conta que Freud, ao ser indagado a respeito do que seria necessário a uma pessoa para ter saúde mental e vida plena, teria respondido: Lieben und arbeiten [amar e trabalhar]. Então, em sua análise, o trabalho seria tão central quanto o amor, pois, no que diz respeito à vinculação do indivíduo ao tecido social e à realidade, o amor contempla entrega, partilha e reconhecimento, ao tempo em que o trabalho tem efeito criador, poderoso e superior aos demais aspectos na vida (ERIKSON, 1977). Outro exemplo seria no campo da psicodinâmica do trabalho. Segundo Dejours, Dessours e Deusriaux (1993), o fato de o trabalho organizado4 ter um papel estruturante na existência humana não o isenta de seus aspectos negativos, uma vez que ele também pode gerar sofrimento psíquico. Para esses autores, o sofrimento é um traço característico da relação ambivalente do indivíduo e o trabalho.

A complexidade que envolve as concepções de trabalho, conforme os exemplos citados, ou seja, as visões modernas de Marx (TITTONI, 1994; WAGNER, 2000), Freud (ERIKSON, 1977) e Dejours, Dessours e Deusriaux (1993), mostram que compreender os efeitos tão impactantes que o trabalho surte na vida de um ser humano envolve a apreensão de diversas perspectivas que extrapolam o aspecto subjetivo do trabalho, ampliando-se para o campo objetivo, com a inclusão de pontos de vista a partir dos quais essas perspectivas podem ser observadas. Borges e Yamamoto (2014), ao analisarem o mundo do trabalho, trazem o aspecto objetivo do trabalho por meio da visão sócio-histórica. Os autores assinalam que cada fase histórica revela uma forma intrínseca de organização, função e valor, o que leva às variações da importância e da legitimação do trabalho na construção do pensamento humano. Sendo assim, as transformações socioculturais são adotadas como uma via de análise de como as concepções do trabalho variam ao longo do tempo.

Nessa perspectiva histórica, Albornoz (1986) lembra que a palavra trabalho vem do latim vulgar tripaliare, que significa torturar ou manipular o tripalium – instrumento agrícola de processamento de cereais e, por extensão, instrumento de tortura humana. Essa concepção etimológica trazida pela autora parece fazer sentido dentro da lógica sociocultural greco-

4Os autores analisam o trabalho organizado, isto é, aquele que envolve a organização do trabalho enquanto

divisão do trabalho que envolve o conteúdo da tarefa (à proporção que ele dela deriva), o sistema hierárquico, as modalidades de comando, as relações de poder, as questões de responsabilidade (op.cit.)

romana sobre o trabalho, representando a própria concepção clássica de trabalho: um símbolo de sofrimento e degradação humana. Na Grécia Clássica, as ideias sociopolíticas predominantes de Platão e Aristóteles, sobretudo no que diz respeito à estratificação social, produziram uma visão de trabalho como atividade degradante e isenta de virtudes (ANTHONY, 1977). Quem trabalhava era considerado um “mero instrumento vivo” (ARISTÓTELES a.C. apud ANTHONY, 1977, p. 20), abstração um tanto exagerada, pode-se assim dizer, mas, que retrata o trabalho como símbolo de exclusão social e de distanciamento da virtude e da nobreza – uma verdadeira antinomia se considerada a visão enobrecedora e central do trabalho na atualidade.

Anthony (1977), ao resgatar a história do trabalho, observa que lógica escravista e a concepção de inferioridade do trabalhador se mantiveram nos primeiros dois séculos, com modificações posteriores provocadas pelas visões estoicista, política romana e religiosa da Idade Média. Os filósofos Agostinho e Ambrósio, por exemplo, plantaram uma semente do princípio jurídico da igualdade ao formularem uma antítese ao pensamento aristocrático, ao desconstruir a lógica do pensamento escravista sob o argumento de que todos são filhos de Deus e, portanto, a usura e a escravidão eram injustificáveis. A síntese entre o pensamento aristocrático e a visão de igualdade, segundo Anthony (1977), veio dos princípios filosóficos universais de Tomás de Aquino, que via a sociedade como uma troca mútua de serviços em prol do bem comum, portanto, cada um contribuía com a sua parte, sem desigualdades. O pensamento filosófico passou a funcionar como regulador das novas relações de produção – o sistema feudal, que envolvia conflitos de dominação e reciprocidade entre vassalos e suserano, dentro de um espaço dividido desigualmente. Ainda assim, registra-se que a inferioridade ainda caracterizava o trabalho (ANTHONY, 1977).

Ao longo da tradição judaico-cristã da Idade Média, surgiram outras concepções do trabalho. Os movimentos humanistas pré-renascentistas valorizavam o aspecto criativo, religioso e artístico, levando à modificação da própria relação entre homem e trabalho, uma vez que a tônica das atividades laborais daquele período histórico era revelar a essência humana, podendo, inclusive, santificar o homem (ANTHONY, 1977). Mesmo que essa nova concepção tenha agregado certo humanismo à antiga condição de inferioridade humana associada ao trabalho, é pertinente ressaltar a marginalidade do trabalho em relação ao pensamento nuclear daquelas sociedades. Bendassolli (2009) faz uma síntese precisa dessa ideia ao resumir os eixos centrais de cada época: para os antigos gregos, o eixo central era felicidade e ócio, não o trabalho; para os medievos, o foco era a salvação ou expiação do pecado, não o trabalho; para os renascentistas, o eixo era a elevação do humano, sendo a

questão central e absoluta a constituição de si mesmo na relação com o mundo, não com o trabalho. Na visão do autor, o deslocamento desse eixo deve-se ao advento do protestantismo, um verdadeiro marco da centralização do trabalho na vida humana.

A reforma protestante abrigou a concepção de trabalho como solução individual à salvação. Da condição de meio, o trabalho passou a ser um fim, funcionando como lenitivo à consciência humana com relação ao pecado original e outras culpas cristãs, fato que caracterizou o trabalhador da época como um sujeito religioso (BENDASSOLLI, 2009). Consequentemente, o trabalho foi-se tornando uma fonte de redução de incertezas e, ao mesmo tempo, um parâmetro de avaliação do código moral de um indivíduo, tendo como referente a visão espiritual de dever5, isto é, trabalhava-se para ser alguém digno, dotado de moral inquestionável e, sobretudo, certo de estar servindo a Deus. Tudo isso gerou nas pessoas uma espécie de compulsão para se trabalhar, ressignificando padrões, isto é, a partir de então, o ócio já não mais significava nobreza e aristocracia, mas sim culpa de não estar servindo a Deus. O trabalho, por sua vez, tornou-se um tipo de passaporte para se tornar digno da graça e da bênção divina: em última instância, trabalhar era cultuar a melhor das virtudes para se chegar a Deus (ANTHONY, 1977; BENDASSOLLI, 2009).

Segundo Anthony (1977), a visão de indignidade transformada em prosperidade fulcrada no divino edificou o sustentáculo da lógica capitalista no que se refere ao trabalho. A visão antiga da nobreza calcada no ócio passa a ser substituída por uma ideologia propulsora do trabalho como motor do desenvolvimento socioeconômico capitalista: “uma vez que o trabalho é dignificado, inevitavelmente ocorrerá a dignificação do trabalhador, especialmente porque o entusiasmo com que se estabeleceu o trabalho torna impossível admirar o ócio” (ANTHONY, 1977, p. 44). Assim, o trabalho, pouco a pouco, tornou-se central na vida humana, sob a crença compartilhada de significar geração de abundância, identidade e sucesso individual, desde que exercido de forma organizada, com planejamento, disciplina e valor mensurado pela quantidade trabalhada e não pelo conteúdo envolvido (BORGES; YAMAMOTO, 2014). Pensada dessa forma, a ideologia do trabalho (ANTHONY, 1977) foi decisiva para que ele se tornasse o eixo nodal da sociedade capitalista e gerasse a secularização6 do trabalho, que, por sua vez provocou a desconexão entre homem e sua essência ou fonte espiritual e criativa, enfraquecendo a influência humanista e religiosa

5 Anthony (1977, p. 43) comenta que Max Weber, entre outras ideias, envolveu o “engajamento de Deus como

um supremo supervisor do trabalho” e o trabalho passou a ser um “chamado divino” ou vocação.

6 Denomina-se secularização do trabalho o processo através do qual a religião perde sua influência sobre as

demais esferas da vida social, repercutindo em redução do número de membros das religiões e de suas práticas, perda do prestígio e influência na sociedade.

na vida das pessoas, uma vez que o indivíduo passou a expressar sua identidade pela luta individualista e autointeressada, aflorada pelo processo produtivo industrial e, principalmente, pela divisão do trabalho (BENDASSOLLI, 2009).

A partir de então, o trabalho se estabeleceu como uma categoria social, separada de outras atividades e esferas sociais (OFFE, 1989) e, também, tornou-se dependente de um poderoso processo de civilização, tipificado por coordenação, controle e disciplina de práticas e discursos, que envolviam a erradicação de práticas e hábitos localizados, dispersos e fora de controle (BENDASSOLLI, 2006). Borges e Yamamoto (2014) acrescentam que a ideologia do trabalho7, acolhida pela noção utilitarista, legitimou a distribuição de riqueza e deu paz de espírito aos ricos, pois exaltou o trabalho, tornando natural a ideia de centralidade do trabalho e da justificação do esforço e da submissão. Esse processo foi denominado de glorificação do trabalho, por Anthony (1977) ou ética do trabalho, por Büchholz (1977). Segundo Bendassolli (2009), a ideologia do trabalho fez emergir uma subjetividade organizadora de experiências singulares nos indivíduos por meio da atividade laboral, convertendo o trabalho em substrato do sentido da própria existência, o que evidencia a centralidade do trabalho.

A ideia de centralidade do trabalho ou de sua importância fundamental às sociedades capitalistas começou a ser questionada a partir das mutações que ocorreram no mundo da produção e do trabalho nas últimas décadas do século XX, a exemplo das ideias de Gorz8, que vaticinou o fim do proletariado e com ele grande parte das ações decorrentes das forças sociais do trabalho, e Medá9, que a partir da análise habermasiana do trabalho e do espírito weberiano de desencanto do mundo analisa o trabalho como um valor em vias de desaparição, citados por Antunes (2005) e Offe (1989). Na visão de Antunes (2005), essas e outras teses que defendem a ideia de esgotamento, desaparição do trabalho ou substituição do trabalho pela esfera comunicacional constituem-se um verdadeiro equívoco. No lugar de desconstrução da centralidade do trabalho, o autor sustenta a existência de um conjunto de mutações fundamentais: heterogeneidade, fragmentação e complexificação, que se reflete em tendências emergentes ou em curso, como terceirização, subcontratação, part-time, remodelação do perfil

7 Bendassolli (2006) explica que Anthony entendeu essa ideologia como um sistema moral que leva as pessoas a

agirem de determinado modo e concordarem com esse tipo de ação. Spink (1990), afirma que o uso do termo “ideologia” dessa maneira como analisada por Anthony (1977), coloca-o conceitualmente próximo às análises do “como estruturas de significação são mobilizadas para legitimar os interesses seccionais de grupos hegemônicos” (GIDDENS, 1979 apud SPINK, 1990) e da preocupação sobre a crítica de dominação em Habermas. Difere, portanto, mesmo que ambos estejam presentes em Marx, da ótica que leva ao debate entre ideologia e ciência aprofundado por Mannhein e Althusser.

8 Cf. GORZ, Andre. Adeus ao proletariado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. 9 Cf. MEDÁ, Dominique. Le travail: une valeur em voie de desaparition. Paris: Aubier, 1995.

da força de trabalho [diversidade de gênero e raça], teletrabalho e tantas outras formas que se expandem em escala global (ANTUNES, 2005).

Se o trabalho contemporâneo não é o mesmo do século XX, também não está fadado à desaparição ou perda de sua condição estruturante. Freitas (2005) não deixa escapar a força dessa visão. Segundo a autora, mesmo se construída imageticamente, as organizações de trabalho ainda permanecem como principal fonte fornecedora de identidade para os indivíduos que nelas trabalham, tendo em vista a decadência das demais instituições, como estado, igreja, família. Tal ideia também alimenta, na condição de variante qualitativa e não argumento refutante, a centralidade do trabalho. Dessa forma, considerando a nova morfologia do trabalho, tem-se a necessidade de compreensão do significado do trabalho nas organizações contemporâneas como importante, especialmente em face dos valores e das instituições que influenciam os sujeitos sociais em diferentes situações e ângulos (BERGER e LUCKMANN, 2004; FREITAS, 2005; MALVEZZI, 2014a) e, sobretudo, na relação indivíduo-trabalho-organização inserida no enclave de mercado, que é o tipo de organização aqui pesquisada.